segunda-feira, 5 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 6

A constituição escrita do Estado tem origem autocrática quando elaborada e posta em vigor pelo individuo ou grupo que detém o poder constituinte, sem a participação do povo. O documento daí resultante denomina-se Carta (autor e destinatário distintos). A constituição tem origem democrática quando emana dos representantes do povo reunidos em assembléia constituinte. O documento daí resultante denomina-se Constituição (autor e destinatário se confundem). Depois da independência política, o Brasil regeu-se por três cartas (a imperial de 1824 e as ditatoriais de 1937 e 1967) e quatro constituições (as republicanas de 1891, 1934, 1946 e 1988). 

Na França e na Inglaterra a supremacia é da lei tendo em vista a soberania da assembléia nacional francesa e do parlamento inglês. No Brasil, assim como nos EUA, a supremacia é da constituição. Embora também seja uma lei jurídica, a constituição é considerada hierarquicamente superior. Nesse modelo, não há lei igual ou acima da constituição. Todas as leis lhe são subordinadas. A forma e a substância das leis não podem discrepar dos cânones constitucionais. Os juízes e tribunais podem declarar inconstitucionais as leis elaboradas por órgão incompetente, ou fora do devido processo legislativo, ou de modo contrário ao conteúdo da constituição. Em conseqüência, tais leis perdem a eficácia. Em países europeus como Alemanha e Portugal há tribunais constitucionais para resolver questões relativas ao ajuste das leis à constituição.

Modestino, jurisconsulto romano citado por Tomas de Aquino, diz: o fim da lei humana é a utilidade dos homens (Digesto I, 3). O frei dominicano acrescenta: a lei humana deve ser ordenada ao bem comum da cidade. (Des Lois. Paris. Egloff, 1946, pág. 170/174). Quando isto não acontece, o povo pode excluir do ordenamento jurídico a lei viciada, quer por via pacífica, quer pelo uso da força. No Brasil, percorre-se a via pacífica de dois modos: o político e o jurisdicional. O controle político se faz no processo legislativo: (I) antes de o projeto ser promulgado como lei, mediante atuação da comissão de constituição e justiça das casas legislativas, ou mediante veto do presidente da república; (II) após a promulgação, mediante nova lei de iniciativa parlamentar ou do presidente da república, que revoga a lei anterior inquinada de inconstitucionalidade. O controle jurisdicional se faz após a promulgação da lei. Há controle difuso feito por juizes e tribunais no curso de ações judiciais, quando a constitucionalidade da lei é questionada de modo incidental. Há controle concentrado quando a constitucionalidade da lei é a questão principal, objeto de ação específica perante o supremo tribunal. 

A constituição jurídica é estável por natureza, tendo em vista o seu caráter estrutural. Todavia, não é imutável. Pode ser reformada pelo legislador ordinário sem depender da convocação de assembléia constituinte. No Brasil, o processo de reforma tem rito especial, tramita pelo Congresso Nacional e se instaura por iniciativa do chefe de governo, dos membros do legislativo federal ou das assembléias estaduais. Veda-se emenda à constituição em períodos anômalos (intervenção federal, estado de defesa, estado de sítio) ou quando a proposta de reforma tende a abolir a forma federativa de Estado, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais, o voto direto, secreto, universal e periódico.

O legislador ordinário costuma exceder-se no exercício dessa competência. Ao invés de ajustar a política governamental à constituição, faz o inverso: ajusta a constituição aos interesses conjunturais. Ao invés de regulamentar em lei o dispositivo da emenda, regulamenta-o no próprio corpo da emenda. Com esse artifício, evita que a matéria de lei seja submetida ao crivo do presidente da república. Ao invés de convocar assembléia constituinte para mudar total ou parcialmente a estrutura do poder judiciário, reforma-o diretamente. O legislador ordinário se põe acima do judiciário, quando ambos derivam da mesma fonte soberana: o poder constituinte. Quebra a harmonia do sistema. Ignora cláusula pétrea. Faz tabula rasa do princípio da separação dos poderes.

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