Era uma vez, nos primórdios da era cristã, nas longínquas
terras do norte da África, um rico e bonito jovem chamado Aurelius Augustinus
que muito gostava da esbórnia. Ele quase morreu de tristeza e de saudade quando
o seu íntimo e querido amigo faleceu. Então, casou-se com uma linda moça de sonhadores
olhos verdes, gerou filhos gorduchinhos de rosada pele, converteu-se ao
cristianismo, ingressou na carreira eclesiástica com o nome de Agostinho, tornou-se
bispo e santo. Inteligente e culto, ele escreveu belas coisas que agradaram a
igreja. Agostinho dizia que se nos reinos faltasse justiça, eles nada mais seriam do que sociedades de bandidos, societas sceleris no seu latim castiço.
As quadrilhas – dizia ele – são pequenos reinos cujos membros comandados por um
chefe vinculam-se por pacto social e dividem o saque nos termos de uma lei
aceita por todos. O santo bispo percebera a existência desse tipo de associação
pactuada entre bandidos mediante regras que formam um código de honra a que ficam
submetidos os seus membros. Esta associação incluía um tribunal privado. Ele notou
que os associados eram punidos por esse tribunal próprio quando violavam o código
de honra. Notou, também, esta particularidade: se a quadrilha fosse de criminosos
políticos, o julgamento interno era menos
rigoroso e a violação do código raramente punida. O santo percebeu que honradez
não era virtude cultivada entre os políticos. Agostinho sentia o eterno
presente ao viajar no tempo mediante projeção da alma no passado e no futuro.
Numa dessas viagens facilitada pela santidade, ele captou cenas e diálogos na
seara política brasiliense. Assistiu a um interessante debate entre dois grupos
de pessoas de cores diferentes. O grupo de cor vermelha declarava-se dos trabalhadores.
O grupo de cor azul nada declarou. O santo deduziu: “O grupo azul deve ser dos
vagabundos. Nesse reino todos estão representados. Vigora a democracia”.
O grupo vermelho
acusava o azul:
Você já roubou o suficiente. Ficou no
governo do país por oito anos, apossou-se do dinheiro público, vendeu o
patrimônio estratégico construído com o sangue e o suor do povo, recebeu
polpudas comissões. Dizia um ministro: “comissão pra cá, comissão pra lá”, nas
vendas, nas compras, nas licitações, nos licenciamentos, nas tarifas e outras
maracutaias. Agora é minha vez. Comigo no governo isto vai mudar. Quem roubou,
roubou; quem não roubou, não rouba mais. Este país tomará o rumo da
decência.
O grupo azul mais
cético do que conformado respondeu: Tudo bem. O
espírito da pátria está com você neste momento, mas voltarei quando a força do
universo estiver comigo.
A quadrilha de ladrões que estava no governo foi
substituída pelo grupo vermelho que se vangloriava do seu elevado nível de
moralidade. Agostinho ficou feliz com aquela visão e a perspectiva de um
governo honesto para aquele país que amargara 500 anos de safadeza. O santo
bispo descansou. Certa madrugada de nublado céu, enquanto orava com fervor,
Agostinho teve outra visão em êxtase espiritual: extensa praça com duas torres
altas, retangulares e paralelas; ao lado, enorme bacia de argila. Ele pensou: “modo
prático de captar água da chuva; como a bacia está seca, a água deve seguir
para algum reservatório subterrâneo”. Três entidades poderosas confrontavam-se naquela
praça. Ao fundo, o contorno de uma igreja. Agostinho ouviu som de vozes,
palavras vertidas para o latim pelo mecanismo cósmico de tradução simultânea. O
tom era irritadiço. Aos poucos, surgiu a imagem dos debatedores. Eram os dois
grupos da visão anterior. Desta vez, havia dois espectadores: um grupo amarelo
e um grupo verde.
O grupo azul
acusava o vermelho: Você ficou por doze anos no
governo do país e já roubou mais do que o suficiente. Agora é minha vez.
O grupo vermelho
contestava: Não vejo amparo no rodízio pretendido por
você.
O azul ponderava: Você
e eu celebramos tacitamente um pacto de revezamento na tua primeira eleição. “Pacta
sunt servanda”. Os pactos tacitamente celebrados
são válidos tanto do ponto de vista jurídico como do ponto de vista moral e político,
consoante princípio consuetudinário universal.
Nervoso e impaciente
o vermelho respondia: Pacto oral uma ova! Para mim, só vale o que está escrito – e
olhe lá! Eu não assinei pacto tudinário
algum, seja com “sue” ou sem “sue”. Vou prosseguir no governo por mais tempo.
Ainda não roubei o suficiente. Você roubou muito mais do que eu.
Em tom
conciliador o azul propõe: Pois bem. Façamos uma auditoria
para esclarecer esses dois pontos: 1) Qual de nós dois roubou mais; 2) Qual dos
dois governos foi o pior: o meu ou o teu. Cada um de nós indica três auditores.
Se houver empate, o eleitor decidirá.
Com ameaçadores punhos
fechados o vermelho vociferou: Não farei
auditoria porra nenhuma! Vão se catar
“seus” ladrões engravatados e de
colarinho engomado! O governo é meu,
o tesouro é meu e vou usufruir o que é meu por muito tempo porque a massa de
eleitores vota em mim.
Exibindo
despeito e desapontamento o azul brada: Ah, então é
assim! Você quebra o pacto fiduciário
tacitamente celebrado, viola o código de honra e fica por isso mesmo! Compra o enorme eleitorado pobre e
ignorante com bolsas disto e daquilo e me deixa sem chance de disputar eleição
em igualdade de condições. Para mim só restou o pequeno eleitorado constituído
de pessoas ricas e de algumas da classe média. Isto não é justo. A democracia
está ameaçada. Vou defendê-la, custe o que custar. A grande imprensa está do meu
lado. Além dos meus simpatizantes, também vou colocar os tanques nas ruas. Vocês
verão o que é bom pra tosse, “seus”
ladrões travestidos de operários, comunistas safados!
O grupo amarelo intervém
com manemolência: Olha aí, rapaziada! Calma! Há pasto pra todos. Sigam a máxima: “roube com moderação”. Caso a moderação seja difícil, adotem o lema
ademarista: “rouba, mas faz”; senão,
um dia, a casa cai. O voto do nosso grupo vale ouro e pode decidir eleição. Sem
o nosso voto, nem você azul, nem você vermelho, colocam as mãos no tesouro. Somente
a minha voz abre Sézamo. Anotem aí: o nosso grupo quer tênis de grife, tablete,
telefone celular, laptop, TV tela plana grande e dez salários mínimos em
dinheiro, “per capita”. Mercadoria e
dinheiro entregues antes das eleições, caso contrário, vocês não terão o nosso
voto. É isso aí, gente!
O grupo verde se
pronuncia escandalizado: Santo deus! Conciliação improvável. Devemos escolher entre duas quadrilhas de
ladrões qual delas governará o nosso país nos próximos anos. A senha da caverna
de Ali Babá está com o grupo amarelo. Se não escolhermos os larápios do grupo
azul haverá o risco de nova ditadura militar. Ninguém merece! Temos direito a uma quarta via. Vamos organizar
um partido para governar este país com a sigla PHDPP: “Partido da Honestidade Democrática das Putas e dos Presidiários”. Nas ruas, nos prostíbulos e nas prisões recrutaremos
aqueles que governarão o nosso país com honradez e decência, coisa que você
azul e você vermelho jamais fizeram.
E quanto a você amarelo, faremos na tua caverna o mesmo que fizeram na Serra do
Cachimbo.
Ao sair do transe hipnótico auto-induzido, Agostinho
suspirou amargurado. Não gostou do que viu e ouviu. Com as mãos cruzadas sobre
o pançudo ventre e para se consolar, assim pensou: “Ainda bem que isto
acontecerá só daqui a 1.600 anos”. Depois,
envolto na aura da santidade, Agostinho ajoelhou-se, juntou as mãos, rezou e
formulou um pedido a deus: “Senhor, o teu filho, Jesus Cristo, foi
misericordioso com as prostitutas e com os condenados pela autoridade secular;
permita, pois, que nas oportunas calendas, o PHDPP se organize e vença as
eleições naquele reino para o bem daquele povo”.
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