domingo, 4 de maio de 2014

CASO COLLOR



Na sessão do dia 24.04.2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ação penal proposta pelo Ministério Público (MP) contra o senador Fernando Affonso Collor de Mello. Os fatos tipificados como crimes datam da época em que o réu era presidente da república (1991). No exercício desse cargo, o acusado teria ordenado ao chefe de gabinete utilizar-se de empresas de publicidade para pagar pensão alimentícia a um filho havido fora do casamento. A persecução criminal durou 22 anos. Da denúncia (petição inicial da ação penal) constavam dois crimes que prescreveram. Nisto concordaram a acusação, a defesa e os juízes. Restou apenas o crime de peculato. O réu foi absolvido por unanimidade. O STF reconheceu a insuficiência de prova para a condenação. Isto significa que o tribunal admitiu implicitamente a existência da infração penal e a probabilidade de o réu dela haver participado. A ação penal em tela suscita algumas reflexões.
I. Quanto à prova: o tribunal parlamentar que condenou Collor é menos exigente do que o tribunal judiciário que o absolveu.
II. Quanto ao critério de julgamento: o tribunal parlamentar é mais sensível à opinião pública e se guia conforme a conveniência e a oportunidade enquanto o tribunal judiciário guia-se pelo senso de justiça e estritamente pela prova produzida. Se o tribunal parlamentar entender oportuno e conveniente para resguardo do interesse nacional ou por motivo político partidário, absolve o acusado mesmo que a prova seja robusta ou condena-o mesmo que a prova seja raquítica. Parlamentares que ficaram fora da “República das Alagoas” queriam derrubar o presidente. Para tanto, utilizaram comissão parlamentar de inquérito, imprensa, polícia civil, ministério público e judiciário. O presidente batera de frente com a indústria automobilística. Desassossegaram a nação. O episódio serviu para os futuros presidentes colocarem as barbas de molho. Fernando Henrique e Luiz Inácio abriram aos parlamentares as porteiras de acesso ao banquete independente de partido. No governo deles não houve “república” paulista ou pernambucana.
III. Quanto ao processo criminal no STF: o ouropel do relatório e voto da relatora denuncia a falta de experiência judicante anterior à sua nomeação. Circunlóquios, repetições mascadas, prolixidade, compulsão de justificar miudamente cada passo da duração do processo e da sua decisão, tropeços constantes na leitura, tudo a revelar aquela inexperiência. O excesso de análise, de explicação e de justificação, indica insegurança, tergiversação, manobra cerebrina, falta de eqüidistância, que o julgador busca ocultar através do palanfrório. Sem estes vícios, o relatório e voto teriam 2/3 a menos de páginas e uma leitura serena e pausada que gastaria menos de 30 minutos. Comedimento, serenidade, bom senso, raciocínio lógico, clareza, são virtudes que os jurisdicionados esperam ver no magistrado, além do espírito de justiça e do domínio da ciência e da técnica do direito.
IV. Quanto ao direito aplicado: a absolvição devia se limitar ao crime de peculato. No entanto, a maioria dos ministros incluiu no decreto absolutório dois crimes já prescritos. Juridicamente, a minoria (ministros Joaquim, Rosa e Teori) ao votar pela exclusão desses crimes do dispositivo absolutório, estava correta e em sintonia com a jurisprudência do tribunal (decisões que se repetem há mais de 100 anos sobre a mesma questão de direito). Prescrição é instituto jurídico de efeito extintivo que resguarda a estabilidade das relações sociais e os direitos fundamentais à segurança e à liberdade (no mesmo diapasão do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada). A incidência da prescrição depende da exaustão de um prazo fixado na lei. O credor deve exercer o seu direito dentro do prazo legal sob pena de nada mais poder exigir do devedor. Na esfera penal, o estado deve exercer o seu direito de punir dentro do prazo fixado por lei. A pretensão de punir é manifestada mediante petição elaborada pelo MP (denúncia) e dirigida ao órgão judiciário competente. A fluência do prazo prescricional a partir dos fatos é interrompida pela admissão da denúncia por órgão judiciário. A contagem do prazo recomeça a partir daí. Exaurido o prazo sem decisão do judiciário, ocorre prescrição, pouco importando o estágio em que se encontra o processo criminal. O estado perde o seu direito de punir no caso concreto. Perdido o direito, a pretensão à sua efetividade não pode mais prosperar. O processo respectivo se extingue por perda de objeto. A jurisdição invocada inicialmente pelo MP não pode mais ser prestada para condenar ou absolver. Não há mais controvérsia a ser solucionada judicialmente. O pedido de absolvição formulado pelo réu na peça de defesa está condicionado à pretensão punitiva do autor da ação penal. Extinta a pretensão punitiva, extinto fica o direito do estado de punir no caso sub judice e prejudicado fica o pleito de absolvição do réu. Isto decorre do princípio do contraditório que governa o processo jurídico.
V. Quanto à política judiciária: eventual sentimento de culpa dos juizes pela morosidade nos trâmites do processo não deve obnubilar o pensamento ao ponto de lançar na lixeira jurisprudência mansa e pacífica e conceitos cristalizados na ciência jurídica ocidental que se mantêm harmônicos com a cultura do país. Destarte, no caso Collor, o STF, ao avançar no julgamento apesar da prescrição, atropelou a lógica, o bom senso e o direito. Para atender a um interesse individual, colocou-se contra o interesse público. Do ponto de vista político e religioso compreende-se o interesse do réu a uma sentença que o absolva ao invés de declarar a prescrição. No entanto, o Poder Judiciário existe para resolver controvérsias e aplicar a lei no devido processo – não mediante decisões políticas – e sim por decisões jurídicas. Ao Legislativo cabem as decisões políticas. Esta é a dinâmica dos poderes no estado democrático de direito. Nos termos da Constituição escrita, o Brasil assumiu esse tipo de estado em 1988. O prussiano Ferdinand Lassalle (1825 a 1864), economista, orador, socialista, dizia que a Constituição escrita é uma folha de papel onde estão – ou deviam estar – registrados os fatores reais do poder. Como diz o vulgo: o papel tudo aceita. Político e juiz da corte suprema dos EUA (1910 a 1916), Charles Evans Hughes disse, certa vez, que a Constituição é o que aquele tribunal diz que ela é. Parece que o STF segue essa trilha. Sendo mero papel, a Constituição é um documento e não uma lei fundamental. Por outro lado, em sendo sintética, a Constituição dos EUA permite elasticidade na sua interpretação e aplicação. Em sendo analítica, com detalhamento explícito dos seus princípios e regras, a Constituição do Brasil permite menor elasticidade. “No entanto, ela se move”.    

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