domingo, 18 de maio de 2014

GOVERNO BANDIDO




Era uma vez, nos primórdios da era cristã, nas longínquas terras do norte da África, um rico e bonito jovem chamado Aurelius Augustinus que muito gostava da esbórnia. Ele quase morreu de tristeza e de saudade quando o seu íntimo e querido amigo faleceu. Então, casou-se com uma linda moça de sonhadores olhos verdes, gerou filhos gorduchinhos de rosada pele, converteu-se ao cristianismo, ingressou na carreira eclesiástica com o nome de Agostinho, tornou-se bispo e santo. Inteligente e culto, ele escreveu belas coisas que agradaram a igreja. Agostinho dizia que se nos reinos faltasse justiça, eles nada mais seriam do que sociedades de bandidos, societas sceleris no seu latim castiço. As quadrilhas – dizia ele – são pequenos reinos cujos membros comandados por um chefe vinculam-se por pacto social e dividem o saque nos termos de uma lei aceita por todos. O santo bispo percebera a existência desse tipo de associação pactuada entre bandidos mediante regras que formam um código de honra a que ficam submetidos os seus membros. Esta associação incluía um tribunal privado. Ele notou que os associados eram punidos por esse tribunal próprio quando violavam o código de honra. Notou, também, esta particularidade: se a quadrilha fosse de criminosos políticos, o julgamento interno era menos rigoroso e a violação do código raramente punida. O santo percebeu que honradez não era virtude cultivada entre os políticos. Agostinho sentia o eterno presente ao viajar no tempo mediante projeção da alma no passado e no futuro. Numa dessas viagens facilitada pela santidade, ele captou cenas e diálogos na seara política brasiliense. Assistiu a um interessante debate entre dois grupos de pessoas de cores diferentes. O grupo de cor vermelha declarava-se dos trabalhadores. O grupo de cor azul nada declarou. O santo deduziu: “O grupo azul deve ser dos vagabundos. Nesse reino todos estão representados. Vigora a democracia”.
O grupo vermelho acusava o azul: Você já roubou o suficiente. Ficou no governo do país por oito anos, apossou-se do dinheiro público, vendeu o patrimônio estratégico construído com o sangue e o suor do povo, recebeu polpudas comissões. Dizia um ministro: “comissão pra cá, comissão pra lá”, nas vendas, nas compras, nas licitações, nos licenciamentos, nas tarifas e outras maracutaias. Agora é minha vez. Comigo no governo isto vai mudar. Quem roubou, roubou; quem não roubou, não rouba mais. Este país tomará o rumo da decência.       
O grupo azul mais cético do que conformado respondeu: Tudo bem. O espírito da pátria está com você neste momento, mas voltarei quando a força do universo estiver comigo.
A quadrilha de ladrões que estava no governo foi substituída pelo grupo vermelho que se vangloriava do seu elevado nível de moralidade. Agostinho ficou feliz com aquela visão e a perspectiva de um governo honesto para aquele país que amargara 500 anos de safadeza. O santo bispo descansou. Certa madrugada de nublado céu, enquanto orava com fervor, Agostinho teve outra visão em êxtase espiritual: extensa praça com duas torres altas, retangulares e paralelas; ao lado, enorme bacia de argila. Ele pensou: “modo prático de captar água da chuva; como a bacia está seca, a água deve seguir para algum reservatório subterrâneo”. Três entidades poderosas confrontavam-se naquela praça. Ao fundo, o contorno de uma igreja. Agostinho ouviu som de vozes, palavras vertidas para o latim pelo mecanismo cósmico de tradução simultânea. O tom era irritadiço. Aos poucos, surgiu a imagem dos debatedores. Eram os dois grupos da visão anterior. Desta vez, havia dois espectadores: um grupo amarelo e um grupo verde.
O grupo azul acusava o vermelho: Você ficou por doze anos no governo do país e já roubou mais do que o suficiente. Agora é minha vez
O grupo vermelho contestava: Não vejo amparo no rodízio pretendido por você.
O azul ponderava: Você e eu celebramos tacitamente um pacto de revezamento na tua primeira eleição. “Pacta sunt servanda”. Os pactos tacitamente celebrados são válidos tanto do ponto de vista jurídico como do ponto de vista moral e político, consoante princípio consuetudinário universal.
Nervoso e impaciente o vermelho respondia: Pacto oral uma ova! Para mim, só vale o que está escrito – e olhe lá! Eu não assinei pacto tudinário algum, seja com “sue” ou sem “sue”. Vou prosseguir no governo por mais tempo. Ainda não roubei o suficiente. Você roubou muito mais do que eu.
Em tom conciliador o azul propõe: Pois bem. Façamos uma auditoria para esclarecer esses dois pontos: 1) Qual de nós dois roubou mais; 2) Qual dos dois governos foi o pior: o meu ou o teu. Cada um de nós indica três auditores. Se houver empate, o eleitor decidirá.     
Com ameaçadores punhos fechados o vermelho vociferou: Não farei auditoria porra nenhuma! Vão se catar “seus” ladrões engravatados e de colarinho engomado! O governo é meu, o tesouro é meu e vou usufruir o que é meu por muito tempo porque a massa de eleitores vota em mim.  
Exibindo despeito e desapontamento o azul brada: Ah, então é assim! Você quebra o pacto fiduciário tacitamente celebrado, viola o código de honra e fica por isso mesmo! Compra o enorme eleitorado pobre e ignorante com bolsas disto e daquilo e me deixa sem chance de disputar eleição em igualdade de condições. Para mim só restou o pequeno eleitorado constituído de pessoas ricas e de algumas da classe média. Isto não é justo. A democracia está ameaçada. Vou defendê-la, custe o que custar. A grande imprensa está do meu lado. Além dos meus simpatizantes, também vou colocar os tanques nas ruas. Vocês verão o que é bom pra tosse, “seus” ladrões travestidos de operários, comunistas safados!
O grupo amarelo intervém com manemolência: Olha aí, rapaziada! Calma! Há pasto pra todos. Sigam a máxima: “roube com moderação”. Caso a moderação seja difícil, adotem o lema ademarista: “rouba, mas faz”; senão, um dia, a casa cai. O voto do nosso grupo vale ouro e pode decidir eleição. Sem o nosso voto, nem você azul, nem você vermelho, colocam as mãos no tesouro. Somente a minha voz abre Sézamo. Anotem aí: o nosso grupo quer tênis de grife, tablete, telefone celular, laptop, TV tela plana grande e dez salários mínimos em dinheiro, “per capita”. Mercadoria e dinheiro entregues antes das eleições, caso contrário, vocês não terão o nosso voto. É isso aí, gente!   
O grupo verde se pronuncia escandalizado: Santo deus! Conciliação improvável. Devemos escolher entre duas quadrilhas de ladrões qual delas governará o nosso país nos próximos anos. A senha da caverna de Ali Babá está com o grupo amarelo. Se não escolhermos os larápios do grupo azul haverá o risco de nova ditadura militar. Ninguém merece! Temos direito a uma quarta via. Vamos organizar um partido para governar este país com a sigla PHDPP: Partido da Honestidade Democrática das Putas e dos Presidiários”. Nas ruas, nos prostíbulos e nas prisões recrutaremos aqueles que governarão o nosso país com honradez e decência, coisa que você azul e você vermelho jamais fizeram. E quanto a você amarelo, faremos na tua caverna o mesmo que fizeram na Serra do Cachimbo.  
Ao sair do transe hipnótico auto-induzido, Agostinho suspirou amargurado. Não gostou do que viu e ouviu. Com as mãos cruzadas sobre o pançudo ventre e para se consolar, assim pensou: “Ainda bem que isto acontecerá só daqui a 1.600 anos. Depois, envolto na aura da santidade, Agostinho ajoelhou-se, juntou as mãos, rezou e formulou um pedido a deus: “Senhor, o teu filho, Jesus Cristo, foi misericordioso com as prostitutas e com os condenados pela autoridade secular; permita, pois, que nas oportunas calendas, o PHDPP se organize e vença as eleições naquele reino para o bem daquele povo”.

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