Na sessão do dia 24.04.2014, o Supremo Tribunal
Federal (STF) julgou a ação penal proposta pelo Ministério Público (MP) contra o
senador Fernando Affonso Collor de Mello. Os fatos tipificados como crimes
datam da época em que o réu era presidente da república (1991). No exercício
desse cargo, o acusado teria ordenado ao chefe de gabinete utilizar-se de
empresas de publicidade para pagar pensão alimentícia a um filho havido fora do
casamento. A persecução criminal durou 22 anos. Da denúncia (petição inicial da
ação penal) constavam dois crimes que prescreveram. Nisto concordaram a
acusação, a defesa e os juízes. Restou apenas o crime de peculato. O réu foi
absolvido por unanimidade. O STF reconheceu a insuficiência de prova para a
condenação. Isto significa que o tribunal admitiu implicitamente a existência
da infração penal e a probabilidade de o réu dela haver participado. A ação
penal em tela suscita algumas reflexões.
I. Quanto à
prova: o
tribunal parlamentar que condenou Collor é menos exigente do que o tribunal
judiciário que o absolveu.
II. Quanto ao
critério de julgamento: o tribunal parlamentar é mais sensível à opinião pública e se guia
conforme a conveniência e a oportunidade enquanto o tribunal judiciário guia-se
pelo senso de justiça e estritamente pela prova produzida. Se o tribunal
parlamentar entender oportuno e conveniente para resguardo do interesse
nacional ou por motivo político partidário, absolve o acusado mesmo que a prova
seja robusta ou condena-o mesmo que a prova seja raquítica. Parlamentares que
ficaram fora da “República das Alagoas” queriam derrubar o presidente. Para
tanto, utilizaram comissão parlamentar de inquérito, imprensa, polícia civil,
ministério público e judiciário. O presidente batera de frente com a indústria automobilística. Desassossegaram a nação. O episódio serviu
para os futuros presidentes colocarem as barbas de molho. Fernando Henrique e
Luiz Inácio abriram aos parlamentares as porteiras de acesso ao banquete
independente de partido. No governo deles não houve “república” paulista ou pernambucana.
III. Quanto ao
processo criminal no STF: o ouropel do relatório e voto da relatora denuncia a falta de
experiência judicante anterior à sua nomeação. Circunlóquios, repetições
mascadas, prolixidade, compulsão de justificar miudamente cada passo da duração
do processo e da sua decisão, tropeços constantes na leitura, tudo a revelar aquela
inexperiência. O excesso de análise, de explicação e de justificação, indica insegurança,
tergiversação, manobra cerebrina, falta de eqüidistância, que o julgador busca
ocultar através do palanfrório. Sem estes vícios, o relatório e voto teriam 2/3
a menos de páginas e uma leitura serena e pausada que gastaria menos de 30
minutos. Comedimento, serenidade, bom senso, raciocínio lógico, clareza, são
virtudes que os jurisdicionados esperam ver no magistrado, além do espírito de
justiça e do domínio da ciência e da técnica do direito.
IV. Quanto ao
direito aplicado: a absolvição devia se limitar ao crime de peculato. No entanto, a maioria
dos ministros incluiu no decreto absolutório dois crimes já prescritos.
Juridicamente, a minoria (ministros Joaquim, Rosa e Teori) ao votar pela
exclusão desses crimes do dispositivo absolutório, estava correta e em sintonia
com a jurisprudência do tribunal (decisões que se repetem há mais de 100 anos
sobre a mesma questão de direito). Prescrição
é instituto jurídico de efeito extintivo que resguarda a estabilidade das
relações sociais e os direitos fundamentais à segurança e à liberdade (no mesmo
diapasão do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada). A
incidência da prescrição depende da exaustão de um prazo fixado na lei. O
credor deve exercer o seu direito dentro do prazo legal sob pena de nada mais
poder exigir do devedor. Na esfera penal, o estado deve exercer o seu direito
de punir dentro do prazo fixado por lei. A pretensão de punir é manifestada
mediante petição elaborada pelo MP (denúncia) e dirigida ao órgão judiciário
competente. A fluência do prazo prescricional a partir dos fatos é interrompida
pela admissão da denúncia por órgão
judiciário. A contagem do prazo recomeça a partir daí. Exaurido o prazo sem
decisão do judiciário, ocorre prescrição, pouco importando o estágio em que se
encontra o processo criminal. O estado perde o seu direito de punir no caso
concreto. Perdido o direito, a pretensão à sua efetividade não pode mais
prosperar. O processo respectivo se extingue por perda de objeto. A jurisdição
invocada inicialmente pelo MP não pode mais ser prestada para
condenar ou absolver. Não há mais controvérsia a ser solucionada judicialmente.
O pedido de absolvição formulado pelo réu na peça de defesa está condicionado à
pretensão punitiva do autor da ação penal. Extinta a pretensão punitiva,
extinto fica o direito do estado de punir no caso sub judice e prejudicado fica o pleito de absolvição do réu. Isto
decorre do princípio do contraditório que governa o processo jurídico.
V.
Quanto à política judiciária:
eventual sentimento de culpa dos juizes pela morosidade nos trâmites do
processo não deve obnubilar o pensamento ao ponto de lançar na lixeira
jurisprudência mansa e pacífica e conceitos cristalizados na ciência jurídica
ocidental que se mantêm harmônicos com a cultura do país. Destarte, no caso
Collor, o STF, ao avançar no julgamento apesar da prescrição, atropelou a
lógica, o bom senso e o direito. Para atender a um interesse individual,
colocou-se contra o interesse público. Do ponto de vista político e religioso
compreende-se o interesse do réu a uma sentença que o absolva ao invés de declarar
a prescrição. No entanto, o Poder Judiciário existe para resolver controvérsias
e aplicar a lei no devido processo – não mediante decisões políticas – e sim
por decisões jurídicas. Ao Legislativo cabem as decisões políticas. Esta é a
dinâmica dos poderes no estado democrático de direito. Nos termos da
Constituição escrita, o Brasil assumiu esse tipo de estado em 1988. O prussiano
Ferdinand Lassalle (1825 a
1864), economista, orador, socialista, dizia que a Constituição escrita é uma
folha de papel onde estão – ou deviam estar – registrados os fatores reais do
poder. Como diz o vulgo: o papel tudo
aceita. Político e juiz da corte suprema dos EUA (1910 a 1916), Charles Evans
Hughes disse, certa vez, que a Constituição é o que aquele tribunal diz
que ela é. Parece que o STF segue essa trilha. Sendo mero papel, a
Constituição é um documento e não uma lei fundamental. Por outro lado, em sendo
sintética, a Constituição dos EUA permite elasticidade na sua interpretação e
aplicação. Em sendo analítica, com detalhamento explícito dos seus princípios e
regras, a Constituição do Brasil permite menor elasticidade. “No entanto, ela se move”.
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