segunda-feira, 3 de outubro de 2011

CONTO

Capítulo XXVI.

No entender de Dorotéia, a reencarnação satisfaz do ponto de vista lógico somente a quem aceita as seguintes premissas: que a reencarnação obedece a uma lei natural; que o homem está encarnado em um corpo físico a fim de passar por experiências terrenas necessárias ao aperfeiçoamento; que essas experiências ocorrem em mais de uma encarnação na Terra.

- Não há evidência alguma da existência de lei natural a comandar reencarnações – Júnior se atrela à opinião da mãe. O homem não está encarnado em um corpo físico. O homem é o corpo físico. Ao entrar no escritório eu não tiro o meu corpo e o penduro no cabide para depois apanha-lo na saída. A morte do corpo é a morte do ser humano. Resta o que chamam de alma. Prefiro chamar de personalidade anímica, como faz a dona Dorotéia.

Ao dizer isto, Júnior, que se sentara no braço da poltrona, afaga os cabelos da mãe e a beija na testa. Dorotéia, sentada em patamar inferior, coloca a sua mão sobre a mão que o filho pousara em seu ombro e responde à provocação.

- Concordo contigo, meu filho. Alguns chamam espírito, alma individual e autônoma. Eu prefiro personalidade anímica, integrada à alma universal. À energia fundamental que gerou e mantém o universo em eterno movimento e progresso eu reservo o nome de alma. Todas as galáxias estão mergulhadas nesse vibratório oceano cósmico chamado alma. Ao se desligar do corpo, a personalidade anímica permanece nesse plasma inefável como se fora decalque imaterial. Ressurreição supõe morte anterior. Só ressurge quem desapareceu. O que é imortal não ressurge, porque não desaparece. Sendo expressão da alma, a personalidade é imortal. Como a parte mortal do ser humano é o corpo, a ressurreição deve ser do corpo. Entretanto, ao se tornar pó ou cinza, o corpo desaparece, perde a estrutura necessária à ressurreição. Vejo que vocês já perceberam a incompatibilidade entre a doutrina da ressurreição e a doutrina da reencarnação. Nesta última, a personalidade ocupa vários corpos no curso dos milênios. Se houvesse ressurreição, a personalidade teria de escolher um desses corpos, admitida a inacreditável capacidade de o corpo se reconstituir depois de ter virado pó ou cinza. Os demais corpos dessa mesma personalidade se manteriam no estado de poeira. Com a reencarnação ocorreria algo diferente. A personalidade retornaria – não para ocupar corpo que já se desintegrara – e sim para ocupar novo corpo em gestação ou após o nascimento.

- Há complicadores também no caminho da doutrina da reencarnação – Júnior movimenta o dedo indicador para frente e para trás à altura da fronte direita enquanto fala. Estatísticas existentes nos institutos de economia de países ocidentais revelam que a população mundial vem crescendo, menos nos países do primeiro mundo e mais nos países periféricos. A mortandade causada pelas guerras e pelas pestes não impediu o crescimento demográfico que se iniciara com os descendentes do primeiro casal de que fala a mitologia judaica, cristã e muçulmana. Novos corpos exigem novos espíritos. Supõe a existência de espíritos que encarnam pela primeira vez, sem previa personalização no mundo material. Isto fere a lógica e o bom senso, uma vez que, segundo a exposição da minha mãe, a personalidade resulta da combinação da matéria do corpo com a força vital da alma, segundo uma ordem cosmicamente determinada. Sem essa prévia combinação em nosso planeta, ou em planetas de qualquer galáxia, não haverá personalidade no mundo espiritual. A combinação de duas polaridades para surgir um terceiro elemento é vista como manifestação da lei do triângulo, pelos místicos, e como dialética, pelos filósofos.

- Realmente – Dorotéia completa a exposição do filho – não vejo necessidade alguma de aperfeiçoamento de um suposto espírito virgem que existiria sem mácula no seio da alma universal em freqüência mais alta do que a da matéria.

- Parece que o universo é um computador programado por Deus – Leopoldo não resiste a comentar o que lhe dava coceira na língua। Essa programação inclui a providência divina. Isto significa que não existe providência divina pontual, específica, excepcional, para atender singulares indivíduos e episódios. As coisas acontecem segundo mecanismo cósmico que conhecemos parcialmente. Os nossos pensamentos, desejos, paixões, atividades, acionam o mecanismo do karma, citado na doutrina hindu, entendido como a lei de causa e efeito. O karma pode ser positivo ou negativo no que tange ao prazer, à felicidade, à dor e sofrimento; atua sobre pessoas e nações. No que tange ao primeiro casal, o assunto é mitológico, como disse o Júnior. Dos atuais estudos paleontológicos, antropológicos e etnográficos, podemos sacar a probabilidade do surgimento de seres humanos em diferentes pontos do planeta, na mesma ou em distinta era geológica, obedecendo às mesmas leis biológicas. Constata-se, pois, que a espécie não teve um só primeiro casal e sim vários casais geradores de diferentes raças humanas e de diferentes tipos humanos.

- A realidade é uma só embora com muitas dimensões e níveis vibratórios nem sempre acessíveis aos sentidos humanos – repete e acentua Dorotéia. Vivemos fisicamente no espaço tridimensional. No espaço subatômico, cientistas identificam quase uma dezena de dimensões. Na esfera metafísica, não há espaço e tempo, não há dimensão, há somente níveis vibratórios. Mediante processos racionais a humanidade vai conhecendo as dimensões do mundo físico e os níveis vibratórios do mundo metafísico. Mediante processos irracionais, como o êxtase místico, o indivíduo intui aquelas dimensões e aqueles níveis vibratórios.

- Vejo a tradição como elemento comum à religião e à ciência – Leopoldo aproveita o ensejo para expor algumas idéias. Na religião, vejo o legado das escrituras e o conjunto de crenças e rituais transmitidos de geração a geração. Na ciência, vejo o legado dos estudos e pesquisas profanos e o conjunto de conhecimentos transmitidos de geração a geração. Ambas apóiam-se na fé. A religião, na fé irracional. A ciência, na fé racional. Desde as primeiras civilizações até a medieval, o sacerdócio religioso foi de fundamental importância para o desenvolvimento das artes e das ciências. A partir da renascença, ou da segunda metade da idade média, conforme a visão de cada historiador, a ciência vai se despregando da teologia até adquirir autonomia na idade moderna. O dogmatismo da religião passou, então, a ser entrave. Rogério Bacon, Galileu, Copérnico, Descartes, Newton, Einstein, revolucionaram o conhecimento humano, ao lado de outros que sofreram constrangimentos e até perderam a vida porque ousaram pensar, estudar, pesquisar, sem subordinação à igreja. Atualmente, o sacerdócio religioso não é mais aquela fonte idônea para explicar fenômenos naturais e fatos culturais. Idônea para essa tarefa é a ciência. Muito mais do que qualquer religião, o conhecimento científico e tecnológico contribuiu para a evolução da humanidade, assim como os esportes, com suas regras éticas e competições mundiais, têm contribuído para a fraternidade universal. Ciência, tecnologia e esportes são de fundamental importância para a humanidade. Esses fatores influíram no despertar da consciência ecológica dos povos da idade contemporânea. Já a religião e a política são fontes de conflitos entre culturas, nações e indivíduos.

- O inglês Thomas Hobbes, no século XVII e o genebrino Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII – novamente Júnior tira proveito dos seus estudos jurídicos – reconhecem a existência de um primitivo estado selvagem e atribuem à natureza humana, a passagem para o estado civilizado. Hobbes afirma a maldade inata do ser humano que gerou a guerra de todos contra todos, o que exigiu a racional decisão de se adotar um governo a fim de evitar o extermínio. Rousseau afirma a bondade inata do ser humano que levou a um tácito contrato social em que os contratantes abdicam da plena liberdade que gozavam para viver sob a tutela das regras ditadas pelos próprios destinatários e executadas por um governo. Em suas teorias, Hobbes privilegiou a força demoníaca, sem ignorar a bondade humana; Rousseau privilegiou a força angelical, sem ignorar a maldade humana. O pensamento da minha mãe coincide com o desses pensadores: a estrutura do ser humano se compõe de duas forças: a demoníaca, com seus pólos positivo e negativo, e a angelical, com seus pólos positivo e negativo.

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