EUROPA (1900 a 2014). Continuação.
Xenofobia e fanatismo religioso
foram os ingredientes do trágico episódio em Paris que dividiu a opinião
pública mundial por envolver jornalistas, liberdade de imprensa e muçulmanos. Dois
irmãos descendentes de imigrantes árabes (Cherif e Said Kouachi) atacaram a
sede do hebdomadário satírico intitulado “Charlie Hebdo” (07.01.2015). Morreram
12 pessoas. Prontos a desempenhar o papel de mártires e servir de exemplo
heróico à irmandade a que pertenciam, os homicidas empreenderam um confronto
suicida com a polícia francesa e foram mortos. A organização paramilitar “Al
Qaeda” assumiu a responsabilidade pelo ataque (14.01.2015).
Ultrajar crença religiosa ou exceder-se
no exercício do direito de defesa são condutas consideradas criminosas pela
ordem jurídica de alguns países, inclusive o Brasil. No citado hebdomadário, os
jornalistas publicaram imagens degradantes ridicularizando o profeta Maomé e o
Islã. Cutucaram a onça com vara curta,
diria um caipira brasileiro. Os árabes são semitas, tal como os antigos cananeus,
babilônios, assírios e hebreus. No século VI da era cristã, esse povo adotou a
religião islâmica fundada por Maomé, dela é cioso e por ela tem o dever de
lutar, conforme preceitua o livro sagrado (Corão). Essa luta defensiva leva o
nome de Jihad. [O capítulo “Filosofia
XI”, da presente série, tratou da Arábia]. A xenofobia de franceses judeus e
cristãos de um lado e o fanatismo de franceses muçulmanos de outro, geraram o
ato homicida praticado – não por estrangeiros – e sim por dois cidadãos
franceses fiéis tanto à bandeira tricolor como à religião islâmica.
François Hollande, presidente da
França, organizou a “Marcha para a Liberdade” e convidou líderes de outros países.
Os que atenderam ao convite caminharam pelas ruas de Paris à frente de uma
multidão de pessoas que portavam a mensagem solidária “Je suis Charlie”
(11/01/2015). Em diversas partes do mundo houve manifestação contrária à debochada
linha do hebdomadário: “Je ne suis pas Charlie” ou “Je suis Mohamed”. A minoria
proprietária dos meios de comunicação social sentiu-se ameaçada, mormente no
que tange ao seu patrimônio e ao seu negócio. Na mencionada marcha, governantes
e governados serviram de massa de manobra a essa poderosa minoria. Nos países
democráticos, aos políticos interessa prestar apoio à imprensa, pois, por meio
dela, conquistam ou perdem votos. Os donos de jornais impressos, de revistas, de
emissoras de rádio e televisão, servem-se desses veículos com o propósito claro
ou camuflado de: (1) aumentar sua fortuna; (2) propagar suas idéias e crenças e
atacar as alheias; (3) construir e destruir reputações; (4) manipular
informações e escamotear a verdade; (5) orientar as decisões e os investimentos
do governo na direção dos seus interesses privados.
Tragédias maiores, com milhares
de mortos (adultos, jovens e crianças) não mereceram a mesma atenção dada ao
episódio do hebdomadário. Dessa discriminação feita pela imprensa e pelas
autoridades ocidentais constata-se que o patrimônio é mais importante do que a
vida. Há gente sobrando no planeta e o que é abundante tem pouco valor de
troca. A destruição de edifícios, casas, estradas, pontes, viadutos, veículos,
máquinas, equipamentos, causa maior impacto do que a perda de vidas humanas,
porque a recuperação material custa dinheiro. Há notícia de projeto de
fabricação de bomba que ao explodir só mata pessoas sem destruir o
patrimônio.
Liberdade significa ausência de limites, freios e grilhões. A
ausência total corresponde à liberdade
total cujo único titular é deus, porque
nada lhe é superior em poder e vontade. A ausência parcial de limites corresponde
à liberdade parcial cujo titular é o
animal, porque está submetido às determinações da natureza. O animal irracional
está limitado pelas leis da natureza, como acontece com o vôo do pássaro. O
animal racional está limitado pelas leis da natureza e pelas leis da sociedade.
As determinações sociais são criadas pelo homem e para o homem. Consistem de convenções,
de regras técnicas e científicas, de normas éticas, jurídicas e religiosas, que
limitam a conduta humana e condicionam a vontade e o pensamento. Transgredir faz
parte do comportamento animal, embora como exceção. O transgressor é ator do
drama existencial. Utiliza a liberdade contra a ordem estabelecida. A gaivota,
do conto mavioso de Richard Bach, transgrediu a ordem natural ao voar além do limite
a que estava determinada pela natureza (“Fernão Capelo Gaivota”, 1970). A fêmea
de uma raça excepciona a ordem natural ao cuidar dos filhotes de outra raça. A liberdade humana implica poder de
escolha (autonomia da vontade) e ausência de coação (espontaneidade). Ao arrostar
leis naturais ou sociais, o transgressor pode ser punido ou inaugurar nova
ordem se a sua vontade prevalecer. A coerção se opõe à liberdade. Nas
modalidades de ação, como a manifestação da vontade, do sentimento e do
pensamento, a liberdade humana
suporta limites traçados pelo legislador. A violação desses limites provoca a
reação da vítima e a intervenção coercitiva do Estado.
A extensão da liberdade humana tem
sido exagerada com o propósito de acobertar privilégios. Os donos e
profissionais da imprensa pretendem usufruir liberdade total incompatível com a democracia e com a natureza.
Onde vigora o regime democrático, governante e governado desfrutam liberdade parcial, todos submetidos às
normas jurídicas, sob o pálio da igualdade. A imprensa é livre quando independe
de censura prévia e de licença da autoridade para se expressar. Isto não
significa ausência de regramento. A sociedade liberal tem valores morais e
religiosos que não se afinam com a falta de decoro, com a pornografia, o
deboche, a injúria, a difamação, a calúnia. Leis fundadas naqueles valores
estabelecem parâmetros tanto para a atividade jornalística como para os demais
serviços nas esferas pública e privada.
Em nação alicerçada na dignidade
humana e na liberdade, o cidadão tem o direito de abraçar qualquer religião. Este
direito supõe o correlato dever de
tolerância sem o qual a liberdade de religião é ineficaz. Ainda que seja
ateu, o cidadão tem o dever de tolerar
a crença do outro. Os europeus adeptos da religião islâmica sofrem
discriminação. Nas “religiões do livro” (judaica, cristã e islâmica) há
seguidores moderados, fanáticos e extremistas. Nem todos os seguidores
interpretam o “livro sagrado” (Bíblia ou Corão) no mesmo sentido. Os sermões na
sinagoga, na igreja e na mesquita nem sempre são suficientes para controlar a
ação dos fanáticos e extremistas que apelam para a violência. Nas três
religiões há facções fundamentalistas das quais se despregam grupos extremistas
do tipo “Opus Dei” e “Estado Islâmico”, embalados por valores políticos, econômicos
e religiosos, cujos membros não se desligam da crença religiosa, mas, ao
contrário, têm-na como garantia de uma futura e venturosa vida no mundo
espiritual.
No interior de um avião, diante de jornalistas
convidados, o papa Francisco manifestou-se sobre o episódio do hebdomadário
parisiense, os limites da liberdade de imprensa, o respeito devido à fé
religiosa e a reação a ofensas. Ele disse que daria um soco em alguém que lhe
ofendesse a mãe (15.01.2015). Explicar o lançamento de bomba atômica sobre um
país não significa concordar com o lançamento. O papa não estava a justificar a
violência. Apenas explicava que reagir a uma ofensa é natural e humano. Ao ser
esbofeteado, ninguém oferece a outra face, apesar da anedota evangélica. Há
brocardos nessa mesma linha, tais como: “olho por olho”, “quem semeia vento
colhe tempestade”, “quem diz o que quer ouve o que não quer”, “quem com ferro
fere com ferro será ferido”. No estudo da natureza, cientistas observaram que a toda ação corresponde uma reação. No
meio social, o princípio do contraditório
efetiva-se por tipos de resposta como a contestação
e a retorsão. Ofensas físicas e
morais geram resposta imediata ou mediata. Por considerar o comércio no templo ofensa a deus, Jesus agrediu os
mercadores a chicotadas. Nem todos têm a frieza de suportar a ofensa,
raciocinar, escolher a forma mais adequada, o tempo e o lugar mais favoráveis
para reagir.
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