sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

FILOSOFIA XV - 16



EUROPA (1900 a 2014). Continuação.

Xenofobia e fanatismo religioso foram os ingredientes do trágico episódio em Paris que dividiu a opinião pública mundial por envolver jornalistas, liberdade de imprensa e muçulmanos. Dois irmãos descendentes de imigrantes árabes (Cherif e Said Kouachi) atacaram a sede do hebdomadário satírico intitulado “Charlie Hebdo” (07.01.2015). Morreram 12 pessoas. Prontos a desempenhar o papel de mártires e servir de exemplo heróico à irmandade a que pertenciam, os homicidas empreenderam um confronto suicida com a polícia francesa e foram mortos. A organização paramilitar “Al Qaeda” assumiu a responsabilidade pelo ataque (14.01.2015).

Ultrajar crença religiosa ou exceder-se no exercício do direito de defesa são condutas consideradas criminosas pela ordem jurídica de alguns países, inclusive o Brasil. No citado hebdomadário, os jornalistas publicaram imagens degradantes ridicularizando o profeta Maomé e o Islã. Cutucaram a onça com vara curta, diria um caipira brasileiro. Os árabes são semitas, tal como os antigos cananeus, babilônios, assírios e hebreus. No século VI da era cristã, esse povo adotou a religião islâmica fundada por Maomé, dela é cioso e por ela tem o dever de lutar, conforme preceitua o livro sagrado (Corão). Essa luta defensiva leva o nome de Jihad. [O capítulo “Filosofia XI”, da presente série, tratou da Arábia]. A xenofobia de franceses judeus e cristãos de um lado e o fanatismo de franceses muçulmanos de outro, geraram o ato homicida praticado – não por estrangeiros – e sim por dois cidadãos franceses fiéis tanto à bandeira tricolor como à religião islâmica.

François Hollande, presidente da França, organizou a “Marcha para a Liberdade” e convidou líderes de outros países. Os que atenderam ao convite caminharam pelas ruas de Paris à frente de uma multidão de pessoas que portavam a mensagem solidária “Je suis Charlie” (11/01/2015). Em diversas partes do mundo houve manifestação contrária à debochada linha do hebdomadário: “Je ne suis pas Charlie” ou “Je suis Mohamed”. A minoria proprietária dos meios de comunicação social sentiu-se ameaçada, mormente no que tange ao seu patrimônio e ao seu negócio. Na mencionada marcha, governantes e governados serviram de massa de manobra a essa poderosa minoria. Nos países democráticos, aos políticos interessa prestar apoio à imprensa, pois, por meio dela, conquistam ou perdem votos. Os donos de jornais impressos, de revistas, de emissoras de rádio e televisão, servem-se desses veículos com o propósito claro ou camuflado de: (1) aumentar sua fortuna; (2) propagar suas idéias e crenças e atacar as alheias; (3) construir e destruir reputações; (4) manipular informações e escamotear a verdade; (5) orientar as decisões e os investimentos do governo na direção dos seus interesses privados.  

Tragédias maiores, com milhares de mortos (adultos, jovens e crianças) não mereceram a mesma atenção dada ao episódio do hebdomadário. Dessa discriminação feita pela imprensa e pelas autoridades ocidentais constata-se que o patrimônio é mais importante do que a vida. Há gente sobrando no planeta e o que é abundante tem pouco valor de troca. A destruição de edifícios, casas, estradas, pontes, viadutos, veículos, máquinas, equipamentos, causa maior impacto do que a perda de vidas humanas, porque a recuperação material custa dinheiro. Há notícia de projeto de fabricação de bomba que ao explodir só mata pessoas sem destruir o patrimônio. 

Liberdade significa ausência de limites, freios e grilhões. A ausência total corresponde à liberdade total cujo único titular é deus, porque nada lhe é superior em poder e vontade. A ausência parcial de limites corresponde à liberdade parcial cujo titular é o animal, porque está submetido às determinações da natureza. O animal irracional está limitado pelas leis da natureza, como acontece com o vôo do pássaro. O animal racional está limitado pelas leis da natureza e pelas leis da sociedade. As determinações sociais são criadas pelo homem e para o homem. Consistem de convenções, de regras técnicas e científicas, de normas éticas, jurídicas e religiosas, que limitam a conduta humana e condicionam a vontade e o pensamento. Transgredir faz parte do comportamento animal, embora como exceção. O transgressor é ator do drama existencial. Utiliza a liberdade contra a ordem estabelecida. A gaivota, do conto mavioso de Richard Bach, transgrediu a ordem natural ao voar além do limite a que estava determinada pela natureza (“Fernão Capelo Gaivota”, 1970). A fêmea de uma raça excepciona a ordem natural ao cuidar dos filhotes de outra raça. A liberdade humana implica poder de escolha (autonomia da vontade) e ausência de coação (espontaneidade). Ao arrostar leis naturais ou sociais, o transgressor pode ser punido ou inaugurar nova ordem se a sua vontade prevalecer. A coerção se opõe à liberdade. Nas modalidades de ação, como a manifestação da vontade, do sentimento e do pensamento, a liberdade humana suporta limites traçados pelo legislador. A violação desses limites provoca a reação da vítima e a intervenção coercitiva do Estado.

A extensão da liberdade humana tem sido exagerada com o propósito de acobertar privilégios. Os donos e profissionais da imprensa pretendem usufruir liberdade total incompatível com a democracia e com a natureza. Onde vigora o regime democrático, governante e governado desfrutam liberdade parcial, todos submetidos às normas jurídicas, sob o pálio da igualdade. A imprensa é livre quando independe de censura prévia e de licença da autoridade para se expressar. Isto não significa ausência de regramento. A sociedade liberal tem valores morais e religiosos que não se afinam com a falta de decoro, com a pornografia, o deboche, a injúria, a difamação, a calúnia. Leis fundadas naqueles valores estabelecem parâmetros tanto para a atividade jornalística como para os demais serviços nas esferas pública e privada.   

Em nação alicerçada na dignidade humana e na liberdade, o cidadão tem o direito de abraçar qualquer religião. Este direito supõe o correlato dever de tolerância sem o qual a liberdade de religião é ineficaz. Ainda que seja ateu, o cidadão tem o dever de tolerar a crença do outro. Os europeus adeptos da religião islâmica sofrem discriminação. Nas “religiões do livro” (judaica, cristã e islâmica) há seguidores moderados, fanáticos e extremistas. Nem todos os seguidores interpretam o “livro sagrado” (Bíblia ou Corão) no mesmo sentido. Os sermões na sinagoga, na igreja e na mesquita nem sempre são suficientes para controlar a ação dos fanáticos e extremistas que apelam para a violência. Nas três religiões há facções fundamentalistas das quais se despregam grupos extremistas do tipo “Opus Dei” e “Estado Islâmico”, embalados por valores políticos, econômicos e religiosos, cujos membros não se desligam da crença religiosa, mas, ao contrário, têm-na como garantia de uma futura e venturosa vida no mundo espiritual.

No interior de um avião, diante de jornalistas convidados, o papa Francisco manifestou-se sobre o episódio do hebdomadário parisiense, os limites da liberdade de imprensa, o respeito devido à fé religiosa e a reação a ofensas. Ele disse que daria um soco em alguém que lhe ofendesse a mãe (15.01.2015). Explicar o lançamento de bomba atômica sobre um país não significa concordar com o lançamento. O papa não estava a justificar a violência. Apenas explicava que reagir a uma ofensa é natural e humano. Ao ser esbofeteado, ninguém oferece a outra face, apesar da anedota evangélica. Há brocardos nessa mesma linha, tais como: “olho por olho”, “quem semeia vento colhe tempestade”, “quem diz o que quer ouve o que não quer”, “quem com ferro fere com ferro será ferido”. No estudo da natureza, cientistas observaram que a toda ação corresponde uma reação. No meio social, o princípio do contraditório efetiva-se por tipos de resposta como a contestação e a retorsão. Ofensas físicas e morais geram resposta imediata ou mediata. Por considerar o comércio no templo ofensa a deus, Jesus agrediu os mercadores a chicotadas. Nem todos têm a frieza de suportar a ofensa, raciocinar, escolher a forma mais adequada, o tempo e o lugar mais favoráveis para reagir.

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