sexta-feira, 12 de março de 2010

LUZ4

Quarta parte.

A verdade há de ser dita perante juiz ou tribunal. Em alguns sistemas jurídicos, porém, são dispensados de dizê-la: os pais em relação aos filhos e vice-versa; o esposo em relação à esposa e vice-versa; o réu contra si mesmo. Os deveres decorrentes dos laços de família, como fidelidade e mútua assistência, bem como os vínculos afetivos e religiosos, desobrigam a pessoa de prestar depoimento que possa prejudicar o cônjuge ou os parentes. No que tange ao réu, o fulcro da norma é a idéia de que não se deve constranger pessoa alguma a acusar a si própria. Todavia, como o direito de calar não gera direito de mentir, se o réu opta por falar, deverá dizer a verdade.

No sistema judicial dos EUA, todos são obrigados a dizer a verdade, jurando com a mão sobre a bíblia: partes, parentes, cônjuges, amigos. No sistema judicial brasileiro não há juramento e sim compromisso. Há pessoas que não podem prestá-lo por incapacidade, impedimento ou suspeição. Incapazes, são os menores de 16 anos, o doente mental, o cego e o surdo no que tange a fatos que dependem dos sentidos que lhes faltam. Impedidos, são os cônjuges e parentes das partes. Suspeitos, são o amigo íntimo ou o inimigo capital da parte, a pessoa que tiver interesse no litígio e o indivíduo de maus costumes ou que foi condenado por falso testemunho. Se violar o compromisso de dizer a verdade, a pessoa ficará sujeita a processo criminal por falso testemunho.

A condescendência é um traço cultural brasileiro. Raramente, o mentiroso é processado por falso testemunho. Criminosos do colarinho branco são tratados com benevolência. Mesmo condenado em primeiro grau, após usufruir de todas as garantias do devido processo legal, esse tipo de criminoso fica em liberdade até a sentença transitar em julgado, o que pode demorar dezenas de anos. A demora enseja a prescrição. Operada a prescrição, a sentença condenatória perde seus efeitos. A liberdade desse tipo de criminoso ficou assegurada por decisão do Supremo Tribunal Federal ao interpretar equivocadamente norma constitucional.

De acordo com o código de processo penal, mesmo sem transitar em julgado, a sentença condenatória produz efeitos imediatos: a prisão do condenado e o lançamento do seu nome no rol dos culpados (art. 393). O precedente de 2008, criado pelo Supremo Tribunal no rumoroso caso Daniel Dantas, retirou a eficácia desse dispositivo legal, o que beneficiou outros tipos de criminosos: os que estavam presos, foram soltos; os que estavam soltos, não foram presos. As pessoas de bem e de posses, cercam de muros e grades as suas casas; ao saírem às ruas, se fazem acompanhar de seguranças particulares porque a polícia, em algumas cidades, além de desestimulada, mal equipada, mal paga e parcialmente corrupta, não dá conta do serviço. Lucram as empresas de segurança. Quem não pode contratá-las, recorre à proteção divina e, em alguns casos, aos traficantes da área.

Raciocínio especioso no processo judicial distingue verdade formal e verdade material. A primeira corresponde à prova dos autos do processo; a segunda, aos fatos reais. Essa distinção serve para justificar sentença contrária à realidade social. Como nem sempre as duas verdades coincidem no julgamento, o senso de justiça da população se manifesta e a magistratura sofre o desgaste. O sofisma é evidente. Não há duas verdades relativas à mesma coisa: esta é ou não é. Ser ou não ser, eis a questão, notória frase de Shakespeare, inspirada nos princípios lógicos de identidade, de não contradição e do terceiro excluído.

A verdade é ontológica. Formal é a ordem das proposições colocada pela inteligência no argumento ou na demonstração; é o conjunto de regras utilizado para atingir um fim. Do processo judicial, o fim social é pacificar, o fim ético é justiça, o fim lógico é coerência, o fim político é tornar efetiva a ordem jurídica, declarar o direito e aplicá-lo ao caso concreto segundo a prova produzida. A sentença, total ou parcialmente, acolhe ou rejeita a pretensão deduzida em juízo. Ao fazê-lo, há de cumprir aqueles fins. A sentença vale como imperativo jurídico; vale e é acatada por ser expressão da autoridade do Estado e resultar do devido processo legal – e não por exprimir esta ou aquela verdade.

Apesar disso, quanto maior a sintonia da sentença com a realidade social, mais respeitada será pelos jurisdicionados; maior será a probabilidade de a sentença estar ajustada ao bem comum. No processo judicial, a razoabilidade e a proporcionalidade são critérios fundamentais da sentença. A reforma da sentença de primeiro grau não significa que o juiz faltou com a verdade e sim que, na opinião do tribunal, o juiz não declarou e/ou não aplicou bem o direito ao caso concreto. A opinião do tribunal se impõe em face da hierarquia jurisdicional e não porque seja mais verdadeira ou melhor do que a sentença reformada. Na história judiciária há casos em que censurável foi a reforma. Como se diz em literatura: saiu pior a emenda do que o soneto. Os tribunais estão mais sujeitos ao tráfico de influência; no colegiado, a responsabilidade se dilui.

A presunção de inocência e de boa fé, acolhida pelo direito positivo, tem motivado graves equívocos na distribuição da justiça. Coloca-se o processo judicial numa redoma: o que não está nos autos, não está no mundo! Acontece que o juiz, os jurisdicionados e o processo estão no mundo. O que se passa na sociedade não pode ser ignorado. A realidade social pode inverter a presunção de inocência. Em cidade aonde os motoristas costumam dirigir ônibus em alta velocidade, sem atender à sinalização e às regras de trânsito e da boa educação, milita contra eles a presunção de culpa em caso de atropelamento. Falar-se, nesse caso, em presunção de inocência do motorista é fugir da realidade, é distribuir justiça para os livros e não para o povo.

No Brasil, a corrupção é endêmica, nacional e internacionalmente notória. Se a corrupção está enraizada no país, tanto no setor privado como no setor público, se a corrupção é um dos traços da civilização brasileira, ainda que herdado da civilização lusa, então não pode haver presunção de inocência dos envolvidos nesse tipo de ilícito. Até prova em contrário, a presunção é de culpa dos agentes políticos, administrativos e demais envolvidos em casos de corrupção e lavagem de dinheiro.

Destarte, sendo a corrupção um traço da cultura brasileira, aplicar presunção de inocência aos corruptos é homenagear os livros e a doutrina estrangeira e distanciar-se da realidade nacional, frustrando aquela parcela da população que ainda cultiva os valores morais e crê no direito. Melhor seria que o legislador, atendendo aos maus costumes da maioria da população brasileira, excluísse a corrupção do código penal, ao invés de elaborar normas capciosas sob medida para proteger a ele próprio e aos demais corruptos. O efeito dessas normas capciosas, ditadas pela esperteza enganosa combinada com a sociologia livresca, é o de alargar o campo da impunidade, desmoralizar a magistratura e desacreditar o direito. Outra solução é colocar aquela maioria nos trilhos da moralidade, o que exige processo de educação contínuo e persistente por algumas gerações. Para tanto, vontade política é necessária, o que não se vê no horizonte da pátria brasileira.

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