Assim como os poetas, alguns cientistas também têm os
seus devaneios. Quando estudam a estrutura do cosmos ou buscam a menor
estrutura da matéria, surpreendem-se e se maravilham com algumas descobertas,
embora não possam expressá-las na linguagem comum. Utilizam linguagem
matemática. Ao se expressarem no vernáculo pisam na movediça areia das
conjecturas e vagueiam na fantasia.
Cosmologistas afirmam que a vida só foi possível
porque a evolução do cosmos, desde a explosão primordial (big bang), tomou um rumo programado para a emergência do ser
humano. A essa proposição teleológica denominam princípio antrópico. Enunciam-no de dois modos à semelhança das
forças nucleares: (i) forte: “em algum estágio da sua
evolução o universo deve permitir a criação de observadores” (Brandon Carter); (ii) fraco: “a vida surgiu porque a
evolução do universo seguiu um rumo particular e a menor distorção nesse rumo
tornaria a vida impossível” (Stephen Hawking). Esse princípio implica retorno
ao antropismo onde se alojam a concepção antropocêntrica do universo e a idéia
de que o ser humano se distingue da natureza e é semelhante a Deus. Recoloca no
conhecimento científico a assertiva de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas. Os dois mencionados cientistas
(Carter e Hawking) utilizam o vocábulo vida
no sentido estrito (vegetal e animal). No sentido amplo, vida é energia fundamental geradora e mantenedora do universo.
Neste amplo sentido, a vida não foi gerada pelo universo; o universo é que foi gerado
pela vida. O sentido amplo ajusta-se à tríade mística que expressa a base constituinte
do universo: Luz + VIDA + Amor.
O modo forte
(que se refere à vida no sentido estrito) supõe a criação de observadores (seres
sensíveis e inteligentes) em determinado estágio da evolução. Trata-se de pensamento
regressivo: vai do presente ao passado, do fato gerado à fonte geradora. O
enunciado normativo “o universo deve permitir a criação” é inadequado. O
fenômeno da evolução física é ontológico; a sua lógica é a do ser e não a do dever ser. O universo nada
deve a ninguém. A noção do dever
é própria da ética, isto é, do mundo cultural humano e não do mundo da
natureza. O surgimento de observadores (seres sensíveis e inteligentes) ocorreu
porque tinha de acontecer em algum
momento da evolução, segundo o determinismo próprio da natureza.
O modo fraco
(que se refere à vida no sentido estrito) pode ser enunciado da seguinte forma:
as coisas são o que são (princípio da
identidade), mas podiam ser diferentes se
outro fosse o rumo da evolução ou se houvesse distorção do rumo original (princípio
da eventualidade). Proposição óbvia
fundada no pensamento vulgar: tudo o que
existe podia ser diferente se a matriz fosse outra. A evolução do universo
tomou as direções que tinha de tomar
segundo a sua causa eficiente. Cai no terreno da especulação sem objetividade
científica a assertiva de que a vida seria impossível se houvesse distorção no rumo
particular tomado pela evolução do universo. Supõe que Deus (ou o primeiro
motor) – sem aventar a hipótese de distorção do rumo escolhido – dispunha de algumas
opções e escolheu o tipo de evolução que conduziria ao surgimento dos seres
sensíveis e inteligentes. Tal suposição é crença e não ciência.
O fato é que não houve distorção alguma e seres vivos existem
há bilhões de anos desde as protobactérias (3 bilhões de anos) até o homo sapiens (300 mil anos). A evolução
do universo é um processo natural que tem a sua lógica interna, o seu próprio
impulso e as suas diferentes fases no tempo e no espaço. Não há “rumo particular”.
A partir da explosão inicial o universo expandiu-se em todas as direções e assim
continuará, talvez por algum tempo, talvez eternamente. Daí, a forma esférica
que Stephen Hawking atribui ao universo e a imagem por ele sugerida de um balão
de borracha que ao inchar distribui e distancia as galáxias umas das outras (“O
Universo numa Casca de Noz”. São Paulo. Arx, 2001).
A incerteza verificada pelos físicos no mundo das
partículas integra o processo natural. O que para a mente humana é erro, distorção, incerteza, acaso, ausência
de causalidade, para o processo natural é apenas variedade. A natureza é indiferente
aos valores e conceitos humanos. Mediante conceitos que formula, o humano
expressa a compreensão de si próprio, do mundo cultural, do mundo natural e do
mundo transcendental. As noções de tempo e espaço servem a esse desiderato como
categorias instrumentais da mente para medir, calcular e situar. Na China do
século XII d.C., certa corrente idealista inspirada no budismo afirmava que tempo
e espaço eram criações da mente humana. A intuição – e não o raciocínio lógico
– era o caminho adequado para se chegar à verdade transcendental. O universo
físico era reflexo das idéias emanadas do mundo espiritual. O introdutor do
idealismo na China, Lu Chiu-Yuan (1138-1191 d.C.) certamente teve acesso à
teoria de Platão. (Um Estudo Crítico da
História. Hélio Jaguaribe. Paz e Terra. São Paulo, 2001, vol. II, pág.
176/177).
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