sexta-feira, 16 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 8



Embora governado por leis inflexíveis, o mundo da natureza comporta certa margem de liberdade consistente no movimento das partículas de matéria e dos corpos soltos no espaço. Essa aparente independência de movimento dos seres gera a idéia de liberdade natural. Inteligência cósmica comanda a eventual união das partículas e a coexistência dos corpos. Sujeitos ao determinismo natural, os seres vivos são iguais perante as leis da natureza, embora fisicamente haja diferença; atuam no espaço e no tempo orientados por código genético; seguem o processo natural de conservação da espécie, reprodução, ciclo vital, com as suas propriedades sensíveis e de locomoção. Há estreita margem para a liberdade e larga margem aos instintos, tendências, condicionamentos, movimentos reflexos. O pássaro em pleno vôo ou saltitando de árvore em árvore, construindo seu ninho, buscando alimento e água no solo, passa a imagem de liberdade, porém ele atua sob o comando das leis da natureza. A sua liberdade consiste em atuar sintonizado com essas leis. O mesmo se diga das aves de arribação: percorrem distâncias enormes em determinadas épocas do ano, mas sempre seguem o mesmo itinerário. Cardumes de peixes sobem regularmente os rios para reprodução, sempre à mesma época. As formigas têm vida coletiva organizada, porém estão geneticamente programadas para um tipo de sociedade que não podem alterar. O mesmo acontece com as abelhas e outros irracionais.

Os humanos (animais racionais) sofrem o determinismo da natureza, porém, neste interferem pelo uso da razão e da vontade, ainda que dentro de limites. Nessa interferência consiste a liberdade de pensar, de querer e de agir, voltada para fins a que os humanos se determinam. Embora programados pelo instinto gregário, jungidos à vida em comunidade, os humanos podem mudar a organização política, econômica e social, como tem acontecido na história da humanidade. Há quem prefira ser anacoreta, passar privações como eremita, isolar-se do convívio social, exceção cujo fim é o fracasso. Os humanos não podem escapar da morte, mas podem prolongar a duração da vida; não podem escapar do instinto sexual, mas podem controlar a natalidade. Mudanças estruturais e institucionais na sociedade humana se operam através de milênios, de séculos ou de anos, conforme a velocidade do progresso no conhecimento técnico, científico e artístico em cada época e o empalidecer de mitos e crenças irracionais. A liberdade humana é esse poder de romper vínculos, de superar obstáculos, de ultrapassar limites, de se guiar por idéias e crenças racionais, de tornar efetiva a própria vontade, de decidir se muda ou se mantém o status quo.

Produto dessa evolução, a tríade liberdade + igualdade + fraternidade enunciada pela revolução francesa de 1789, entranhou-se na civilização ocidental e vem expressa no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10/12/1948: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. 

Esse mundo criado pelo ser humano governa-se por leis flexíveis alicerçadas em valores secretados pela experiência social (justiça, verdade, bondade, beleza, santidade). A necessidade de manter a vigência e a eficácia desses valores gera instituições estruturadas em regras morais, jurídicas e religiosas que balizam a liberdade. John Stuart Mill, escritor político inglês, em clássico ensaio publicado no século XIX, diz que a liberdade civil implica a natureza e os limites do poder que a sociedade exerce legitimamente sobre o indivíduo. A liberdade civil supõe uma liberdade natural lógica ou mesmo cronologicamente anterior. Mill cita a luta entre liberdade e autoridade no correr da história, desde a Grécia antiga até a Inglaterra do seu tempo (Da Liberdade. São Paulo, Ibrasa, 1963, pág.3/18). Na linha do pensamento de Mill e dos teóricos e políticos liberais, o legislador constituinte brasileiro adotou o princípio segundo o qual a liberdade não terá outro limite senão a lei. Tal liberdade consiste no direito de ser, ter, fazer, crer, escolher, locomover-se, reunir-se, associar-se, manifestar o pensamento, expressar a vontade e o sentimento, comunicar-se, dedicar-se a qualquer trabalho, ofício, profissão, atividade intelectual, científica e artística.  

Comum é valorizar o que se perdeu: pessoas, afetos, coisas, direitos. Com a liberdade não é diferente. Perdem-na total ou parcialmente, provisória ou permanentemente: (i) a pessoa submetida à vontade ou à autoridade de outrem; (ii) a pessoa que assume obrigações mediante cláusulas contratuais (livre para se manietar): (iii) o bebê ao ser enfaixado dos ombros aos pés; (iv) o escravo; (v) o condenado pelo juiz ao ser privado de direitos, recolhido à penitenciária, forçado a prestar serviços, e assim por diante.

O antagonismo entre a autoridade do governante e a liberdade do governado de que resulta o sacrifício desta última e que perdurou na civilização ocidental até a época moderna, perderia intensidade quando o governo fosse exercido por representantes do povo escolhidos pelo povo. Todavia, a experiência histórica mostrou que os representantes também abusam do poder, gerando descontentamento e tensão. Mecanismos jurisdicionais e políticos de controle e fiscalização se fizeram necessários, tais como: hábeas corpus, hábeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, ação popular, ação civil pública, ação direta de inconstitucionalidade de ato normativo, argüição de descumprimento de preceito fundamental, direito de petição, direito de representação, impeachment, prestação de contas, plebiscito, referendo, iniciativa popular, processo eleitoral.

Para desilusão dos que colocam o sentimento acima da razão (românticos) a corrupção e o abuso não desapareceram sob o regime democrático. O “povo no governo” foi apenas um sonho dos teóricos da Era das Luzes (Iluminismo). Os “representantes” do povo é que melhor desfrutam da liberdade. Aproveitam-se da soma de poderes que as leis fundamentais colocam em suas mãos para oprimir o representado (povo) com carga tributária abusiva e regras que obstam o pleno desenvolvimento das potencialidades físicas, morais, intelectuais, artísticas e espirituais das pessoas. Ecce homo.

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