segunda-feira, 27 de abril de 2015

LAVA-JATO


A polícia federal adquiriu o hábito de batizar algumas das suas operações e de atuar de forma espetacular. O nome de “lava-jato” dado à operação de Curitiba-PR, lembra os letreiros dos postos curitibanos de abastecimento, lubrificação e lavagem de veículos. A conotação de limpeza combina com o propósito dessa operação policial: apurar materialidade e autoria de crimes de corrupção e lavagem de dinheiro praticados na empresa estatal Petrobrás.
Inquestionável a importância da polícia para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio público e privado. Lado positivo das operações batizadas: trouxeram para a superfície e claridade o que ocorria nos escuros subterrâneos da vida nacional. Lado negativo: desvio ético na execução das tarefas. Na república velha, a polícia servia aos interesses dos coronéis e chefes políticos. Nos períodos autocráticos, a polícia servia ao regime ditatorial e seus próceres. Na república nova, a polícia participa do jogo político servindo às lideranças dos partidos mais influentes e aos donos do capital. As ações policiais batizadas exibiram o vetusto costume que ainda sobrevive: uso privado do aparelho de segurança pública. A população conhece, por experiência e de modo difuso, esse fato social: algumas pessoas tratadas com rigor pela polícia enquanto outras são tratadas de modo condescendente.
No ministério público, verifica-se o mesmo fenômeno. Sob o prisma institucional, indiscutível a relevância do ministério público para a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Promotor da ação penal pública, o ministério público agora também o é da ação civil pública em defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. O desvio ocorre na atuação dos seus membros nos casos concretos. A experiência forense mostra como as preferências pessoais influem na atividade dos membros da corporação. Daí, o legislador constituinte haver outorgado legitimidade ao cidadão para propor ação privada nos crimes de ação pública na hipótese de omissão do ministério público (CR 5º, LIX). A operação “lava-jato” mostrou a postura desabrida dos promotores numa região onde os tucanos imperam e nutrem ódio mortal à minoria petista. O alarde da operação mostra açodamento, cor partidária e prisões arbitrárias. O promotor ocupa o pólo ativo da relação processual penal. Deve, pois, ser tratado como parte no mesmo nível do defensor que ocupa o pólo passivo. Essa igualdade é da essência da vida democrática e do devido processo jurídico. A posição do promotor como parte não significa que tenha de ser tendencioso. Por isto mesmo, na esfera penal, o promotor, diante do material probatório de que dispõe, tanto pode pedir a condenação como a absolvição do réu.
No processo judicial, não cabe ao juiz prestar auxílio às partes. Embora cônscio da importância do combate ao crime, o juiz tem o dever de: (1) permanecer eqüidistante das partes como garantia da justa aplicação da lei; (2) examinar os requerimentos do delegado, do promotor e do defensor com a mesma disposição de ânimo; (3) decidir com coragem e serenidade, sem subterfúgios e sem misturar a judicatura com o credo ideológico ou religioso.
A Constituição da República (CR), a lei, a jurisprudência, os princípios gerais do direito, os fatos que acontecem na sociedade ordinariamente, a experiência de vida, são fatores que entram na ponderação judicial. O deferimento ou indeferimento dos requerimentos pelo juiz deve atender ao interesse, coletivo ou individual, preponderante na ocasião, sempre em consonância com a moral e o direito. Há juízes que se deixam seduzir pelos holofotes, por opiniões publicadas na imprensa, envolvem-se nos procedimentos persecutórios em conluio com a polícia e o ministério público. Em Foz do Iguaçu, na década de 1970, havia um juiz substituto que participava de diligência policial para efetuar prisão. Na capital do Rio de Janeiro, na década de 1980, havia uma juíza de vara criminal com perfil inquisitório. Juiz do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso apelidado de “mensalão”, mais parecia delegado de polícia e promotor, ansioso por desempenhar o papel de herói, envaidecido com os encômios oriundos da imprensa e dos opositores ao governo federal. O juiz que preside a operação “lava-jato” parece enquadrar-se nesse modelo. Certamente, haverá outros magistrados que também gostam de atuar em parceria com a polícia e com o ministério público, afastando-se do dever de imparcialidade próprio da função judicante. A censurável conduta agrava-se quando motivada por interesse político-partidário, em frontal desafio à vedação constitucional (CR 95, p.ú., III).
A instância superior poderá devolver a liberdade às pessoas presas. A prisão preventiva e o sigilo processual não devem se eternizar sem ferir direitos assegurados aos cidadãos pela CR. Neste sentido, a jurisprudência do STF sintoniza com as seguintes normas constitucionais: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens, sem o devido processo legal; ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança; a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária.
A prisão figura entre as espécies de pena previstas na legislação brasileira. A prisão preventiva é uma execução penal antecipada permitida por lei para garantia das ordens pública e econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Para decretá-la são necessários: (1) juiz natural; (2) prova da existência do crime. (3) indício suficiente da autoria; (4) situação de fato a exigir a privação da liberdade. Apesar da previsão legal, esse tipo de prisão conserva seu caráter de excepcional violência ao privar de liberdade alguém cuja culpa ainda não foi reconhecida por sentença penal condenatória transitada em julgado. O juiz deve refrear a tentação de prender pessoas só para: (1) dessedentar o público ávido por vingança e punição; (2) satisfazer a imprensa ávida por notícias sensacionalistas; (3) atender aos caprichos de facções políticas ou do poder econômico; (4) aparecer como paladino do direito e da justiça.         
Na administração pública, a regra é a publicidade e a exceção é o sigilo, consoante o sistema republicano democrático adotado pelo legislador constituinte. A transparência dos negócios públicos e a prestação de contas são necessárias ao controle pela sociedade. As sessões e audiências dos órgãos judiciários devem ser públicas. O sigilo será permitido para proteger o direito à intimidade do interessado, desde que não prejudique o interesse público à informação (CR 93, IX). A publicidade e a impessoalidade são princípios obrigatórios para a administração pública (o que inclui a atividade policial). A publicidade dos atos, programas, obras, serviços, campanhas dos órgãos públicos, deverá revestir o caráter educativo, ou informativo, ou de orientação social, sendo vedados símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos (CR 37 caput + §1º).
Quando o sigilo for imprescindível à segurança da sociedade ou do Estado, os órgãos públicos poderão negar acesso às informações. Quanto aos atos processuais, a lei poderá restringir a respectiva publicidade se assim o exigir a defesa da intimidade ou o interesse social (CR 5º, XXXIII + LX). No inquérito, a autoridade deve assegurar o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade (CPP 20). Esse dever não servirá de pretexto para abuso, nem para frustrar o exercício do direito à informação (CR 5º, XIV + 220). Se, da publicidade do ato processual, puder resultar escândalo, grave inconveniente, ou perigo de perturbação da ordem, o juiz poderá decretar o sigilo (portas fechadas, CPP 792, §1º). A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, celebrada em São José da Costa Rica, em 22/11/1969, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo decreto 678/1992, dispõe: O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça (art.8º, 5).
Ao decretar prisão preventiva ou sigilo, a autoridade deve explicar em que consiste a ameaça aos bens protegidos, descrever quais os fatos que caracterizam o interesse a ser protegido, arrolar os elementos da intimidade em jogo, indicar a situação real de perigo para a ordem pública, e assim por diante. Repetir, simplesmente, as palavras do texto constitucional ou legal, sem os devidos esclarecimentos e sem expor a real necessidade das medidas restritivas à liberdade de locomoção e ao direito à informação, equivale a decidir de forma arbitrária e ilegal.

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