quarta-feira, 5 de outubro de 2011

CONTO

Capítulo XXVII

- Em pouco mais de seis mil anos – diz Dorotéia – a humanidade saiu do estado selvagem e atingiu elevado grau de civilização, estudando minerais, vegetais, animais, o organismo humano, a organização social dos animais racionais e irracionais, perscrutando a vastidão macroscópica do cosmos e a imensidão microscópica do átomo. Descobriu como fazer o fogo. Inventou a roda. Percebeu regularidades da natureza como as estações do ano, ciclos lunares e solares e posições das estrelas. Fundada nessa percepção, criou o calendário e elaborou mapas celestes e terrestres para se orientar no tempo e no espaço, na terra e no mar. Aperfeiçoou técnicas de plantio e colheita, de domesticação e criação de animais, de produção e distribuição de bens necessários, úteis e decorativos. Fabricou armas, munições, ferramentas, equipamentos, utensílios de barro, pedra, madeira e metal. Criou mitos, religiões, filosofias, instituições políticas, sociais e econômicas, terapias, técnicas cirúrgicas, métodos de ensino e aprendizagem. Construiu cabanas, casas, palácios, templos, pirâmides, cidades, obeliscos, pontes, estradas, barcos, navios, veículos de tração animal, motores a vapor, a combustão, elétricos, a jato. Aproveitou o fogo, a água, o vento, o sol, o gás natural, vegetais e resíduos fósseis, para produzir energia. Comunica-se pelo telégrafo, telefone, rádio, cinema, televisão, rede de computadores. A telepatia poderá ser meio usual de comunicação dentro de algumas centenas de anos, tão logo o cientista se desvencilhe do preconceito. Ondas cerebrais e expressões verbais serão concorrentes no processo de comunicação entre os humanos. Por enquanto, os estudos sobre comunicação telepática ligam-se à segurança nacional de alguns países. Antes do fim da vida biológica na Terra, a humanidade já terá suficiente conhecimento tecnológico e científico para produzir bens essenciais e viver em outro planeta.

Júnior menciona livros que trabalhavam com a hipótese de mudança de domicílio planetário e defendiam a tese de que habitantes de outros planetas se transferiram para a Terra, como os atlantes, os antigos egípcios, os maias, povos que sumiram com destino aos seus planetas de origem, a planetas diferentes, ou a outras dimensões do mundo. Tudo especulação – diz ele – porém o assunto fascina milhares de leitores e enriquece a ficção científica.

- Apesar do progresso material, avanço científico e tecnológico, desenvolvimento intelectual, parcela maior da humanidade permanece na infância espiritual e na adolescência moral – critica Isolda. A cada dedo da mão corresponde um “A”: ar, água, alimento, abrigo e amor, essenciais à vida individual e coletiva. Desses, a humanidade cuida mal dos quatro primeiros, principalmente no que tange a poluição e a distribuição. O quinto é frustrante; a humanidade ainda não aprendeu a amar. O amor a Deus e ao próximo, até o momento, é superfície esmaltada. Entre os seres humanos há muita paixão e pouco amor. O amor pela natureza, hodiernamente, parece mais real, autêntico e promissor. Em jogo, a sobrevivência da espécie.

A família habituara-se a passar fins de semana em lugarejo turístico no sopé da montanha, em algumas épocas do ano, principalmente no inverno. Em uma dessas ocasiões, no restaurante, Leopoldo notou dois casais, um septuagenário e outro sexagenário, segundo sua avaliação empírica. Acomodaram-se em torno da mesa em frente à sua. O varão mais idoso de cabelos curtos, rosto barbeado, alto, magro, olhar cansado e sem brilho de quem tudo já viu, escutou e experimentou na vida; o outro, com barba crescida, cabelos compridos em rabo de cavalo cercando a calva, de menor estatura, gordinho, olhar vivaz de quem ainda espera conhecer e experimentar mais alguma coisa neste mundo. O primeiro distante da mulher, embora sentado ao seu lado. O segundo, suavemente, alisava as costas da companheira. Carinho sem erotismo. Companheirismo afetuoso. Ela se reclinava no ombro dele e depois voltava à posição ereta na cadeira. “De um lado da mesa, frieza do hábito; do outro, calor da amizade” – pensou.

Da mesa em torno da qual a família se sentara, junto à vidraça do restaurante, Júnior via desfilar pela rua principal dezenas de motocicletas. Os motoqueiros haviam marcado aquela data e aquela aldeia para se confraternizar. O clima era de festa. O dia maravilhoso. Eles transitavam em todas as direções levando as companheiras na garupa. Havia também duplas de mulher e pilotos sozinhos, inclusive em triciclos vistosos. Diferentes marcas e tipos de motos. Casais idosos montavam em motos Harley-Davidson ou BMW. Capacetes com desenhos coloridos. A maioria usava blusa de couro, calça jeans e bota. Alguns usavam traje completo: botas, luvas, macacão de couro ou de tecido especial. Pareciam astronautas. Júnior sentiu vontade de ingressar naquela tribo, com motoca nova e namorada na garupa.

- Gostaria de ganhar motocicleta como presente de aniversário – disse aos pais.

A mãe foi contra. A moto é perigosa. Há muitos acidentes com morte ou lesões graves. Leopoldo e Isolda se manifestaram favorável ao presente de aniversário. Perigo havia em todo lugar, argumentavam eles. Acidentes ocorriam em terra, no rio, no mar, no ar. Tanto em cidade grande como em cidade pequena, acidentes acontecem. O olhar cauteloso aconselha a reduzir as chances do desastre mediante privação desse tipo de veículo. O olhar arrojado aconselha a assumir riscos e se aventurar. Viver sem emoção é vegetar. Cabe a cada indivíduo escolher a placidez do lago ou a inquietação do mar.

Júnior ganhou a motocicleta. 600 cilindradas. Japonesa. Tamanho grande, cor preta, metais niquelados, guidão alto. Rodava pela cidade e pelas estradas a caminho do mar ou da montanha. Namorada na garupa; nem sempre a mesma. Entrara para a tribo dos motoqueiros. Gostava daquela sensação de liberdade plena. Vento no rosto. Vida que segue.

O interfone tocou. O menino teve um sobressalto na poltrona da escrivaninha do escritório. A secretária anunciou:

- Doutor Rahman, o cliente chegou.

Somente no âmbito íntimo da família ainda o chamavam de Júnior. Ao tempo da faculdade, os colegas chamavam-no de Cidreira. Na tribo dos motoqueiros chamavam-no de Leô, modo abreviado de Leopoldo. Desistira de ingressar na mesma carreira do avô. Recusara o conselho de cultivar a mediocridade. Não se deixara aprisionar pela toga. Optou pelos vôos mais altos da inteligência e da liberdade. Dedicou-se à advocacia. O moço instruiu a secretária:

- Aguarde um momento.

Levantou-se, postou-se à frente do espelho, fechou o colarinho e ajeitou a gravata. Os olhos ainda estavam úmidos das emoções revividas. Vestiu o paletó. Curvou-se em direção à mesa e acionou o interfone. A secretária atendeu. Ele dita a ordem, curta e branda:

- Faça-o entrar.

O cliente apertou a mão vigorosa que lhe estendeu aquele homem grisalho, experiente nas demandas forenses, experto em assuntos jurídicos, que lhe indicava a poltrona no austero gabinete. Ambos sentaram-se. O advogado ouvia a confissão do cliente. Cessaram as recordações. Recomeçaram as lides.

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