domingo, 28 de março de 2010

POESIAS

Manhã de domingo de sol reto./ A grande igreja sem estilo / decorada por dentro por um batismo de Cristo / feito por um pintor ingênuo / que quis ser clássico e foi primitivista./ Missa internacional / com gentes de todas as raças / ouvindo o padre alemão rezar em latim./ A gente nem tem vontade de olhar o crucifixo desolado / nem de rezar / porque tem lá dentro tanta menina bonita / que não reza também / e fica sapeando a gente com meiguice / Só os polacos de camisa nova por ser domingo / que vieram com as famílias de carroça lá das colônias / rezam fervorosamente / enquanto nos seus quintais / os chupins malvados e alegres / comem todo o centeio / cantando glórias pro sol de domingo. (“Minha terra” – Ponta Grossa/PR – Brasil Pinheiro Machado).

O brasileiro nortista que chegava / dizia que aquilo não era Brasil / que aquilo era uma aldeia russa/ (...) / Que não podia ser Brasil onde houvesse geada até o meio dia / onde em vez de caboclo meio bronze mulato / andassem polacos fazendo berganhas de porco e plantando mandioca. (Idem)

O polaquinho / o russinho / o alemãozinho / o italianinho/ Nascido ali / traduzia o pedido do viajante pro pai e do pai pro viajante / numa língua igualzinha à do caboclo de cor de bronze amulatado / sem regra de gramática portuguesa, graças a Deus! (Idem).

Vou-me embora pra Pasárgada / lá sou amigo do rei / lá tenho a mulher que eu quero / na cama que escolherei / vou-me embora pra Pasárgada. / Vou-me embora pra Pasárgada / aqui eu não sou feliz / lá a existência é uma aventura / de tal modo inconseqüente / que Joana a Louca de Espanha / rainha e falsa demente / vem a ser contraparente / da nora que nunca tive / e como farei ginástica / andarei de bicicleta / montarei em burro brabo / subirei no pau de sebo / tomarei banhos de mar! / e quando estiver cansado / deito na beira do rio / mando chamar a mãe d´agua / pra me contar as histórias / que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / vou-me embora pra Pasárgada / em Pasárgada tem tudo / é outra civilização / tem um processo seguro / de impedir a concepção / tem telefone automático / tem alcalóide à vontade / tem prostitutas bonitas / para a gente namorar / e quando eu estiver mais triste / mas triste de não ter jeito / quando de noite me der / vontade de me matar / - lá sou amigo do rei - / terei a mulher que eu quero na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada. (“Vou-me embora pra Pasárgada” – Manuel Bandeira).

Ontem à noite eu procurei ver se aprendia como é que se fazia uma balada Antes d´ ir pro meu hotel / É que este coração já se cansou de viver só e quer então morar contigo no Esplanada / Eu qu´ria poder encher este papel de versos lindos é tão distinto ser menestrel / No futuro as gerações que passariam diriam é o hotel do menestrel / Pra me inspirar abro a janela como um jornal / vou fazer a balada do Esplanada e ficar sendo o menestrel do meu hotel / Mas não há poesia num hotel mesmo sendo `Splanada ou Grand-Hotel / Há poesia na dor na flor no beija-flor no elevador / Quem sabe se algum dia traria o elevador até aqui o teu amor. (“Balada do Esplanada” – Oswald de Andrade).

Minha terra tem palmares / onde gorjeia o mar / os passarinhos daqui / não cantam como os de lá / Minha terra tem mais rosas / e quase que mais amores / minha terra tem mai ouro / minha terra tem mais terra / Ouro terra amor e rosas / eu quero tudo de lá / não permita Deus que eu morra / sem que volte para lá. / Não permita Deus que eu morra / sem que volte pra São Paulo / sem que veja a Rua 15 / e o progresso de São Paulo. (“Canto do regresso à Pátria” – Oswald de Andrade).

Não crês porque não vês. É a dúvida secreta / a eterna que te enleia / - a sombra pode ver o corpo que a projeta / mas nunca a luz que a cria. (“Sobre a dúvida” – Guilherme de Almeida).

Mas o tronco da árvore nova foi tronco também de escravos quimbundos / foi crucifixo de Cristos coitados que vieram – cruz! Credo! – cheirando a moxinga nos fundos / dos navios pretos que vieram mazombos descadeirados e catingudos / sem tarimba nem tanga fazendo banzé muamba e mandinga corcundas trombudos / chipanzés mecânicos treparam na cruz com rezas trejeito e benzeduras / de corpos lambidos por lambadas de fogo regaram de lágrimas sangue e suor as terras fecundas mas duras / e a terra deu tudo: deu tronco de escravos deu oiro aos senhores deu prata aos feitores / e os amos gritaram de gula e a terra gritou de piedade e os pretos gritaram de dores / fugiram ao bodum das donzelas e zonzos e fulos meteram-se em fundos mocambos escuros quilombos / e foram achados por capitães-do-mato e voltaram com calombos e cruzes nos ombros / mucamas em mulambos fizeram calungas e quimbembeques para as sinhazinhas e para os sinhôs / com candongas deram o “Sãos Cristo” a toda raça mandona de Iaiás e de Ioiôs / moleques crioulas cantaram lunduns bateram batuques pretas-minas cozeram quitutes, cuscuz / dançaram no samba pularam fogueiras como zumbis sonâmbulos funâmbulos nus / de maromba e tição nas mãos adoçadas acostumadas a dar cafuné / depois desceram coxeando roxas encostas com trouxas canastras e o amo em bangüê. (“Santa Cruz!” – Guilherme de Almeida).

quinta-feira, 25 de março de 2010

AMOR4

Quarta parte.

Relação supõe bilateralidade: o eu e o tu. Possível a exceção: relacionamento unilateral do eu consigo mesmo. Nesse caso, a pessoa cuida do seu bem-estar, da sua aparência, busca satisfação sexual no onanismo, cultiva bons sentimentos e pensamentos: “mens sana in corpore sano” consoante lema da antiga Roma. A pessoa revela amor próprio quando tenta se elevar espiritualmente mediante orações, rituais e exercícios espirituais. A exacerbada paixão pela pátria, pela religião, por doutrinas e instituições, conduz ao fanatismo. O indivíduo fanático não se intimida com ameaças nem com o poderio adverso; não se importa de morrer, desde que possa aniquilar os que com ele não comungam sentimentos e pensamentos. Na segunda guerra mundial, ficaram famosos os camicases, pilotos japoneses que faziam seus aviões colidirem com o alvo inimigo. Na atualidade, homens e mulheres se transformam em bombas na defesa da sua crença religiosa, da sua ideologia política, do território do seu país, da sua identidade e soberania nacional.

O magnetismo do amor associa os seres humanos. O indivíduo sente-se atraído: pela beleza, harmonia e elegância das formas; por pessoas bonitas, perfumadas, bem cuidadas e bem vestidas; por animais de tal ou qual raça; por flores e plantas comuns ou exóticas; por paisagens, quadros, estátuas, arquiteturas, textos filosóficos, religiosos e místicos. Padrões morais também atraem os seres humanos que se unem na defesa de valores como justiça, verdade, bondade, santidade. Entre outros fins, os seres humanos associam-se para: elaborar leis e estabelecer o direito visando a uma convivência ordeira e pacífica na sociedade; cultivar a inteligência, estudar fenômenos naturais e culturais; levantar balizas para a retidão de conduta de modo a se reconhecerem como pessoas dignas; exercer atividades místicas e religiosas para se ligarem a Deus.

O relaxamento moral enfraquece o amor; o enfraquecimento do amor acarreta o relaxamento dos princípios morais. Imoderação, corrupção dos costumes, mentalidade mercantil nas instituições públicas, religiosas e místicas são sinais do relaxamento ético. Aos tipos de conduta considerados nocivos, a sociedade reage formulando normas penais. A indústria da pornografia e da perversão sexual, aliada ao tráfico de drogas, de mulheres e crianças, constitui mercado que rende bilhões de dólares aos seus exploradores e se difunde pela circulação de fotografias e gravações audiovisuais. A sociedade organiza e utiliza o aparelho policial e judiciário do Estado para combater essas atividades tipificadas como criminosas; além disso, promove campanhas educativas pelos meios de comunicação. Autoridades públicas e setores privados servem-se do erário como se fosse cofre particular; desprovidos do senso de moralidade, os agentes do governo utilizam o cargo para obter vantagens ilícitas, prejudicar adversários e conquistar favores sexuais de homens e mulheres adultos, adolescentes e crianças.

O ideário filosófico, a visão de mundo, o ritual patriótico, religioso ou místico e seu simbolismo, atraem e associam pessoas. Chamam filosofia ao amor à sabedoria; justiça ao amor à igualdade; teose ao amor a Deus. Atraída pelas coisas do espírito, a pessoa associa-se a outras em instituições onde são cultivadas doutrinas e crenças, às vezes, sem preocupação com explicações racionais. O amor à razão tende a dominar todos os assuntos e amortece a fé. Esta se rebela contra aquela. Blaise Pascal destacou a influência da inteligência emocional na conduta humana ao afirmar as razões do coração ignoradas pela inteligência racional. Por veredas emocionais próprias, o amor conduz à sabedoria. Os místicos utilizam a sabedoria do coração; dão-lhe prioridade ante o conhecimento exclusivamente racional. A imaginação produz o saber; a razão o formaliza e o cristaliza.

A arte fala do amor que aspira a eternidade, como a uma vida capturada na imobilidade da morte. Talvez tenha sido esse paradoxo que levou o poeta brasileiro, Vinicius de Moraes, a ironizar: “o amor é eterno enquanto dura”. Falava do amor como afeição do homem pela mulher e vice-versa. Às vezes, o discurso adquire extensão não cogitada pelo emissor. Da ironia contida na frase do poeta brasileiro capta-se ensinamento valioso.

No sentido cósmico, o amor é eterno, como vida, força afetiva universal vibrando no seio de Deus, genetriz e motor do universo. A teoria dos físicos contemporâneos concebe o universo composto de três tipos de matéria: o tipo de menor extensão, com estrutura atômica conhecida em escala microscópica (núcleo atômico) e macroscópica (galáxias); o tipo de média extensão, composto de matéria escura desconhecida, que ocupa os vazios existentes no espaço interno e externo das galáxias; o tipo de maior extensão, espécie de plasma inefável, substância tênue de estrutura desconhecida, ao que parece já em nível de onda; não estaria, pois, ao lado dos outros dois tipos e sim os envolvendo. Em termos científicos, afigura-se a hipótese de esse tipo de maior extensão sustentar os outros dois; em termos místicos, esse plasma pode ser comparado à alma universal. Stephen Hawking, expoente da Física contemporânea, informa: da observação do universo pelos astrônomos e astrofísicos verifica-se que o espaço continua, continua, continua. Apesar disso, o citado físico entende que há limite nessa expansão; formula a hipótese de o universo ser uma esfera com todos os bilhões de galáxias no seu interior afastando-se umas das outras até o momento da contração; a partir desse ponto, todas as galáxias concentrar-se-ão em uma só; a galáxia única contrair-se-á em uma só estrela, que se contrairá a um só átomo e chegará ao ponto zero. Supondo confirmada essa hipótese, caberá à ciência explicar o que existe mais além da superfície externa da esfera cósmica em sua máxima extensão.

Expressando-se na existência humana individual, o amor dura fração da eternidade; os sentimentos humanos têm o seu tempo de duração. Como o tempo é a fração da eternidade capturada pela inteligência humana, a existência individual e os sentimentos duram essa fração. No curso da existência a relação amorosa entre seres humanos sofre desgaste e pode chegar ao ponto zero. No caso de parceria para existência em comum e satisfação sexual, quando o desgaste chega ao ponto máximo, os parceiros se matam ou separam-se. Perdidas as ilusões, buscam novas parcerias ou preferem aventuras esporádicas e solidão regular. Motivados pela educação que receberam, por crença religiosa que professam, por circunstâncias políticas, sociais e econômicas que os cercam, alguns casais preferem manter a parceria apesar do desgaste. Como pedras, ex-parceiros rolam pela estrada da vida sem jamais se erigir em pedra angular; outros, de tanto rolar se tornam pedras polidas; esses caminhantes têm por companhia a esperança – doce ilusão que renasce no mais vivido e sofrido coração.

Após uma taça de poesia, seguir-se-á o tema FELICIDADE.

segunda-feira, 22 de março de 2010

AMOR3

Terceira parte.

Da combinação do componente sexual com o querer possessivo na relação entre seres humanos pode resultar tragédia. Entram em jogo forças obscuras e devastadoras.
- Se tu não fores minha, não serás de mais ninguém.
- Se não pudermos nos amar, juntos desceremos à sepultura.
A desilusão e a frustração levam à loucura, ao homicídio, ao suicídio. A força afetiva da vida inverte o pólo: de integradora passa a destruidora. O ódio – essa inversão do amor – e a vontade de matar tomam conta do agente. A desesperança ante a frustração desperta a vontade de morrer. O ciúme – esse indesejável companheiro do amor – leva a pessoa ao desespero e à infelicidade. A atração física resiste à disciplina da razão; o apaixonado arrosta todos e arrasta tudo num vendaval: pais, parentes, amigos, autoridades seculares e religiosas, leis morais, jurídicas e canônicas. Shakespeare focalizou bem esse ângulo da paixão no romance Romeu e Julieta.

Natural, o zelo pela pessoa amada. O perigo está no exagero, na imoderação, que torna o zelo doentio, com a pulsão da morte. Para Sigmund Freud, essa pulsão é um conjunto de forças que tende a reconduzir cada ser vivo aos seus estados anteriores até o ponto zero, quando chega ao estado de matéria inanimada. As divindades do amor (Eros) e da morte (Tanatos) integram o processo. A evolução das formas vivas opera-se graças à sexualidade e à morte: criação e extinção incessantes, num movimento perpétuo em que o destino individual de cada ser vivo pouco importa do ponto de vista da evolução das espécies. O indivíduo é importante na transmissão genética, como suporte da mutação a ser transmitida. Sob esse enfoque, o amor funciona como arapuca biológica montada pela natureza.

Laços de família, de amizade, de associação, decorrem da força afetiva da vida. Esposos, pais e filhos se estimam e se mantêm unidos no lar. Vizinhos, colegas de escola e de profissão, professores e alunos, fornecedores e consumidores, governantes e governados, todos atraídos por objetivos comuns, relacionam-se em função dessa lei natural do amor.

Nós nos contemos diante de estranhos, atentamos bem para descobrir o meio favorável de agradá-los e de lhes ser úteis. Com os amigos, porém, excedemo-nos imoderados, descansamos em sua afeição, permitimo-nos caprichos; as paixões exasperam-se indômitas e, assim, magoamos logo aqueles que mais ternamente amamos. (“Máximas” – Goethe).

Ao contemplar as estrelas imaginando um paraíso celeste, um mundo de amor e paz em galáxia distante, o ser humano poderá estar, na verdade, nostálgico do mundo intra-uterino que foi substituído pelo espaço social da família e da comunidade. O túnel ou portal que imagina existir na passagem para outra dimensão pode ser a genética lembrança da travessia do ventre materno para o mundo exterior, registrada no subconsciente. O sonho e o desejo de um mundo melhor certamente têm sua origem na decepção do indivíduo com o mundo em que vive, com o modo pelo qual a humanidade se organizou no planeta e que lhe fecha as portas ao sucesso e à felicidade. Pessoas felizes, de bem com a vida, adaptadas integralmente ao modus vivendi na Terra, satisfeitas com os seus bens e os seus amores, ou com eles envolvidas inteiramente, não contemplam estrelas. A essa contemplação dedicam-se poetas, poetisas, sonhadores; santos, místicos e artistas mais sensíveis falam com as estrelas.

A força afetiva, atrativa e magnética da vida, manifesta-se entre os seres humanos como afinidade, simpatia, amizade, caridade, solidariedade, compaixão, devoção, veneração. A manifestação em tela pode ocorrer na forma de proteção à família, às crianças, aos idosos, aos deficientes físicos e mentais, ao meio ambiente. A afeição recai tanto sobre o poder, a riqueza, a fama, o saber, como também sobre Deus, honradez, bondade, verdade, justiça, modalidade afetiva unilateral e incondicional que não exige reciprocidade e lastreia as virtudes.

No século XX, homens e mulheres ocidentais se libertaram de tabus, de regras ditadas pelo preconceito. O relacionamento sexual readquiriu naturalidade; a prática pelo prazer independente da reprodução, sem medo dos anátemas religiosos. A expressão fazer amor entrou no vocabulário popular para significar o atendimento ao apetite carnal sem complicações éticas, jurídicas ou religiosas. As diferentes técnicas de controle da natalidade contribuíram para essa libertação: relacionamento sem o perigo da gravidez. Além disso, o parceiro pode ser do mesmo sexo, como era na Grécia e Roma antigas. Grupos religiosos judeus, cristãos, muçulmanos, não toleram essa liberação dos costumes.

No mútuo relacionamento, há homens e mulheres que exigem uma dose de ternura e de branda atenção além do prazer físico. Até os profissionais da prática sexual se recusam a manter relações com pessoas violentas, agressivas, salvo quando se trata de perversão combinada. Ciúme e violência assombram o amor entre seres humanos. Em tempo de guerra, desde eras prístinas até o presente século, os invasores forçam relações sexuais com mulheres da cidade conquistada. Longe de casa, o guerreiro busca satisfazer o apetite sexual contra a vontade da mulher que encontra no caminho. Em tempo de paz, homem e mulher se satisfazem com parceiro da sua escolha, num relacionamento de mútuo consenso. O encanto pessoal, a alegria, a cortesia, estão entre os fatores atraentes e sedutores.

Em tempo de paz também há casos sem consentimento: mediante violência ou grave ameaça, o agente constrange mulher à conjunção carnal ou a com ele praticar atos libidinosos. O homem assediar a mulher e vice-versa decorre do magnetismo gerado pelo princípio vital e faz parte da sedução. O assédio adentra o terreno da ilicitude quando o agente insiste na perseguição apesar de o paciente resistir e se mostrar importunado ou constrangido. Há casos de consentimento viciado, como acontece com as crianças quando adultos delas se servem para satisfazer seus instintos. Na primeira década do século XXI tornaram-se públicos inúmeros casos de pedofilia praticada por sacerdotes da igreja católica na América e na Europa.

sábado, 20 de março de 2010

AMOR2

Segunda parte.

No processo natural de formação e extinção das estrelas e de nascimento e morte dos seres vivos verifica-se o movimento de integração e desintegração. Excluídos fatores acidentais ou artificiais, a desintegração dos corpos no reino mineral é demorada, enquanto nos reinos vegetal e animal ocorre em menor tempo. Daí, a característica de longa duração dos minerais (quase infinita, em escala humana) e de curta duração dos seres vivos. A partir de determinado momento da existência do vegetal e do animal, o amor começa a enfraquecer e os elementos das respectivas estruturas a perder coesão.

O germinar de uma semente, o florescimento do broto, o desabrochar da flor, a produção de novas sementes, constituem atividade amorosa no reino vegetal. A força atrativa do amor aproxima os animais, macho e fêmea, para acasalamento. Animais da mesma espécie se atraem, formam comunidades e se deslocam em bando na busca de alimento e abrigo. As abelhas e as formigas ilustram essa organização natural, que inclui a construção do abrigo e a distribuição de tarefas entre os membros do grupo. Animais de espécie diferente se repelem, apesar das exceções conhecidas: fêmeas alimentando filhotes de outra espécie, cães e gatos convivendo harmoniosamente. A regra, porém, é a mãe alimentar e cuidar dos seus próprios filhotes até a idade em que adquirem autonomia; cães perseguem gatos e gatos caçam ratos.

Os animais racionais estão submetidos às mesmas leis dos animais irracionais, tanto no que tange à estrutura física e às funções orgânicas, como no que se refere às suas mútuas relações no tempo e no espaço. A força afetiva da vida provoca as mesmas apetências nos animais racionais e nos irracionais. A diferença está na diversificação do objeto dessas apetências. Enquanto alguns irracionais são herbívoros e outros carnívoros, o ser humano é as duas coisas: na sua dieta nutricional entram vegetais e animais. A carne humana também entra no cardápio dos irracionais e dos racionais. Canibalismo foi constatado em tribos selvagens, inclusive o canibalismo ritualístico: comer a carne do inimigo valente para dele receber a coragem. À diferença do irracional, o animal racional prepara o alimento de vários modos: cru, cozido, assado, com ou sem tempero. Além disso, fabrica alimentos e bebidas.

O amor exagerado ao alimento caracteriza a gula, com ou sem requinte. Pessoas como os chefs, gourmets, enólogos, apuram o paladar e fazem arte e profissão do preparo e da avaliação da comida e da bebida. Além da água, o ser humano consome outros tipos de bebida, com ou sem álcool: refresco, refrigerante, cerveja, vinho, aguardente, uísque, vodca. A produção de comida e de bebida constitui uma indústria que movimenta bilhões de dólares. Os seres humanos buscam a variedade em restaurantes. Ainda que haja mesas disponíveis a maior distância, as pessoas que chegam ao restaurante geralmente buscam as mesas próximas às de quem lá se encontra; obedecem inconscientemente ao instinto associativo, à força atrativa da vida. O mesmo acontece em outras situações, em locais acessíveis ao público: loja, banca de vendedor ambulante, estádio de futebol, praia, estação do trem, aeroporto. Essa força atrativa pode gerar promiscuidade. Segundo a visão de mundo que permite aos membros de uma comunidade usufruir intimamente o mesmo ambiente e as mesmas coisas ao mesmo tempo, onde homens e mulheres se relacionam livremente sem exclusividade, há promiscuidade voluntária. Ocasionalmente, por força das circunstâncias, quando pessoas se vêem na contingência de compartilhar o mesmo espaço e das mesmas instalações, como acontece nos aeroportos quando há suspensão dos vôos por muito tempo, ocorre a promiscuidade involuntária; a pessoa reage buscando isolamento.

Os animais irracionais têm tipos limitados de abrigos obedecendo ao seu determinismo. Nos animais racionais, maior é a variedade: marquises, pontes, viadutos, cavernas, casas, edifícios, palácios, segundo a situação social e a disponibilidade financeira dos indivíduos e grupos. Além dos abrigos físicos, há os abrigos institucionais: no lar, o indivíduo protege a sua intimidade e privacidade; na comunidade, ele se protege da solidão e do desamparo; na escola, ele se protege da ignorância; no hospital, ele se protege da doença; na empresa, ele se protege da pobreza; na embaixada estrangeira, ele se protege da perseguição política em seu país; no tribunal, ele se protege da injustiça; na ordem jurídica do Estado ele busca a garantia da sua liberdade e dos seus bens; na igreja, o amparo de Deus.

No ser humano, a força afetiva da vida gera o desejo, a inclinação para coisas que causam prazer. O desejo, aglutinador de apetências, faz o ser humano procurar fora de si mesmo o poder, a fama, a riqueza, o saber, a felicidade. O amor próprio reflete o desejo do eu de se manter e conservar, de ter vida interior e dignidade, de cuidar do corpo e da alma personalizada. O alvo do desejo pode ser o outro para satisfação sexual. Nesse nível de relacionamento situa-se o conceito de amor expendido por Jean-Paul Sartre: desejo de possuir o outro. Ainda que esse desejo tenha o componente intencional de subjugar vontade alheia, a sua origem reside na força afetiva da vida. O componente intencional é acréscimo que diferencia o animal racional do irracional: envolve a relação sexual com a ética, o direito e a religião. O livre e despreocupado relacionamento no mundo da natureza torna-se um pesadelo de responsabilidades e anátemas no mundo da cultura.

quinta-feira, 18 de março de 2010

AMOR

Primeira parte.

Os cientistas do século XX e primeira década do século XXI não chegaram a um definitivo acordo sobre a origem do universo. Atribuem-na a uma grande explosão de energia concentrada. Dessa explosão inicial surgiram em escala microscópica e macroscópica: a matéria, o tempo, o espaço e o movimento. A vingar essa teoria, é lícito supor, até onde permite o entendimento humano, que a grande explosão foi precedida de um processo de concentração de energia.

O problema da ciência, pois, consiste em explicar a fonte dessa energia, o processo da sua concentração até o ponto de explodir e como isso aconteceu sem que houvesse tempo, espaço e movimento. Concentrar energia supõe dinamismo e quem diz dinamismo, diz movimento. Não pode haver movimento se não houver espaço. O movimento no espaço demanda tempo. Pode-se aventar a hipótese de ser a concentração o estado inicial, sem qualquer processo antecedente. Aplicar-se-ia ou inventar-se-ia, então, algum outro termo, pois concentrar significa trazer para o centro, o que exige movimento, espaço e tempo.

Para alguns cientistas, essa questão encontra limite em Deus. A fonte primordial daquela energia é Deus, de cujo inteligente poder tudo se originou. A mente divina concentrou-se na sua própria energia e a fez explodir. A concentração, pois, não teria sido da energia e sim da força do pensamento divino. Outros cientistas preferem continuar a busca de explicação científica fora da metafísica: a origem divina é muito cômoda e depõe contra a capacidade humana de encontrar a verdade final. A teoria definitiva sobre o universo e a unificação das forças fundamentais da natureza perseguida pelos cientistas contemporâneos, como Stephen Hawking (O Universo em uma Casca de Noz) e Brian Greene (O Universo Elegante), talvez seja elaborada neste século XXI, através de equações e soluções matemáticas a partir da mecânica quântica.

Na seara mística, chega-se à unificação das forças da natureza por outro método. Toma-se por axiomática a existência de Deus, que se manifesta como vida, luz e amor. Parte-se do postulado de que Deus é a fonte da vida (alma essencial) que leva em si a luz (inteligência essencial) e o amor (força afetiva essencial). A vida, energia fundamental inteligente e amorosa, deu origem ao universo. Em si mesmo e para si mesmo, independentemente de tempo e espaço, após concentrar o pensamento sobre a sua própria energia, Deus emitiu o som fundamental, a palavra sagrada, o verbo divino do qual surgiu o mundo. Para os místicos orientais, o som mágico e divino foi OM, som da explosão inicial que aparelhos científicos procuram captar nos céus do universo.

Admite-se a possibilidade de o universo não ter começo nem fim justamente por vibrar em vida, luz e amor no seio de Deus. Em termos humanos, essa possibilidade é apreendida como teísmo essencial e panteísmo existencial: transcendência no ser e imanência no existir. Os limites temporais e espaciais do ser humano levam-no a imaginar que tudo deve ter um começo e um fim, inclusive o universo; que a expansão atual atingirá um limite a partir do qual o universo se contrairá até o ponto máximo e tornará a explodir: sístole e diástole eternas. Ainda que se admita um começo e um fim do universo, alfa e ômega, a grande explosão inicial terá sido uma explosão de vida, luz e amor.

Amor, invencível amor, tu que subjugas os mais poderosos; tu, que repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a teus golpes; e quem for por ti ferido, perde o uso da razão! Tu arrastas, muita vez, o justo à prática da injustiça, e o virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias... Tudo cede à sedução de uma mulher formosa, de uma noiva ansiosamente desejada; tu, amor, te equiparas, no poder, às leis supremas do universo, porque Vênus zomba de nós! (“Antígona” – Sófocles).

A noção comum de amor é a de sentimento humano: afeição a pessoas e coisas; paixão atrativa entre pessoas de sexo oposto ou do mesmo sexo; desejo de possuir pessoas e coisas; ternura, brandura, carinho. Os pais são o primeiro amor dos filhos, condimentado com o complexo de Édipo e Electra. O segundo amor é o de um irmão pelo outro, acompanhado de rivalidade, como simbolizado por Abel e Caim na bíblia hebraica. Outros amores surgem por amigos, professores, artistas, namorados, cônjuges; amores vividos e amores platônicos na infância, na adolescência e na maturidade. Alvos do amor também são: a casa, o jardim, a boneca, a bicicleta, o automóvel, a profissão, a obra de arte, o livro, o cão, o pássaro no viveiro, o peixinho no aquário. Esses amores a pessoas, animais, coisas, deuses e santos são acompanhados de maior ou menor devoção. No seu grau mais agudo, chegam à veneração.

No sentido cósmico, amor significa a força afetiva da vida que permeia o universo. Assim como a inteligência, o amor é inerente à vida. Essa força afetiva atrai as partículas – elétrons, prótons, nêutrons – formando átomos; atrai átomos formando moléculas; atrai moléculas formando a matéria. O amor responde pela atração e pela coesão das partículas no átomo, das moléculas na matéria bruta, das células nos tecidos, dos órgãos no corpo. A gravitação e o magnetismo são expressões dessa força afetiva da vida chamada amor. Em nível microscópico há duas forças nucleares que expressam o amor: a que se convencionou chamar de forte, que mantém prótons e nêutrons unidos no interior do núcleo atômico e a que se convencionou chamar de fraca, que responde pela desintegração radioativa. Quando o amor enfraquece, a matéria se desintegra até o seu estado inicial de pura energia; as partículas retornam à sua liberdade anárquica para depois serem reunidas novamente pelo moto-contínuo da vida.

terça-feira, 16 de março de 2010

POESIAS

Bendito o que, na terra, o fogo fez e o teto / e o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo / e o que encontrou a enxada, e o que, do chá abjeto / fez, aos beijos do sol, o ouro brotar do trigo / e o que o ferro forjou, e o piedoso arquiteto / que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo/ e o que os fios urdiu, e o que achou o alfabeto / e o que deu uma esmola ao primeiro mendigo / e o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano / e o que inventou o canto e o que criou a lira / e o que domou o raio, e o que alçou o aeroplano / mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo / descobriu a esperança, a divina mentira / dando ao homem o dom de suportar o mundo! (“Benedicite!” – Olavo Bilac).

Este, que um deus cruel arremessou à vida / marcando-o com o sinal da sua maldição / - Este desabrochou como a erva má, nascida / apenas para aos pés ser calcada no chão. / De motejo em motejo arrasta a alma ferida... / Sem constância no amor, dentro do coração / sente, crespa, crescer a selva retorcida / dos pensamentos maus, filhos da solidão. / Longos dias sem sol! Noites de eterno luto! / Alma cega, perdida à toa no caminho! / Rôto casco de nau, desprezado no mar! / E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto / e, homem, há de morrer como viveu: sozinho! / Sem ar! Sem luz! Sem Deus! Sem fé! Sem pão! Sem lar! (“Só” – idem).

Só a leve esperança, em toda a vida / disfarça a pena de viver, mais nada / nem é mais a existência, resumida / que uma grande esperança malograda. / O eterno sonho da alma desterrada / sonho que a traz ansiosa e embevecida/ é uma hora feliz, sempre adiada / e que não chega nunca em toda a vida./ Essa felicidade que supomos / árvore milagrosa que sonhamos / toda arreada de dourados pomos / existe, sim: mas nós não a alcançamos / porque está sempre apenas onde a pomos / e nunca a pomos onde nós estamos. (“Velho tema” – Vicente de Carvalho).

Ó cisnes brancos, cisnes brancos / por que viestes, se era tão tarde? / O sol não beija mais os flancos / da montanha onde morre a tarde./ Ó cisnes brancos, dolorida / minha alma sente dores novas. / Cheguei à terra prometida: / é um deserto cheio de covas. / Voai para outras risonhas plagas / cisnes brancos! Sêde felizes.../ Deixai-me com as minhas chagas / e só com as minhas cicatrizes. /.../ (“O cisnes brancos” – Affonso Guimaraens).

O teu nome senhora, é a estrela da alva / que entre alfombras de nuvens irradia: / salmo de amor, canto de alívio, e salva / de palmas a saudar a luz do dia. / Pela primeira vez, quando a veste alva / a mão do sacerdote me vestia / ouvi-o: e na hora batismal, oh! Salva / a alma que o santo nome repetia. / Foram-se os anos... e sonho que me segue / a doçura infinita dos teus olhos / que me dão luzes para que eu não cegue: / Doce clarão de estrelas em fins da tarde / que há de encontrar-me trêmulo, de giolhos / com remorso de te adorar tão tarde. (“O teu nome senhora” – idem)

Quando Ismália enlouqueceu / pôs-se na torre a sonhar / Viu uma lua no céu / viu outra lua no mar. / No sonho em que se perdeu / banhou-se toda em luar / queria subir ao céu / queria descer ao mar / e, no desvairo seu / na torre pôs-se a cantar / estava perto do céu / estava longe do mar / e como um anjo pendeu / as asas para voar / queria a lua do céu / queria a lua do mar. / As asas que Deus lhe deu / ruflaram de par em par / sua alma subiu ao céu / seu corpo desceu ao mar. (“Ismália” – idem).

Quem foi que viu a minha dor chorando?! / Saio. Minha alma sai agoniada./ Andam monstros sombrios pela estrada / e pela estrada, entre estes monstros, ando! / Não trago sobre a túnica fingida / as insígnias medonhas do infeliz / como os falsos mendigos de Paris / na atra rua de Santa Margarida. / O quadro de aflições que me consomem / o próprio Pedro Américo não pinta / Para pintá-lo, era preciso a tinta / feitas de todos os tormentos do homem! / ... / Bati nas pedras dum tormento rude / e a minha mágoa de hoje é tão intensa / que eu penso que a alegria é uma doença / e que a tristeza é minha única saúde! / ... / Vou enterrar agora a harpa boêmia / na atra e assombrosa solidão feroz / onde não cheguem o eco duma voz / e o grito desvairado da blasfêmia! / ... / Seja esta minha queixa derradeira / cantada sobre o túmulo de Orfeu / seja este, enfim, o último canto meu / por esta grande noite brasileira! / Melancolia! Estende-me a tua asa! / És a árvore em que devo reclinar-me / se algum dia o prazer vier procurar-me / dize a este monstro que eu fugi de casa! (“Queixas noturnas” – Augusto dos Anjos).

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! / O amor na humanidade é uma mentira. / É. E é por isto que na minha lira / de amores fúteis poucas vezes falo. / .../ Pois é mister que, para o amor sagrado / o mundo fique imaterializado / - Alavanca desviada do seu fulcro - / e haja só amizade verdadeira / duma caveira para outra caveira / do meu sepulcro para o seu sepulcro?! (“Idealismo” – idem).

Agora, sim! Vamos morrer reunidos / tamarindo de minha desventura / tu, com o envelhecimento da nervura / eu, com o envelhecimento dos tecidos!/ Ah! Esta noite é a noite dos vencidos! / E a podridão, meu velho! E essa futura / ultra-fatalidade de ossatura / a que nos acharemos reduzidos! / Não morrerão, porém, tuas sementes! / E assim, para o futuro, em diferentes / florestas, vales, selvas, glebas, trilhos / na multiplicidade dos teus ramos / pelo muito que em vida nos amamos / depois da morte, inda teremos filhos! (“Vozes da morte” – idem).

domingo, 14 de março de 2010

LUZ5

Quinta parte.

Distinguem-se no ser humano: a inteligência racional, ativada na parte superior do cérebro; a inteligência emocional, ativada na parte média; a inteligência instintiva, ativada na base do cérebro. Para conhecer a si mesmo e ao mundo, o ser humano utiliza esses três níveis da inteligência. Em ocasiões de perigo, a inteligência instintiva indica rumos, desempenha papel defensivo relevante. Por intermédio da inteligência emocional a pessoa tem acesso ao mundo espiritual, apreende o sentido de uma obra de arte, percebe a oculta intenção do interlocutor, tem uma lúcida percepção da fonte dos sentimentos próprios e alheios. A inteligência racional mostra-se adequada ao trabalho científico e filosófico, ao equacionamento de problemas mundanos, à disciplina da conduta individual e coletiva no campo social, político e econômico. Essas funções da inteligência podem atuar em conjunto. Assim, nos jogos, pode-se tipificá-la como inteligência lúdica.

O cérebro é o órgão produtor e emissor da luz intelectual. As idéias são concebidas com os dados fornecidos pelos sentidos e depositados na memória. Nessa operação o cérebro gera energia eletromagnética que se propaga em ondas. Essa energia também produz calor, aquecendo a cabeça, mormente quando o indivíduo está concentrado na solução de um problema. As ondas neurais podem ser captadas por um cérebro receptor, desde que esteja em sintonia com o emissor. Experiências parapsicológicas realizadas na antiga URSS e nos EUA, para fins militares, mostraram que idéias e imagens podem ser transmitidas intencionalmente de cérebro a cérebro sem utilização de aparelho. A transmissão de idéias e imagens provocada, voluntária, ocorre também mediante experimentos místicos. A transmissão espontânea, involuntária, é comum entre pessoas que convivem por muito tempo, como cônjuges, pais e filhos ou colegas de trabalho. Mostra-se correta, pois, a analogia entre esse fenômeno mental e o fenômeno da emissão e recepção de ondas de rádio e televisão.

Remetem-se à filosofia e ao misticismo as questões sobre a permanência das ondas neurais no espaço depois de cessada a emissão, bem como, sobre a existência de idéias e imagens fora do cérebro, produzidas e localizadas no mundo espiritual. Depois de cessada a fonte emissora, a força gravitacional mantém no espaço as ondas cerebrais. Forma-se uma aura ou uma auréola em torno do planeta como se fora um tipo de memória onde estariam arquivadas as idéias e a história da humanidade. Em certas circunstâncias, geralmente depois de refletir ou meditar sobre algum assunto, o indivíduo apreende uma idéia ou imagem inesperada, como um foco de luz que se acende. Platão crê no mundo espiritual, do qual o mundo material é a sombra; naquele mundo, as idéias existem originalmente como arquétipos. Os seres humanos têm acesso a essa memória cósmica, espacial e/ou ideal, desde que devidamente sintonizados. Desse modo, obtêm conhecimento. Eureca! Exclama Arquimedes, no século III a.C, ao entrar na banheira e notar o deslocamento da água provocado por seu corpo; acabara de descobrir a lei do volume dos líquidos. Newton, no século XVII, descobrira a lei da gravitação universal ao receber na cabeça, segundo a lenda, maçã caída da árvore sob a qual descansava.

A filosofia e o misticismo se debruçam, também, sobre a questão do agente pensante, se é o cérebro ou se é a alma personalizada. A ciência e a filosofia materialista respondem que é o cérebro. Os místicos e a filosofia idealista respondem que é a personalidade anímica. O cérebro é o órgão físico processador do pensamento, mas quem pensa é a personalidade. As idéias são produzidas pela inteligência e a inteligência é função da alma universal e da alma personalizada. Aquietando o cérebro e entrando em contato direto com a memória cósmica é possível obter conhecimento

Quando opera para colocar ordem nas idéias a inteligência recebe o nome de razão; quando opera para produzir idéias e imagens, a inteligência recebe o nome de imaginação. Razão e imaginação parece forma operacional da inteligência exclusiva do ser humano. Há probabilidade – não há certeza – da existência de seres racionais e imaginativos em outros pontos do universo. Quanto aos seres desencarnados que pairam no mundo espiritual – tomando-se como certa a existência desse mundo e desses seres – a citada forma operacional é dispensável, posto o acesso direto ao conhecimento sem os entraves da matéria. O terreno metafísico, envolto em permanente neblina, impede a visão racional; nele se penetra com a lanterna da fé e da intuição. A razão opera com os dados trazidos pelos sentidos. O silogismo de autoria de Aristóteles, citado nos manuais de lógica, serve de exemplo: todo homem é mortal (axioma fundado na experiência); Sócrates é homem (verificação sensível, pois “Sócrates” pode ser o nome de um animal de estimação); logo, Sócrates é mortal (inferência racional). De proposições evidentes por si mesmas denominadas axiomas a razão deduz novas proposições denominadas teoremas.

Algumas proposições consideradas axiomáticas são colocadas fora de discussão, tais como: existência de Deus, imanência da vida no universo, bipolaridade da energia fundamental do universo, mortalidade dos seres vivos, racionalidade dos humanos. Os céticos duvidam da capacidade da inteligência humana de ir além da aparência e chegar à essência das coisas. Inobstante, a partir das proposições axiomáticas e do testemunho dos sentidos o ser humano elabora teorias e doutrinas a fim de orientar e disciplinar a conduta humana, explicar e compreender o mundo natural, cultural e espiritual. Nessa tarefa há desacordos. O debate enseja luz. Perplexos, os debatedores descobrem que em certos assuntos que estimulam a curiosidade, a mente humana é incapaz de chegar à verdade definitiva e monolítica.

A pretensão à verdade monolítica aduba o totalitarismo no mundo político e o fanatismo no campo religioso e místico. A verdade de cada um há de ser guardada com carinho, porém a mente deve se abrir a novas possibilidades. A substituição da verdade antiga pela nova nem sempre é imediata; geralmente, há um período de resistência até que os espíritos se acomodem. A mente inquiridora prossegue na busca de maior luz.

Após uma taça de poesia, o próximo tema será AMOR.

sexta-feira, 12 de março de 2010

LUZ4

Quarta parte.

A verdade há de ser dita perante juiz ou tribunal. Em alguns sistemas jurídicos, porém, são dispensados de dizê-la: os pais em relação aos filhos e vice-versa; o esposo em relação à esposa e vice-versa; o réu contra si mesmo. Os deveres decorrentes dos laços de família, como fidelidade e mútua assistência, bem como os vínculos afetivos e religiosos, desobrigam a pessoa de prestar depoimento que possa prejudicar o cônjuge ou os parentes. No que tange ao réu, o fulcro da norma é a idéia de que não se deve constranger pessoa alguma a acusar a si própria. Todavia, como o direito de calar não gera direito de mentir, se o réu opta por falar, deverá dizer a verdade.

No sistema judicial dos EUA, todos são obrigados a dizer a verdade, jurando com a mão sobre a bíblia: partes, parentes, cônjuges, amigos. No sistema judicial brasileiro não há juramento e sim compromisso. Há pessoas que não podem prestá-lo por incapacidade, impedimento ou suspeição. Incapazes, são os menores de 16 anos, o doente mental, o cego e o surdo no que tange a fatos que dependem dos sentidos que lhes faltam. Impedidos, são os cônjuges e parentes das partes. Suspeitos, são o amigo íntimo ou o inimigo capital da parte, a pessoa que tiver interesse no litígio e o indivíduo de maus costumes ou que foi condenado por falso testemunho. Se violar o compromisso de dizer a verdade, a pessoa ficará sujeita a processo criminal por falso testemunho.

A condescendência é um traço cultural brasileiro. Raramente, o mentiroso é processado por falso testemunho. Criminosos do colarinho branco são tratados com benevolência. Mesmo condenado em primeiro grau, após usufruir de todas as garantias do devido processo legal, esse tipo de criminoso fica em liberdade até a sentença transitar em julgado, o que pode demorar dezenas de anos. A demora enseja a prescrição. Operada a prescrição, a sentença condenatória perde seus efeitos. A liberdade desse tipo de criminoso ficou assegurada por decisão do Supremo Tribunal Federal ao interpretar equivocadamente norma constitucional.

De acordo com o código de processo penal, mesmo sem transitar em julgado, a sentença condenatória produz efeitos imediatos: a prisão do condenado e o lançamento do seu nome no rol dos culpados (art. 393). O precedente de 2008, criado pelo Supremo Tribunal no rumoroso caso Daniel Dantas, retirou a eficácia desse dispositivo legal, o que beneficiou outros tipos de criminosos: os que estavam presos, foram soltos; os que estavam soltos, não foram presos. As pessoas de bem e de posses, cercam de muros e grades as suas casas; ao saírem às ruas, se fazem acompanhar de seguranças particulares porque a polícia, em algumas cidades, além de desestimulada, mal equipada, mal paga e parcialmente corrupta, não dá conta do serviço. Lucram as empresas de segurança. Quem não pode contratá-las, recorre à proteção divina e, em alguns casos, aos traficantes da área.

Raciocínio especioso no processo judicial distingue verdade formal e verdade material. A primeira corresponde à prova dos autos do processo; a segunda, aos fatos reais. Essa distinção serve para justificar sentença contrária à realidade social. Como nem sempre as duas verdades coincidem no julgamento, o senso de justiça da população se manifesta e a magistratura sofre o desgaste. O sofisma é evidente. Não há duas verdades relativas à mesma coisa: esta é ou não é. Ser ou não ser, eis a questão, notória frase de Shakespeare, inspirada nos princípios lógicos de identidade, de não contradição e do terceiro excluído.

A verdade é ontológica. Formal é a ordem das proposições colocada pela inteligência no argumento ou na demonstração; é o conjunto de regras utilizado para atingir um fim. Do processo judicial, o fim social é pacificar, o fim ético é justiça, o fim lógico é coerência, o fim político é tornar efetiva a ordem jurídica, declarar o direito e aplicá-lo ao caso concreto segundo a prova produzida. A sentença, total ou parcialmente, acolhe ou rejeita a pretensão deduzida em juízo. Ao fazê-lo, há de cumprir aqueles fins. A sentença vale como imperativo jurídico; vale e é acatada por ser expressão da autoridade do Estado e resultar do devido processo legal – e não por exprimir esta ou aquela verdade.

Apesar disso, quanto maior a sintonia da sentença com a realidade social, mais respeitada será pelos jurisdicionados; maior será a probabilidade de a sentença estar ajustada ao bem comum. No processo judicial, a razoabilidade e a proporcionalidade são critérios fundamentais da sentença. A reforma da sentença de primeiro grau não significa que o juiz faltou com a verdade e sim que, na opinião do tribunal, o juiz não declarou e/ou não aplicou bem o direito ao caso concreto. A opinião do tribunal se impõe em face da hierarquia jurisdicional e não porque seja mais verdadeira ou melhor do que a sentença reformada. Na história judiciária há casos em que censurável foi a reforma. Como se diz em literatura: saiu pior a emenda do que o soneto. Os tribunais estão mais sujeitos ao tráfico de influência; no colegiado, a responsabilidade se dilui.

A presunção de inocência e de boa fé, acolhida pelo direito positivo, tem motivado graves equívocos na distribuição da justiça. Coloca-se o processo judicial numa redoma: o que não está nos autos, não está no mundo! Acontece que o juiz, os jurisdicionados e o processo estão no mundo. O que se passa na sociedade não pode ser ignorado. A realidade social pode inverter a presunção de inocência. Em cidade aonde os motoristas costumam dirigir ônibus em alta velocidade, sem atender à sinalização e às regras de trânsito e da boa educação, milita contra eles a presunção de culpa em caso de atropelamento. Falar-se, nesse caso, em presunção de inocência do motorista é fugir da realidade, é distribuir justiça para os livros e não para o povo.

No Brasil, a corrupção é endêmica, nacional e internacionalmente notória. Se a corrupção está enraizada no país, tanto no setor privado como no setor público, se a corrupção é um dos traços da civilização brasileira, ainda que herdado da civilização lusa, então não pode haver presunção de inocência dos envolvidos nesse tipo de ilícito. Até prova em contrário, a presunção é de culpa dos agentes políticos, administrativos e demais envolvidos em casos de corrupção e lavagem de dinheiro.

Destarte, sendo a corrupção um traço da cultura brasileira, aplicar presunção de inocência aos corruptos é homenagear os livros e a doutrina estrangeira e distanciar-se da realidade nacional, frustrando aquela parcela da população que ainda cultiva os valores morais e crê no direito. Melhor seria que o legislador, atendendo aos maus costumes da maioria da população brasileira, excluísse a corrupção do código penal, ao invés de elaborar normas capciosas sob medida para proteger a ele próprio e aos demais corruptos. O efeito dessas normas capciosas, ditadas pela esperteza enganosa combinada com a sociologia livresca, é o de alargar o campo da impunidade, desmoralizar a magistratura e desacreditar o direito. Outra solução é colocar aquela maioria nos trilhos da moralidade, o que exige processo de educação contínuo e persistente por algumas gerações. Para tanto, vontade política é necessária, o que não se vê no horizonte da pátria brasileira.

quarta-feira, 10 de março de 2010

LUZ3

Terceira parte.

O ato de conhecer supõe inteligência. Deus, seres espirituais, fenômenos naturais, são fontes aonde a inteligência humana vai se abeberar. No ato de conhecer, a pessoa é sujeito; no fato de ser investigada e conhecida, a pessoa é objeto. A inteligência natural manifesta-se no mundo físico como lei: agrupa partículas de energia em átomos, diversifica-os e os organiza de diferentes modos em moléculas, dando origem à matéria. Essa inteligência subjaz na gênese e no desenvolvimento do ser vivo: faz o vegetal produzir a semente que o renovará; orienta o animal em direção ao alimento, à água, ao acasalamento, ao abrigo, compondo os instintos. A organização das formigas e das abelhas evidencia tal inteligência, inclusive com engenhosos expedientes para enfrentar e transpor obstáculos. Em laboratório, ratos e macacos mostram capacidade de aprender.

Documentários exibidos na televisão mostram a dinâmica dessa inteligência natural. Um deles exibe cenas em que animais irracionais celebram acordo tácito. A zebra, à morte por exaustão, foi atacada por hienas. A leoa, seguida dos filhotes, aproximou-se do banquete mansamente. As hienas afastaram-se raivosas e se mantiveram a curta distância. A leoa tomou assento em uma das extremidades da zebra já morta e começou a refeição junto com os filhotes. Cautelosamente, as hienas se aproximaram e tomaram assento na extremidade oposta. Cada qual no seu lado, apesar de inimigos, leões e hienas participaram do banquete sem se molestarem reciprocamente.

Observando e estudando a natureza e a si próprio, o ser humano aprende, armazena e transmite o que aprendeu servindo-se dos sentidos e das faculdades mentais. Do pensamento e da ação do ser humano surge o mundo da cultura. Como espécie animal produtora de cultura, o ser humano é fonte de todos os valores; como buscador da luz, ele dispõe da natureza, do acervo cultural da humanidade e da sua própria experiência de vida.

Do ponto de vista místico e por analogia com o campo de gravitação dos astros e com a aura humana é possível imaginar um campo vibratório em torno do planeta onde se acha arquivado o conhecimento acumulado pela humanidade. Nessa auréola planetária encontrar-se-iam os arquétipos de que falava Platão. À semelhança dessa imagem, outras se criam: um grupo de pessoas que se reúne regularmente forma atmosfera impregnada de idéias, sentimentos e propósitos denominada consciência coletiva. Na esfera espiritual, a aura dos mestres propicia conhecimento e inspiração às pessoas que com ela entram em contacto. O canal de acesso a essa esfera pode se abrir ao acaso, num momento de intenso sofrimento e de necessidade extrema, que coloca a pessoa em estado de momentâneo merecimento. Abrir-se-á, também, pelo preparo do buscador: reflexão, meditação, dedicação constante e regular aos assuntos divinos e às práticas místicas. Esse caminho requer paciência, perseverança e uma atitude de fé e desprendimento.

Entre os objetivos do ser humano está o de conhecer a estrutura e o funcionamento do mundo espiritual, do mundo natural e do mundo cultural. Nessa atividade cognoscitiva ele especula sobre a existência, forma, substância e poder de Deus; sobre a existência do mundo espiritual, o perfil dos seus habitantes e a hierarquia entre eles; sobre os arquétipos e os vínculos com o mundo natural e cultural; estuda e procura explicar os fenômenos da natureza, os princípios e leis que os regem; estuda e procura compreender a si próprio, seus órgãos e funções, as operações da inteligência, as ações externas e sua organização social, política e econômica. O ser humano questiona até a sua capacidade para conhecer e chegar à verdade; tomado pelo ceticismo, coloca em dúvida o seu saber.

O conhecimento obtido pode ser falso ou verdadeiro. A verdade não é algo substancial, não é uma coisa em si; trata-se de uma relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível. Na base de muitas divergências no âmbito da ciência, da filosofia, da religião e do misticismo, está o equívoco de considerar a verdade como substância. Do ponto de vista ontológico, todas as coisas materiais são verdadeiras, tal como enuncia o princípio da identidade: o que é, é; as coisas são o que são e ponto final. Um anel de vidro é um anel de vidro; se alguém disser que é de diamante, a falsidade estará na afirmação e não no anel; se alguém o fabricar para que seja tomado por diamante, a falsidade estará no fabricante e não no anel; por mera força de expressão se diz que o anel é falso. Verdade e falsidade são relações lógicas: o pensamento verdadeiro corresponde exatamente ao objeto tal qual é; o pensamento falso escapa a essa correspondência.

Diz-se falsa, a palavra que não corresponde ao pensamento. No campo da falsidade encontram-se: o mentiroso, aquele que sabendo a verdade afirma o contrário; o hipócrita, aquele que finge sentir e pensar algo que não sente e nem pensa; o estelionatário, aquele que induz o outro em erro mediante artifício ou ardil, a fim de obter vantagem. A verdade, pois, além de ser um problema gnosiológico é também um problema ético e jurídico, uma vez que a falsidade pode ser voluntária. Nas suas relações e experiência de vida comunal, os seres humanos percebem a necessidade da verdade e a utilidade da falsidade.

A verdade figura como valor fundamental ao lado da justiça, da bondade, da beleza e da santidade. Ser veraz é dever moral, prova de honestidade. Louva-se a verdade e condena-se a falsidade voluntária, a mentira, a hipocrisia, o estelionato. Entretanto, na vida em sociedade nem sempre há lugar para a verdade. Há situações em que tem lugar a mentira piedosa, como no caso de doença letal ou de acidente grave, quando o dever de caridade prepondera sobre o dever de veracidade. Tolera-se, também, a mentira brejeira, como a contada em reunião social para divertir e não se exige rigor lógico nem se questiona a honestidade do contador. Bem conhecidas, no Brasil, as lorotas de pescador.

segunda-feira, 8 de março de 2010

LUZ2

Segunda parte.

Além do medo e da pulsão inata ao saber, concorre para a busca de maior luz a aspiração ao poder, ao domínio do outro ou da sociedade. Parcela da humanidade percebeu que o saber pode propiciar poder, fama e riqueza; que o domínio da ciência e da técnica é fundamental na competição entre os povos; que a informação tem valor estratégico e econômico. Emissoras de rádio e televisão, rede de computadores, telefones comuns e celulares, telégrafo, correios aéreos, terrestres e fluviais com veloz capacidade de entrega, levam informações às zonas urbanas e rurais, a regiões próximas e distantes, dentro e fora do território nacional, por todo o orbe. Na voragem da conquista de corações e mentes, as empresas de comunicação social disputam audiência, manipulam notícias, constroem e destroem reputações, sustentam e derrubam regimes políticos.

A mentalidade mercantil no mundo contemporâneo estendeu-se aos mais variados setores da sociedade; sufocou o humanismo no campo da política, da economia, da religião, do trabalho, da educação, da saúde, da moradia, da arte, da ciência, da tecnologia, dos esportes, do meio ambiente. O planeta não se tornou apenas uma aldeia global como dissera, no século XX, o teórico da comunicação, Herbert McLuhan; o planeta se tornou também uma colossal feira livre. Independentemente da distância, compra-se e vende-se instantaneamente, pela rede de computadores, produtos oferecidos em suas páginas; por telefone, produtos anunciados na TV; utilizam-se cartões de crédito e de débito; transações bancárias se concluem por via eletrônica. A moeda ocupa lugar central nas relações entre pessoas e povos. Nos mais diversos assuntos, a moeda se insinua. O poder econômico engolfou o poder político. Governantes e governados se corrompem. A moeda esteriliza a ética. Legisladores buscam inteirar-se das novas situações e demandas junto à comunidade e às corporações, a fim de lhes dar solução normativa. Enquanto não sobrevém legislação específica, magistrados tentam adaptar à ordem jurídica vigente, as relações decorrentes das mudanças na sociedade, submetidas à apreciação judicial no devido processo. Na construção jurisprudencial resultante do esforço hermenêutico, os princípios fundamentais do direito exercem papel relevante.

A trajetória do raio de luz é retilínea, mas se torna curvilínea ao passar por um campo de gravitação. Isto foi observado durante o eclipse do sol, em 1919, e comprovou a teoria de Einstein sobre tal curvatura. A retidão moral também encontra campo de gravitação que desvia o comportamento humano: diante do lucro, cedem os valores éticos e religiosos.

O conhecimento astrofísico, a criação de novas técnicas e equipamentos para perscrutar o universo, os computadores, os satélites artificiais, a navegação espacial, as estações espaciais, ensejaram novos produtos de consumo para a sociedade. A pesquisa do átomo e das suas partículas, a técnica para utilização da energia nuclear, a biologia molecular e celular, tornaram-se elementos do poder militar e econômico. A cibernética contribuiu para a robotização da indústria e avanço da informática, onde a programação (software) e as respectivas máquinas (hardware) são valorizadas comercialmente. Fortunas se acumularam nas mãos de uns poucos detentores desse tipo de conhecimento.

À vetusta anatomia veio agregar-se a melindrosa fisiologia no mundo moderno. Após a descoberta da circulação do sangue, por William Harvey, na Europa do século XVII, e os estudos das funções do organismo humano, a fisiologia se enriqueceu com a bioenergética, a endocrinologia e a neurofisiologia. O calor do corpo humano foi explicado pelo funcionamento dos sistemas respiratório e circulatório. Das secreções glandulares, passou-se ao exame da estrutura e do funcionamento das células e das moléculas. A medicina molecular entra no circuito terapêutico. O genoma foi decifrado. O cérebro humano ficou mais conhecido após o estudo dos neurônios e a localização de áreas específicas para cada sentido, o que ajudou na prevenção e no combate de doenças e gerou nova postura diante das anomalias mentais. A cibernética surge do casamento entre a engenharia de sistemas e a neurofisiologia. O conhecimento das redes neurais aplicado a máquinas e a organizações enseja sistemas de comunicação e a denominada “inteligência artificial”.

Ao ajudar o ser humano a conhecer a si mesmo, a ciência foi além da estrutura e do funcionamento do organismo humano: invadiu a psique – a alma personalizada – a fim de lhe desvendar os mistérios. A psicanálise revolucionou a ciência. O médico austríaco Sigmund Freud, na última década do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, inaugurou essa técnica terapêutica e a divulgou no mundo científico. Na teoria psicanalítica divergem os estudiosos, como soe acontecer no mundo das idéias. Estados de consciência, subconsciência e inconsciência foram identificados. A ciência se debruçou sobre os fatores endógenos e exógenos que determinam a conduta e a visão de mundo da pessoa. Os estudos de Pavlov sobre os reflexos condicionados lançaram luz sobre o comportamento humano. A hipnose auxiliou na investigação dos mecanismos da mente e do poder da sugestão.

sábado, 6 de março de 2010

LUZ

Primeira parte.

Fiat lux! Ordem emanada do ser divino, ao criar o mundo, para afastar as trevas, segundo o relato do indivíduo ou do grupo de indivíduos que escreveu o Gênesis, primeiro livro da bíblia. Eis a seqüência: no princípio, deus criou os céus e a terra; a terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo; o espírito de deus pairava sobre as águas. Então, deus disse: faça-se a luz! E a luz foi feita. À luz, deus chamou dia; às trevas, chamou noite.

Esse livro é hebreu, como os demais livros do Antigo Testamento. Os povos da Idade Antiga eram politeístas; cada povo tinha vários deuses. O povo hebreu não era exceção: por 400 anos, afeiçoou-se bem ao politeísmo egípcio; também se afeiçoou a deuses de outros povos. O deus citado no Gênesis é Javé ou Jeová, criado por Moisés e imposto aos hebreus a golpes de espada. A história contada nesse livro teria sido escrita ou ditada por Moisés, porém o rolo que a continha queimou-se. O sacerdote Esdras, sozinho ou ajudado por outros sacerdotes judeus, o escreveu novamente, por volta do século V a.C. Foi essa versão, escrita por Esdras e não por Moisés, que chegou até a Idade Contemporânea, depois de revisada no século II d.C.

Ao narrar a criação do mundo, o escritor do Gênesis citou a terra à parte. Desse modo, fez do nosso planeta o centro da atenção divina, como se a terra estivesse fixa no espaço e separada dos céus (cosmos, universo). A teoria geocêntrica de Ptolomeu recebeu as bênçãos do Papa tendo em vista se harmonizar com essa narrativa do livro hebraico, além de encontrar apoio filosófico no conhecido sofisma de Aristóteles: “as coisas pesadas tendem a cair para o centro do universo; ora, as coisas pesadas tendem a cair para o centro da terra; logo, o centro da terra é o centro do universo”. Ninguém se lembrou de perguntar a Aristóteles, de onde ele sacou a premissa maior; onde estava a prova de que o universo tinha um centro. A sua autoridade intelectual era o quanto bastava. A igreja católica aceitou o sofisma de bom grado e abriu os braços a Aristóteles, trazido para o seio da doutrina pelas mãos de Tomaz de Aquino. Ao surgir, a teoria heliocêntrica, de Copérnico, foi considerada herética.

O abismo referido no texto bíblico está como sinônimo de vórtice, caos, pois seria incongruente como sinônimo de precipício. Estranho: o espírito divino pairava sobre as águas e não sobre o mundo criado. O que ele fazia ali concentrado? Parece que ele estava na dúvida se mergulhava ou se planava.

Na opinião do escritor do citado livro, deus falava, mas ninguém sabe ao certo em que idioma, se no edênico, hebraico, grego ou latim, até porque naquele momento solene ainda não havia auditório com pessoas e holofotes. O primeiro homem só foi criado no sexto dia. Javé emitira aquela ordem no primeiro dia e não se mostrava apressado. De acordo com o escritor, Jeová viu a uva – perdão – Jeová viu que a luz era boa e a separou das trevas. Essa afirmativa revela o receio desse deus de criar coisa ruim. Ao emitir o divino juízo, Jeová parecia aliviado: “Ufa! Criei coisa boa!” O escritor lançava no mencionado livro, os seus temores, as suas incertezas, as suas crenças, as suas angústias, a sua ignorância, como se fossem de Jeová.

Em termos bíblicos, pois, luz significa ausência das trevas; claridade que torna as coisas visíveis. Em termos científicos, luz é explicada como radiação eletromagnética produzida por uma fonte natural, como as estrelas, ou por uma fonte artificial, como a lâmpada elétrica. Essa radiação se propaga em ondas à velocidade de quase 300 milhões de metros por segundo e resulta da liberação de elétrons pela ação do calor ou da descarga elétrica em corpos sólidos ou gasosos.

No sentido figurado e por analogia com a claridade, aplica-se o vocábulo luz ao entendimento humano, ao pensamento claro, à compreensão plena, à evidência do conhecimento adquirido mediante processo racional ou irracional. Daí falar-se em luz da razão, pessoa iluminada, pessoa intuitiva. Mediante operação analógica, a inteligência relaciona luz ao saber e trevas à ignorância. A luz que no plano sensorial permite ver (com os olhos do corpo) simboliza a inteligência que no plano racional permite conhecer (com os olhos da alma). Ver com clareza, no sentido físico, significa bem distinguir as coisas captadas pelo órgão da visão; no sentido cognoscitivo, significa apreender e compreender plenamente o objeto visado. Assim como a luz física (natural ou artificial) não se confunde com a coisa ou o ambiente iluminado, a luz intelectual também não se confunde com a coisa apreendida e compreendida. A inteligência é função da vida para o ato de conhecer. No ser humano, a inteligência atende a uma curiosidade inata, a um desejo de conhecer e compreender.

Nas trevas, o ser humano fica impossibilitado de enxergar o que está à sua volta, de se orientar ou de se defender de eventual perigo. O medo e a necessidade incitam o ser humano a buscar a claridade, seja a solar, a lunar, a produzida por uma fogueira ou por uma lâmpada. A busca do conhecimento, a busca da luz do saber pode ser provocada pela tomada de consciência dos males advindos da ignorância. Na escuridão mental, a pessoa corre o risco de ficar privada dos seus bens, da sua liberdade, dos seus meios de defesa e das oportunidades de progresso.

O temor de sofrer males derivados da ignorância agrava a fragilidade e o desamparo da pessoa e intensifica a necessidade de segurança. Enxergando e conhecendo o terreno em que pisa, a pessoa se movimenta com segurança, toma decisões acertadas, questiona e responde corretamente nas diferentes situações em que se encontra na vida, tais como: entrevistas, exame de aptidões técnicas e intelectuais, viagem de trabalho e de lazer, escolha de parceiro e de profissão e assim por diante. Quanto mais informação tiver sobre o alvo do seu interesse e sobre os atributos e recursos dos concorrentes, maior será a chance de a pessoa bem avaliar a situação e estabelecer estratégias adequadas.

quinta-feira, 4 de março de 2010

POESIAS

Que importa do nauta o berço / donde é filho, qual seu lar?/ Ama a cadência do verso / que lhe ensina o velho mar!/ Cantai! Que a morte é divina! / Resvala o brigue à bolina / como golfinho veloz / presa ao mastro da mezena / saudosa bandeira acena / as vagas que deixa após. / (...) / Desce o espaço imenso, ó águia do oceano! / desce mais... ainda mais... não pode olhar humano / como o teu mergulhar no brigue voador! / Mas que vejo eu aí... que quadros d´amarguras! / É canto funeral!... Que tétricas figuras!... / Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! / Era um sonho dantesco... o tombadilho / que das luzernas avermelha o brilho / em sangue a se banhar. / Tinir de ferros... estalar de açoite... / Legiões de homens negros como a noite / horrendos a dançar... / (...) / Quem são estes desgraçados / que não encontram em vós / mais que o rir calmo da turba / que excita a fúria do algoz? / Quem são? Se a estrela se cala / se a vaga opressa resvala / como um cúmplice fugaz / perante a noite confusa... / Dize-o tu, severa Musa / Musa libérrima, audaz!... / São os filhos do deserto / onde a terra esposa a luz. / Onde vive em campo aberto / a tribo dos homens nus... / São os guerreiros ousados / que com os tigres mosqueados / combatem na solidão. / Ontem simples, fortes, bravos... / Hoje míseros escravos / sem luz, sem ar, sem razão.../ Auriverde pendão de minha terra / que a brisa do Brasil beija e balança / estandarte que a luz do sol encerra / e as promessas divinas da esperança... / Tu que da liberdade após a guerra/ foste hasteado dos heróis na lança / antes te houvessem roto na batalha / que servires a um povo de mortalha! / (...) / (“O navio negreiro” – Castro Alves).
Não sabes, criança? Estou louco de amores.../ Prendi meus afetos, formosa Pepita./ Mas, onde? No templo, no espaço, nas névoas?/ Não rias, prendi-me num laço de fita./ Na selva sombria de tuas madeixas / nos negros cabelos da moça bonita / fingindo a serpente qu´enlaça a folhagem / formoso enroscava-me o laço de fita./ Meu ser, que voava nas luzes da festa / qual pássaro bravo, que os ares agita / eu vi de repente cativo, submisso / rolar prisioneiro num laço de fita./ (...) / (“O laço de fita” – Castro Alves).

É noite! As sombras correm nebulosas./ Vão três pálidas virgens silenciosas / através da procela irrequieta./ Vão três pálidas virgens...vão sombrias / rindo colar num beijo as bocas frias.../ na fronte cismadora do Poeta./ “Saúde, irmão! Eu sou a Indiferença. / Sou eu quem te sepulta a idéia imensa / que no teu nome a escuridão projeta.../ Fui eu que te vesti do meu sudário.../ Que vais fazer tão triste e solitário?...”/ “Eu lutarei”, responde-lhe o Poeta./ “Saúde, meu irmão! Eu sou a Fome./ Sou eu quem o teu negro pão consome.../ o teu mísero pão, mísero atleta!/ Hoje, amanhã, depois...depois (qu´importa?) / virei sempre sentar-me à tua porta...”/ “Eu sofrerei”, responde-lhe o Poeta./ “Saúde, meu irmão! Eu sou a Morte./ Suspende em meio o hino augusto e forte./ Marquei-te a fronte, mísero profeta!/ Volve ao nada! Não sentes neste enleio / teu cântico gelar-se no meu seio?” / “Eu cantarei no céu”, diz-lhe o Poeta! (“As três irmãs do poeta” – Castro Alves).

Oh! Eu quero viver, beber perfumes / na flor silvestre, que embalsama os ares;/ ver minh´alma adejar pelo infinito / qual branca vela n´amplidão dos mares./ No seio da mulher há tanto aroma.../ nos seus beijos de fogo há tanta vida.../ Árabe errante, vou dormir à tarde / à sombra fresca da palmeira erguida./ Mas uma voz responde-me sombria:/ terás o sono sob a lájea fria./ Morrer...quando este mundo é um paraíso / e a alma um cisne de douradas plumas:/ não, o seio da amante é um lago virgem.../ quero boiar à tona das espumas./ Vem! Formosa mulher – camélia pálida / que banharam de prantos as alvoradas./ Minh´alma é a borboleta, que espaneja / o pó das asas lívidas, douradas.../ e a mesma voz repete-me terrível / com gargalhar sarcástico: - Impossível! / (...) / (“Mocidade e morte” – Castro Alves).

Ser palmeira! Existir num píncaro azulado / vendo as nuvens mais perto e as estrelas em bando / dar ao sopro do mar o seio perfumado / ora os leques abrindo, ora os leques fechando / Só do meu cimo, só de meu trono, os rumores / do dia ouvir, nascendo o primeiro arrebol / e no azul dialogar com o espírito das flores / que invisível ascende e vai falar ao sol / Sentir romper do vale e a meus pés, rumorosa / dilatar-se e cantar a alma sonora e quente / das árvores, que em flor abre a manhã cheirosa / dos rios, onde luz todo o esplendor do Oriente / (...) / Que bom dizer então bem alto ao firmamento / o que outrora jamais – homem – dizer não pude / da menor sensação ao máximo tormento / quanto passa através minha existência rude! / (...) / E isto que aqui não digo então dizer: - que te amo / mãe natureza! Mas de modo tal que o entendas / como entendes a voz do pássaro no ramo / e o eco que têm no oceano as borrascas tremendas / (...) / (“Aspiração” – Alberto de Oliveira).

Vai-se a primeira pomba despertada... / vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas / de pombas vão-se dos pombais, apenas / raia sangüínea e fresca a madrugada... / E à tarde, quando a rígida nortada / sopra, aos pombais de novo elas, serenas / ruflando as asas, sacudindo as penas / voltam todas em bando e em revoada... / Também dos corações onde abotoam / os sonhos, um por um, céleres voam / como voam as pombas dos pombais / no azul da adolescência as asas soltam / fogem ... mas aos pombais as pombas voltam / e eles aos corações não voltam mais... / (“As pombas” – Raymundo Correia).
Se a cólera que espuma, a dor que mora / n´alma, e destrói cada ilusão que nasce / tudo o que punge, tudo o que devora / o coração, no rosto se estampasse / se pudesse, o espírito que chora / ver através da máscara da face / quanta gente, talvez, que inveja agora / nos causa, então piedade nos causasse! / Quanta gente que ri, talvez, consigo / guarda um atroz, recôndito inimigo / como invisível chaga cancerosa! / Quanta gente que ri, talvez existe / cuja ventura única consiste / em parecer aos outros venturosa! (“Mal secreto” – idem).

Alta, a frescura da magnólia fresca / da cor nupcial da flor da laranjeira / doces tons d´ouro de mulher tudesca / na veludosa e flava cabeleira. / (...)/ Radiava nela a incomparável messe / da saúde brotando vigorosa / como o sol que entre névoas resplandece / por entre a fina pele cor de rosa. / Era assim luminosa e delicada / tão nobre sempre de beleza e graça / que recordava pompas de alvorada / sonoridades de cristais de taça. / Mas, pouco a pouco, a ideal delicadeza / daquele corpo virginal e fino / sacrário da mais límpida beleza / perdeu a graça e o brilho diamantino. / Tísica e branca, esbelta, frígida e alta / e fraca e magra e transparente e esguia / tem agora a feição de ave pernalta / de um pássaro alto de aparência fria. / Mãos liriais e diáfanas, de neve / rosto onde um sonho aéreo e polar flutua / ela apresenta a fluidez, a leve / Ondulação da vaporosa lua. / (...) / (“Tuberculosa” – Cruz e Souza).
Ah! Plangentes violões dormentes, mornos / soluços ao luar, choros ao vento... / tristes perfis, os mais vagos contornos / bocas murmurejantes de lamento. / Noites de além, remotas, que eu recordo/ noites da solidão, noites remotas / que nos azuis da fantasia bordo / vou constelando de visões ignotas. / Sutis palpitações à luz da lua / anseios dos momentos mais saudosos / quando lá choram, na deserta rua / as cordas vivas dos violões chorosos. / (...) / Harmonias que pungem, que laceram / dedos ágeis e nervosos que percorrem / cordas e um mundo de dolência geram / gemidos, prantos que no espaço morrem... / (...) / Vozes veladas, veludosas vozes / volúpias dos violões, vozes veladas / vagam nos velhos vórtices velozes / dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. / Tudo nas cordas dos violões ecoa / e vibra e se contorce no ar, convulso... / Tudo na noite, tudo clama e voa / sob a febril agitação de um pulso. / Que esses violões nevoentos e tristonhos / são ilhas de degredo atroz, funéreo / para onde vão, fatigadas do sonho / almas que se abismaram no mistério./ (...) / Tipos intonsos, esgrouviados, tortos / das luas tardas sob o beijo níveo / para os enterros dos seus sonhos mortos / nas queixas dos violões buscando alívio. / (...) / Veteranos de todas as campanhas / enrugados por fundas cicatrizes / procuram nos violões horas estranhas / vagos aromas, cândidos, felizes. / Ébrios antigos, vagabundos velhos / torvos despojos da miséria humana / têm nos violões secretos evangelhos / toda a bíblia fatal da dor insana. / (...) (“Violões que choram” – Cruz e Souza).

terça-feira, 2 de março de 2010

VIDA3

A história do ser humano tem sido a da ação predatória desde os primórdios da sua vida neste planeta. No século XX, a reação encorpa-se. No século XXI, a política de preservação tende a prevalecer. A defesa do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável ganham terreno. A consciência ecológica se expande em nível planetário. Chegou-se a uma concepção holística da vida. Foram percebidos nexos biológicos que unem em rede todas as formas de vida. O conhecimento da interdependência dos seres vivos e das suas relações com o ar, a água e o solo, ultrapassou os muros dos laboratórios, das universidades, das escolas de mistérios e ganhou a praça pública graças à divulgação dos estudos e pesquisas realizados.

A atitude do ser humano civilizado está se encaminhando para uma relação harmônica e racional com a natureza. Instituições civis se organizam em defesa da qualidade de vida no planeta. Esforços internacionais têm sido desenvolvidos para atingir esse objetivo; realizam-se conferências e celebram-se acordos. A resistência de algumas nações, fundada em razões econômicas, retarda a execução desses acordos, como aconteceu com o de Kyoto. Políticas de cunho pacifista têm sido engendradas para suprimir armas nucleares e bacteriológicas e proscrever a sua produção e circulação. Acordos contrários à guerra química e à proliferação das citadas armas atestam o avanço. Organizações civis combatem a caça e a pesca predatórias. Organizações governamentais cogitam medidas preventivas contra colisões de corpos celestes na superfície da Terra cujos efeitos poderiam ser fatais aos seres vivos.

A expansão da consciência humana em nível planetário já faz sentir um efetivo espírito de fraternidade entre os povos. Desde a geração dos anos 60, os jovens parecem ostentar amor à natureza, à vida saudável, à cultura do corpo, ao esporte, à música, à liberdade, ao cosmopolitismo, como se esse amor estivesse gravado no código genético. O misticismo oriental invadiu o Ocidente como refluxo do racionalismo ocidental que invadira o Oriente no século XIX. A invasão mística mais se fortaleceu com a adesão dos Beatles, ícones daquela juventude que iniciou o movimento hippie. Verificou-se a necessidade de duradoura ação solidária a fim de levar a todas as nações os bens da natureza e os bens da civilização. Anuncia-se a almejada concórdia universal.

Do ângulo lógico e psicológico, a vida pode ser vista como fenômeno intelectual, volitivo e emotivo; manifesta-se em moções e emoções geradoras de idéias, desejos e sentimentos; possui faculdades racionais, memória e consciência. A vida racional pode elaborar conceitos radicais de espiritualidade que conduzem ao desprezo do corpo e elaborar conceitos radicais de materialidade que conduzem ao desprezo da alma. Na filosofia, na religião e no misticismo há, nessa matéria, posições extremadas e posições intermediárias ou ecléticas, desde as civilizações antigas até a contemporânea. A reflexão filosófica assenta-se principalmente nos processos racionais, enquanto a religião e o misticismo assentam-se principalmente nos processos irracionais, todos alicerçados na mesma base: a natureza física, emocional e intelectual do ser humano.

A vida é movimento contínuo. Na linha evolutiva, à vida sensitiva seguiu-se a vida intelectiva. A fase posterior da evolução não elimina a anterior. Convivem no tempo e no espaço os vegetais, os animais irracionais e os racionais. Os animais racionais têm vida sensitiva e vida intelectiva, ambas importantes em suas respectivas funções. A vida intelectiva não é a única a produzir conhecimento. A vida sensitiva guarda lições de grande valia à existência do ser humano; através da emoção e da intuição, rompe os grilhões da lógica e adentra o mundo espiritual. A alma personalizada pode sintonizar-se com o mundo espiritual, porém, se nele permanecer, desligar-se-á do corpo e só regressará ao mundo físico mediante reencarnação, conforme crença oriental encampada pelo espiritismo de Alan Kardec.

Há vida interior quando o sujeito relaciona-se consigo mesmo, cogita, trava monólogos, reza, medita, emociona-se, extasia-se. Há vida exterior, quando o sujeito trava diálogos, se relaciona com familiares e outras pessoas na sua comunidade ou fora dela, no seu país ou fora dele, com os mais diversos propósitos (trabalho, lazer, arte, estudo, pesquisa, oração comunal, tratamento de saúde, protesto, eleição, guerra).

No que concerne à vida humana individual, as necessidades do corpo reclamam satisfação. O mundo secular e o mundo espiritual são aspectos distintos de uma única realidade e ambos merecem atenção. Para se harmonizar com o mundo espiritual, desnecessário morrer para o mundo secular, isolar-se em mosteiro ou em cavernas, flagelar o corpo ou definhar em penitências. Basta um lugar tranqüilo no lar, no templo, ao ar livre, na cidade, no campo, na estação espacial, onde seja possível meditar, orar fervorosamente, entrar em comunhão com as hostes cósmicas. A plenitude da vida humana abrange os dois mundos. Para alcançá-la é necessário determinação da vontade; desejo sincero e forte; trabalho manual, técnico ou intelectual regular, lícito, construtivo; dieta saudável, exercícios físicos moderados, disciplina, vigilância e oração.

Chama-se vida, também, ao modo de ser e de estar no mundo. Daí falar-se em vida familial, vida social, vida cultural, vida de artista, vida religiosa, vida monástica, vida mística, vida de asceta e assim por diante. A um ambiente movimentado, diz-se que tem vida. A um ambiente incolor, estagnado, deserto, diz-se que está sem vida. Na terra ou na água onde a vida vegetal ou animal não vinga, diz-se que é um lugar morto ou estéril. Em tal sentido, morte significa ausência de vida. No que tange ao ser humano, considerando a dupla dimensão do mundo, a morte significa passagem de uma dimensão (atual/material) a outra (potencial/espiritual); a alma personalizada passa a viver em outra dimensão; o corpo se desintegra e a energia que o mantinha íntegro volta ao estado imaterial (tu és pó e ao pó retornarás); a respectiva personalidade anímica decalca-se na alma universal (a casa do meu pai tem muitas moradas).

Após uma taça de poesia, o próximo tema será LUZ.
Que a paz e o amor estejam com todos. Assim seja!