quinta-feira, 24 de novembro de 2011

MAGISTRATURA

X
A Constituição brasileira, emendada mais de 60 vezes desde a promulgação em 05/10/1988 (média de 3 emendas por ano), inclui tríplice ordem: política, econômica e social. Essa imensa área de interesses propicia conflitos que desembocam no Supremo Tribunal Federal onde já se contam aos milhares os processos em trâmites. O excesso de carga gera: (i) demora incompatível com a garantia da razoável duração do processo; (ii) ineficiência e predisposição à preguiça. Na excessiva maturação, o fruto apodrece. Nessa espiral estão os fatores do acúmulo de processos.
O direito à tutela jurisdicional vem reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. VIII + X) e na Constituição brasileira (art. 5º, XXXV). O tribunal frustra esse direito do povo quando cria óbices regimentais e jurisprudenciais. Exemplos: (i) recusa examinar causas a pretexto de inconstitucionalidade reflexa; (ii) arbítrio no reconhecimento da repercussão geral da matéria para admitir ou inadmitir recurso extraordinário; (iii) exigências descabidas para processar e julgar agravo regimental; (iv) tabula rasa do vetusto preceito da judicatura: dá-me o fato e dar-te-ei o direito.
Da história medieval, moderna e contemporânea, verifica-se que alguns juízes preferem a fórmula: dá-me a bolsa e dar-te-ei a sentença.
Zelar pela eficácia das normas constitucionais moralmente aceitáveis e compatíveis com os princípios fundamentais, ainda que violadas de modo reflexo, constitui garantia das liberdades públicas superior ao interesse do tribunal de se livrar dos processos sem resolver a matéria neles veiculada. As artimanhas regimentais são incompatíveis com o papel do tribunal de guardião dessas liberdades.
A sintonia da tutela jurisdicional com o regime republicano e com as necessidades da população brasileira ainda depende de algumas providências, tais como: (I) descentralizar a jurisdição constitucional mediante a criação de tribunais constitucionais em cada região do país; (II) sediar o tribunal constitucional no centro geográfico da respectiva região, contributo ao desenvolvimento do interior do país; (III) extinguir o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça, transferindo as respectivas atribuições aos tribunais constitucionais; (IV) criar Conselho Constitucional com sede em Brasília, composto dos presidentes dos tribunais constitucionais, de um representante do ministério público e outro da advocacia, dois senadores e dois deputados, competente para resolver questões internacionais e tributárias envolvendo a União Federal, uniformizar a jurisprudência dos tribunais constitucionais quando necessário, processar e julgar: autoridades do alto escalão da República, o mandado de injunção por omissão do Legislativo ou do Executivo, o recurso de decisões dos tribunais constitucionais punitivas de magistrados; (V) eliminar sobrevivências do tempo do Império, como a mentalidade dos privilégios e os títulos de ministro e desembargador.
Esse novo modelo republicano, mais adequado ao tipo analítico da Constituição brasileira, propiciará tutela jurisdicional rápida, próxima das necessidades, dos interesses e das características regionais.
O modelo importado dos EUA por Ruy Barbosa, em 1891, mostrou-se inadequado ao temperamento do povo brasileiro e à realidade social e política do Brasil nestes 120 anos de vigência. O insigne estadista, no seu idealismo, no seu amor à pátria e ao direito, deixou de pesar suficientemente as diferenças entre o povo brasileiro e o estadunidense no que concerne às respectivas origens, crenças, tradições, costumes. Olvidou a morena e sensual mestiçagem e a frouxa moralidade do povo brasileiro, retratadas posteriormente na obra de Gilberto Freire e no romance de Mário de Andrade. Na ardida, exagerada, mas parcialmente verdadeira opinião do dramaturgo Nelson Rodrigues, todo brasileiro tem uma faceta cafajeste, independente da camada social a que pertença.

Na escolha de Ruy, subjaz a brancura anglo-saxônica e a rígida e puritana moralidade dos pioneiros da América do Norte, retratados na obra de Vianna Moog. No seu elevado propósito, Ruy acreditou na magia da fórmula jurídica e no transplante do sucesso político: o que deu certo nos EUA dará certo no Brasil. Ruy não ouviu, 60 anos depois da sua morte, artista seu conterrâneo cantar: não há pecado ao sul do equador. No final da vida, como paraninfo da turma do ano de 1920, de bacharéis da Faculdade de Direito de São Paulo, na célebre “Oração aos Moços”, o grande jurista baiano dava mostras da desilusão. Antes, em 1892, ele se decepcionara com o Supremo Tribunal que negou habeas corpus impetrado em favor de presos políticos vítimas da arbitrariedade do marechal Floriano. O militar, culto, inteligente, corajoso, cujo apelido “marechal de ferro” denotava ânimo forte e temperamento audacioso, coagira o tribunal com essa advertência: “Quem dará habeas corpus aos juízes?”

Diante da covardia do tribunal guardião da ordem constitucional, Ruy viu estremecer os alicerces da República da qual era um dos fundadores. Recém nascida, a República apresentava sintomas de mal incurável. Ruy sofre nova decepção em 1914, ao ver negado, naquele tribunal supremo, habeas corpus por ele ajuizado em prol da liberdade de imprensa e das imunidades parlamentares, contra a ilegalidade do estado de sítio e os excessos praticados. Segundo João Mangabeira, o Supremo Tribunal foi o órgão que mais falhou à República de 1892 a 1937 (Ruy, O Estadista da República. São Paulo, Martins Editora, 1960). Se ainda fosse vivo, Mangabeira veria que depois de 1937 e apesar de esporádicos julgamentos dignos de aplausos, o Supremo Tribunal continuou a falhar à República e a ceder às pressões militares e civis em prejuízo do direito, da liberdade e da democracia.

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