segunda-feira, 28 de novembro de 2011

MAGISTRATURA

XII
Para ilustrar o exposto no capítulo anterior, convém citar neste e no capítulo seguinte, exemplos de raquitismo nos tribunais e da supremacia da política sobre o direito. Os profissionais do direito, certamente, terão dezenas de exemplos semelhantes.
Agravo 801813 – Supremo Tribunal Federal – Relator: ministro José Antonio Dias Toffoli (citado no capítulo II, desta série). Naquele processo atuaram dois assessores: um, do presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro; outro, do ministro do STF. Ambos utilizaram lógica vulgar, niveladora, das diferenças descuidada. Carecem do raciocínio jurídico, perspicaz, valorizador de nuances que distinguem um caso de outro. Centraram-se na afirmativa de que os parlamentares são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos. Afirmativa acaciana diante da letra do dispositivo constitucional (CR 53). Faltou-lhes a percepção de que no regime republicano democrático as imunidades têm limites. Há, inclusive, casos de perda do mandato parlamentar como, por exemplo, a falta de decoro (CR 55, II).
Passaram despercebidas aos assessores as circunstâncias que diferenciavam a pretensão deduzida naquela ação judicial dos precedentes que eles garimparam no repertório de jurisprudência. Revelaram insuficiência intelectual e insensibilidade moral para discernir entre o exercício legítimo do mandato parlamentar (honesto, justo, decente, em defesa do bem comum, do interesse da nação, do interesse público) e o exercício ilegítimo (desonesto, injusto, indecoroso, em defesa do bem próprio, do interesse particular de grupo ou de indivíduo, em detrimento do bem geral).
A vítima (jornalista) reclamava do abuso de poder praticado por vereadores que, em bases falsas e palavras ofensivas à honra, votaram moção de repúdio com motivação exclusivamente pessoal e desprovida de qualquer interesse público. A decisão da justiça estadual foi contrária à pretensão da vítima. Ficou na superfície: o parlamentar tem imunidade. Pronto. O presidente do tribunal endossou o despacho do assessor e negou seguimento ao recurso extraordinário sob tríplice argumento: (1) a decisão recorrida solucionou motivadamente todas as questões de fato e de direito relevantes para o julgamento da causa (?); (2) a matéria encontra-se pacificada conforme o verbete 286 (??); (3) o recorrente pretende o reexame de matéria de fato, o que é vedado pelo verbete 279 (???). Os verbetes mencionados são da súmula de jurisprudência predominante do STF.
O equívoco – ou a malícia – do singelo despacho é evidente e escandaliza. Jogou água para molhar o que já está molhado.
Motivar a decisão é exigência do direito em vigor. Todas as decisões dos órgãos do Poder Judiciário devem ser fundamentadas (CR 93, IX). Solucionar motivadamente não significa que a solução dada ao caso concreto se harmoniza com a Constituição, nem que foi adequada. A instância ordinária deu tratamento genérico e abstrato a caso singular e concreto, afastando-se dos ditames constitucionais. Solução contrária à Constituição, embora motivada, não deve prevalecer.
O citado verbete 286 refere-se a recurso extraordinário fundado em divergência jurisprudencial (CPC 541, parágrafo único). O recurso interposto pela vítima não se fundava em divergência jurisprudencial e sim em contrariedade ao texto constitucional (CR 102, III, a). Ademais, por se referir à imunidade parlamentar não significa que a jurisprudência arrolada nos despachos fosse aplicável à matéria em debate.
O citado verbete 279 veda recurso extraordinário para simples reexame de prova. Se for para complexo reexame de prova, cabe o recurso? Aos assessores faltou alcance mental para perceber a nuance. Na verdade, o recurso não se destinava a reexame de prova, simples ou complexo. Aos assessores também faltaram: (i) disposição para examinar com atenção a matéria do recurso; (ii) sensibilidade para notar a importância da questão para a sociedade brasileira. Na ação judicial não houve divergência alguma quanto aos fatos e a prova; não houve controvérsia sobre fatos; o debate limitou-se à norma aplicável: garantia da pessoa natural versus prerrogativa parlamentar.
Referir-se aos fatos no recurso não significa questionar ou reexaminar prova e sim colocá-los na argumentação jurídica. Aliás, o citado verbete 279 refere-se ao reexame da prova e não à ponderação dos fatos. Ponderar fatos é próprio da postulação e do julgamento. O tribunal freqüentemente pondera fatos nos julgamentos para bem esclarecer a questão em debate, ainda que a matéria seja de direito. Miguel Reale ensinava: no direito imbricam-se o fato, o valor e a norma. A questão de direito levada ao Supremo Tribunal não paira no espaço sideral, nem se restringe às conexões neurais. A ligação do direito é com a vida, relações humanas travadas na sociedade.

Nenhum comentário: