EUROPA (1600 a 1800). Continuação.
A pressão social fazia do humano um elemento do ente
coletivo mergulhado na objetiva consciência comunitária como acontecia na tribo
e continuou a acontecer na cidade e no império. Os povos orientais mantinham o
sentimento de união íntima a um todo cósmico, fenômeno cultural que explica a
duradoura vigência de regimes autocráticos e o reverencial respeito à
autoridade. Nos povos ocidentais operou-se mudança em direção ao
individualismo. Após o advento do cristianismo, a consciência da
individualidade ampliou-se e se tornou mais aguda. Apesar da sua origem
oriental, a doutrina cristã vingou no solo ocidental com pronunciado sentido
humanitário ao valorizar o ser humano como individualidade anímica e não apenas
como partícula de um organismo cósmico. Essa doutrina acentua a dignidade da
pessoa humana; prega a igualdade entre os seres humanos sob a paternidade
divina, o que se afina com um modo de vida democrático. No plano histórico, a
igreja cristã adotou em sua organização clerical o modelo imperial romano e
conviveu com o regime autocrático durante toda a Idade Média. A igreja foi
organizada hierarquicamente tendo na base os crentes, no meio a casta
sacerdotal e na cúpula o papa. Contrariando a separação entre poder secular e
poder espiritual preconizada por Jesus (a César o que é de César, a Deus o
que é de Deus) o clero estendeu o seu poder sobre reis e imperadores,
interferindo nos negócios de Estado.
A revolução
comercial iniciada no século XV, que incluiu as grandes navegações de
portugueses e espanhóis em busca de novas rotas para o comércio, simboliza o
novo capitalismo, cujos lineamentos (lucro, grandes empresas, economia de
mercado, trocas monetárias, trabalho assalariado) desenhavam-se desde o século
XII, com a paulatina desintegração do feudalismo. A separação entre ética
e economia ocorreu no plano dos fatos antes de ganhar fundamento
teórico. Goethe percebeu este divórcio ao afirmar que o homem de ação não tem consciência e que esta é própria do homem contemplativo. Certamente, o poeta
alemão referia-se à consciência moral e não à consciência como fenômeno cognitivo
natural. O lucro e os juros perderam as vestes do pecado. A reação mais
vigorosa aos freios postos pela igreja católica à conduta dos crentes em geral
e à atividade dos comerciantes e banqueiros em particular, aconteceu no século
XVI com a revolução protestante
iniciada por Lutero. O individualismo aprofundou-se com amparo na teologia
calvinista.
A partir da revolução comercial e da revolução protestante o
individualismo torna-se possessivo, germe subjetivo do capitalismo selvagem. A
nova e poderosa classe social européia (burguesia protestante) rebela-se contra
a supremacia do papa e do imperador e empreende luta pela liberdade de religião,
de ação e de pensamento. Em oposição ao universalismo da igreja e do império
(catolicismo) essa burguesia defende o nacionalismo, a existência autônoma do
grupo nacional e o direito de cada nação se constituir em Estado (princípio das
nacionalidades). A pretendida autonomia política da nação incluía o poder
absoluto do rei e a uniformização da moeda, dos pesos e medidas, das práticas
administrativas e das leis. O fortalecimento do rei nacional significava: (1)
subordinação dos senhores feudais; (2) independência em relação ao papa e ao
imperador; (3) organização de exército permanente; (4) produção do direito; (5)
centralização da justiça e da tributação.
O caminho para a burguesia européia concretizar aspirações
de domínio econômico e político e de preeminência social foi desbastado por
dois fatores: (1) descontentamento dos camponeses com as autoridades
eclesiásticas e seculares; (2) rivalidade entre a autoridade eclesiástica e a
autoridade secular. Na França, o movimento culminou com violenta revolução
política (1789). Na opinião de Saint-Just, intelectual jacobino da revolução
francesa, o século XVIII deve ser colocado no Panteão. O revolucionário abade
Siéyès elaborou a teoria que distingue poder
constituinte (político) e poder
constituído (jurídico). O primeiro pertence à nação e o segundo ao
governante que deve exercê-lo dentro da legalidade posta pelo povo. Estribados
nessa teoria, os revolucionários implantaram ordem democrática fundada na
tríade: liberdade, igualdade,
fraternidade. Eles promulgaram a declaração dos direitos do homem e do cidadão como bússola para o governo da nação. A declaração de
direitos refere-se ao homem como espécie natural e ao cidadão
como pessoa vinculada a um Estado. Essa declaração revestiu caráter universal e
se revelou uma das maiores conquistas do mundo civilizado. A revolução francesa
com sua doutrina filosófica, política e jurídica repercutiu no mundo. Os
Estados europeus surfaram na onda nacionalista e adotaram constituições
escritas (salvo a Inglaterra). As colônias da América Latina, à medida que
obtinham independência da Espanha e de Portugal, elaboravam as suas próprias
constituições (1801 a
1900). O reino brasileiro seguiu o modelo europeu (unitário e monárquico) sob a
tutela discreta da Inglaterra e adotou o nome de Império do Brazil.
Do movimento constitucionalista
europeu e americano decorreu um novo conceito de Constituição. Do ponto de
vista ontológico, todo Estado tem uma constituição, que é o seu modo de ser e
de existir no mundo, com um território próprio, povo, governo e regras oriundas
dos costumes, dos atos dos legisladores, das decisões dos tribunais e das obras
dos jurisconsultos. Paralelo ao conceito ontológico surge com o citado
movimento o conceito deontológico: documento escrito, racional, sistemático,
elaborado e promulgado pelo sujeito do poder constituinte, contendo as regras
de organização do Estado e a declaração dos direitos fundamentais dos
indivíduos. Passou-se dos princípios emanados dos costumes historicamente
sancionados e das leis esparsas escritas ou não, às regras fundamentais
concentradas em um documento escrito para maior segurança dos governados.
Até o
século XVIII, na Europa, a vida doméstica e social era dominada pela crença
religiosa cristã (católica + protestante). Depois, passou a depender mais do
jogo das probabilidades. A partir do século XIX, a estatística de população
humana assume grande importância em virtude das investigações científicas para determinar
as leis do comportamento social (sociologia). Os jogos de azar e a organização
do seguro são estudados para fundamentar a teoria da probabilidade. O modelo
dos jogos de azar foi utilizado como modelo físico dos fenômenos naturais. Os
cientistas verificaram que várias combinações de caracteres hereditários ocorrem
em proporções numéricas. Na sua fase inicial, o seguro era um jogo, uma forma
de especulação. Nos séculos XIV e XV, o setor financeiro começa a exercer poder
mediante apólices de seguro, empréstimos a juros elevados, transações de
crédito, apostas no tempo de vida do indivíduo e no sexo dos nascituros,
visando ao ganho e divertimento. As transações eram altamente especulativas
fundadas na probabilidade: aquele que mais tem, mais ganhará; aquele que menos
tem, perderá o pouco que tem. A idéia de freqüência entra no cálculo
probabilístico. Com base no número de vezes que algo acontece, verifica-se a
chance de tornar a acontecer. Diferente do conceito vulgar, a probabilidade
matemática é sempre uma fração. Quanto mais a ciência se aproxima da verdade,
mais estreito fica o espaço da probabilidade. A regularidade observada nas
relações sociais permite o cálculo estatístico embora passível de equívocos. No
cálculo da renda per capita, por
exemplo, o resultado é enganoso do ponto de vista material. A renda do operário
e a renda do capitalista são colocadas no mesmo nível quando na realidade
aquela é bem menor do que esta.
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