Os direitos do homem e do cidadão
declarados inicialmente em documentos autônomos como os da Virgínia (1776) e da
França (1789), foram posteriormente incorporados às constituições escritas dos
diversos países europeus e americanos. A declaração de tais direitos (à vida, à
liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança) como peça jurídica
fundamental do Estado brotou da necessidade dos governados de se protegerem do
arbítrio dos governantes. A experiência histórica revela a constância do abuso
de poder tanto em autocracias quanto em democracias. Fundado
nessa experiência, ainda em 1748, Montesquieu afirmava que a liberdade só era
possível em Estados moderados onde não houvesse abuso de poder – e advertia: temos, porém, a experiência eterna de que
todo o homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar (...) Para que
não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder
refreie o poder. Montesquieu recomendava a técnica da distribuição de
competências entre distintos órgãos do governo (legislativo, executivo e
judiciário) que dizia funcionar bem na Inglaterra. (Do Espírito das Leis. Edições de Ouro.
Rio, 1966, p.201).
Destarte, os direitos fundamentais
(individuais e coletivos) declarados na constituição do Estado funcionam como
freios ao arbítrio dos governantes. O poder dos governados refreia o poder dos
governantes. A eficácia desse controle dependerá do caráter de cada povo. Uma
nação macunaíma curvar-se-á ao arbítrio e se aclimatará à corrupção.
Ao influxo das idéias socialistas
na Europa do século XIX (1801-1900) e das práticas socialistas no século XX
(1901-2000), as constituições dos países do bloco liberal começaram a abrigar
também preceitos de natureza econômica e social. Ampliou-se o campo de
abrangência material das constituições. À ordem política somaram-se a ordem
econômica e a ordem social. A constituição do México foi pioneira (1917). No
Brasil, isto ocorreu a partir da revolução de 1930. As leis fundamentais
posteriores (cartas e constituições) instituíram a tríplice ordem: política, econômica
e social. O legislador constituinte de 1987/1988 procurou conciliar dogmas
socialistas e dogmas capitalistas na linha das constituições brasileiras de
1934 e 1946. Esse hibridismo suaviza a luta de classes e reflete o caráter
conciliador do legislador constituinte. À igualdade formal do liberalismo
acrescentou-se a igualdade material do socialismo. O exercício do direito de
propriedade vem limitado pelo interesse social e pela necessidade ou utilidade
pública. A todos, inclusive aos estrangeiros residentes no país, a constituição
garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
propriedade e à segurança.
Os preceitos constitucionais nem
sempre são cumpridos ou defendidos, quer pelo governo, quer pelo povo
brasileiro. Isto resulta da ausência de amor à constituição. A supremacia da
constituição nos EUA, na opinião de Orlando Bitar, não se deve apenas à sua
forma escrita e solene, mas também, ao amor que lhe devota o povo e que tem o
seu processo na história. Há um misticismo em torno da constituição naquele
país. A lealdade a ela se converteu em matéria de sentimento. Bitar cita
Swisher: dando à constituição um valor
absoluto de justiça, os juízes a santificam. (Obras
Completas. A Lei e a Constituição.
Brasil, Conselho Federal de Cultura, 1978, vol. 2º, pág. 13/37 + 136).
No Brasil, o sentimento de apreço
à constituição encontra óbice na herança colonial e no espírito alienado e fuzarqueiro
do povo. O processo histórico brasileiro não favorece a tomada de consciência do
valor do constitucionalismo como notável conquista da civilização ocidental em
favor da dignidade humana. De um lado, sobrevive o espírito caudilhesco da
elite, sob verniz democrático; de outro, o espírito galhofeiro da massa. Os governantes (lato sensu) atuam como se fossem donos do país. Dispõem do erário
como se fosse a sua bolsa particular. Praticam a corrupção em alta escala como
se fosse algo lícito e próprio da atividade política. Consideram-se intocáveis,
superiores às pessoas comuns, apoiados na costumeira impunidade dos que vivem
nos altos escalões da república e nas altas esferas da sociedade civil. O
oportunismo safado e a esperteza enganosa dos legisladores e administradores militam
contra a respeitabilidade das leis. O povo só as obedece quando lhe convém ou quando não há
escapatória.
O julgamento da ação penal 470
proposta pelo Ministério Público Federal perante o Supremo Tribunal Federal
contra figurões do Estado e da sociedade civil acusados de corrupção, peculato,
gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de
quadrilha pode ser o marco inicial do aniquilamento dessa nefasta herança
cultural. Os principais réus foram condenados. As penas foram aplicadas de modo
generoso, sem ódio. Observou-se a praxe dos tribunais brasileiros: moderação ao
punir. Depois da referida ação penal espera-se que os criminosos do colarinho
branco não fiquem mais impunes. A igualdade republicana tornar-se-á realidade.
A lei irá imperar no território nacional sobre todos, sem indevidos
favorecimentos. Amém.
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