domingo, 11 de novembro de 2012

IMPÉRIO DA LEI 7



Os direitos do homem e do cidadão declarados inicialmente em documentos autônomos como os da Virgínia (1776) e da França (1789), foram posteriormente incorporados às constituições escritas dos diversos países europeus e americanos. A declaração de tais direitos (à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança) como peça jurídica fundamental do Estado brotou da necessidade dos governados de se protegerem do arbítrio dos governantes. A experiência histórica revela a constância do abuso de poder tanto em autocracias quanto em democracias. Fundado nessa experiência, ainda em 1748, Montesquieu afirmava que a liberdade só era possível em Estados moderados onde não houvesse abuso de poder – e advertia: temos, porém, a experiência eterna de que todo o homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar (...) Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder. Montesquieu recomendava a técnica da distribuição de competências entre distintos órgãos do governo (legislativo, executivo e judiciário) que dizia funcionar bem na Inglaterra. (Do Espírito das Leis. Edições de Ouro. Rio, 1966, p.201).

Destarte, os direitos fundamentais (individuais e coletivos) declarados na constituição do Estado funcionam como freios ao arbítrio dos governantes. O poder dos governados refreia o poder dos governantes. A eficácia desse controle dependerá do caráter de cada povo. Uma nação macunaíma curvar-se-á ao arbítrio e se aclimatará à corrupção.

Ao influxo das idéias socialistas na Europa do século XIX (1801-1900) e das práticas socialistas no século XX (1901-2000), as constituições dos países do bloco liberal começaram a abrigar também preceitos de natureza econômica e social. Ampliou-se o campo de abrangência material das constituições. À ordem política somaram-se a ordem econômica e a ordem social. A constituição do México foi pioneira (1917). No Brasil, isto ocorreu a partir da revolução de 1930. As leis fundamentais posteriores (cartas e constituições) instituíram a tríplice ordem: política, econômica e social. O legislador constituinte de 1987/1988 procurou conciliar dogmas socialistas e dogmas capitalistas na linha das constituições brasileiras de 1934 e 1946. Esse hibridismo suaviza a luta de classes e reflete o caráter conciliador do legislador constituinte. À igualdade formal do liberalismo acrescentou-se a igualdade material do socialismo. O exercício do direito de propriedade vem limitado pelo interesse social e pela necessidade ou utilidade pública. A todos, inclusive aos estrangeiros residentes no país, a constituição garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade e à segurança.

Os preceitos constitucionais nem sempre são cumpridos ou defendidos, quer pelo governo, quer pelo povo brasileiro. Isto resulta da ausência de amor à constituição. A supremacia da constituição nos EUA, na opinião de Orlando Bitar, não se deve apenas à sua forma escrita e solene, mas também, ao amor que lhe devota o povo e que tem o seu processo na história. Há um misticismo em torno da constituição naquele país. A lealdade a ela se converteu em matéria de sentimento. Bitar cita Swisher: dando à constituição um valor absoluto de justiça, os juízes a santificam. (Obras Completas. A Lei e a Constituição. Brasil, Conselho Federal de Cultura, 1978, vol. 2º, pág. 13/37 + 136).
 
No Brasil, o sentimento de apreço à constituição encontra óbice na herança colonial e no espírito alienado e fuzarqueiro do povo. O processo histórico brasileiro não favorece a tomada de consciência do valor do constitucionalismo como notável conquista da civilização ocidental em favor da dignidade humana. De um lado, sobrevive o espírito caudilhesco da elite, sob verniz democrático; de outro, o espírito galhofeiro da massa.  Os governantes (lato sensu) atuam como se fossem donos do país. Dispõem do erário como se fosse a sua bolsa particular. Praticam a corrupção em alta escala como se fosse algo lícito e próprio da atividade política. Consideram-se intocáveis, superiores às pessoas comuns, apoiados na costumeira impunidade dos que vivem nos altos escalões da república e nas altas esferas da sociedade civil. O oportunismo safado e a esperteza enganosa dos legisladores e administradores militam contra a respeitabilidade das leis. O povo só as obedece quando lhe convém ou quando não há escapatória.

O julgamento da ação penal 470 proposta pelo Ministério Público Federal perante o Supremo Tribunal Federal contra figurões do Estado e da sociedade civil acusados de corrupção, peculato, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha pode ser o marco inicial do aniquilamento dessa nefasta herança cultural. Os principais réus foram condenados. As penas foram aplicadas de modo generoso, sem ódio. Observou-se a praxe dos tribunais brasileiros: moderação ao punir. Depois da referida ação penal espera-se que os criminosos do colarinho branco não fiquem mais impunes. A igualdade republicana tornar-se-á realidade. A lei irá imperar no território nacional sobre todos, sem indevidos favorecimentos. Amém.
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