sábado, 20 de março de 2010

AMOR2

Segunda parte.

No processo natural de formação e extinção das estrelas e de nascimento e morte dos seres vivos verifica-se o movimento de integração e desintegração. Excluídos fatores acidentais ou artificiais, a desintegração dos corpos no reino mineral é demorada, enquanto nos reinos vegetal e animal ocorre em menor tempo. Daí, a característica de longa duração dos minerais (quase infinita, em escala humana) e de curta duração dos seres vivos. A partir de determinado momento da existência do vegetal e do animal, o amor começa a enfraquecer e os elementos das respectivas estruturas a perder coesão.

O germinar de uma semente, o florescimento do broto, o desabrochar da flor, a produção de novas sementes, constituem atividade amorosa no reino vegetal. A força atrativa do amor aproxima os animais, macho e fêmea, para acasalamento. Animais da mesma espécie se atraem, formam comunidades e se deslocam em bando na busca de alimento e abrigo. As abelhas e as formigas ilustram essa organização natural, que inclui a construção do abrigo e a distribuição de tarefas entre os membros do grupo. Animais de espécie diferente se repelem, apesar das exceções conhecidas: fêmeas alimentando filhotes de outra espécie, cães e gatos convivendo harmoniosamente. A regra, porém, é a mãe alimentar e cuidar dos seus próprios filhotes até a idade em que adquirem autonomia; cães perseguem gatos e gatos caçam ratos.

Os animais racionais estão submetidos às mesmas leis dos animais irracionais, tanto no que tange à estrutura física e às funções orgânicas, como no que se refere às suas mútuas relações no tempo e no espaço. A força afetiva da vida provoca as mesmas apetências nos animais racionais e nos irracionais. A diferença está na diversificação do objeto dessas apetências. Enquanto alguns irracionais são herbívoros e outros carnívoros, o ser humano é as duas coisas: na sua dieta nutricional entram vegetais e animais. A carne humana também entra no cardápio dos irracionais e dos racionais. Canibalismo foi constatado em tribos selvagens, inclusive o canibalismo ritualístico: comer a carne do inimigo valente para dele receber a coragem. À diferença do irracional, o animal racional prepara o alimento de vários modos: cru, cozido, assado, com ou sem tempero. Além disso, fabrica alimentos e bebidas.

O amor exagerado ao alimento caracteriza a gula, com ou sem requinte. Pessoas como os chefs, gourmets, enólogos, apuram o paladar e fazem arte e profissão do preparo e da avaliação da comida e da bebida. Além da água, o ser humano consome outros tipos de bebida, com ou sem álcool: refresco, refrigerante, cerveja, vinho, aguardente, uísque, vodca. A produção de comida e de bebida constitui uma indústria que movimenta bilhões de dólares. Os seres humanos buscam a variedade em restaurantes. Ainda que haja mesas disponíveis a maior distância, as pessoas que chegam ao restaurante geralmente buscam as mesas próximas às de quem lá se encontra; obedecem inconscientemente ao instinto associativo, à força atrativa da vida. O mesmo acontece em outras situações, em locais acessíveis ao público: loja, banca de vendedor ambulante, estádio de futebol, praia, estação do trem, aeroporto. Essa força atrativa pode gerar promiscuidade. Segundo a visão de mundo que permite aos membros de uma comunidade usufruir intimamente o mesmo ambiente e as mesmas coisas ao mesmo tempo, onde homens e mulheres se relacionam livremente sem exclusividade, há promiscuidade voluntária. Ocasionalmente, por força das circunstâncias, quando pessoas se vêem na contingência de compartilhar o mesmo espaço e das mesmas instalações, como acontece nos aeroportos quando há suspensão dos vôos por muito tempo, ocorre a promiscuidade involuntária; a pessoa reage buscando isolamento.

Os animais irracionais têm tipos limitados de abrigos obedecendo ao seu determinismo. Nos animais racionais, maior é a variedade: marquises, pontes, viadutos, cavernas, casas, edifícios, palácios, segundo a situação social e a disponibilidade financeira dos indivíduos e grupos. Além dos abrigos físicos, há os abrigos institucionais: no lar, o indivíduo protege a sua intimidade e privacidade; na comunidade, ele se protege da solidão e do desamparo; na escola, ele se protege da ignorância; no hospital, ele se protege da doença; na empresa, ele se protege da pobreza; na embaixada estrangeira, ele se protege da perseguição política em seu país; no tribunal, ele se protege da injustiça; na ordem jurídica do Estado ele busca a garantia da sua liberdade e dos seus bens; na igreja, o amparo de Deus.

No ser humano, a força afetiva da vida gera o desejo, a inclinação para coisas que causam prazer. O desejo, aglutinador de apetências, faz o ser humano procurar fora de si mesmo o poder, a fama, a riqueza, o saber, a felicidade. O amor próprio reflete o desejo do eu de se manter e conservar, de ter vida interior e dignidade, de cuidar do corpo e da alma personalizada. O alvo do desejo pode ser o outro para satisfação sexual. Nesse nível de relacionamento situa-se o conceito de amor expendido por Jean-Paul Sartre: desejo de possuir o outro. Ainda que esse desejo tenha o componente intencional de subjugar vontade alheia, a sua origem reside na força afetiva da vida. O componente intencional é acréscimo que diferencia o animal racional do irracional: envolve a relação sexual com a ética, o direito e a religião. O livre e despreocupado relacionamento no mundo da natureza torna-se um pesadelo de responsabilidades e anátemas no mundo da cultura.

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