terça-feira, 17 de dezembro de 2019

RACIOCÍNIO POLÍTICO

De proposições antecedentes a inteligência infere proposição consequente. Esta operação mental recebe o nome de raciocínio. A forma silogística é modelar. Nas relações cotidianas, contudo, as pessoas não usam tal modelo. Da proposição antecedente menor partem direto para a proposição consequente. Ao invés de dizerem:  todo ser vivo é mortal (premissa maior); o grilo é ser vivo (premissa menor); logo, o grilo é mortal (conclusão), elas dizem: o grilo é ser vivo, portanto é mortal. A história natural testemunha a vida e a morte de plantas e de animais racionais e irracionais. Essa experiência traz a certeza de que a mortalidade é inerente aos seres vivos.
O raciocínio pode ser: (i) abstrato, quando opera só com números, símbolos ou ideias desvinculadas da experiência, como na Matemática e na Metafísica (ii) concreto, quando opera com coisas do mundo natural ou com fatos do mundo cultural, como na Biologia e na Sociologia. Ao seguir de modo metódico determinadas regras na busca da verdade, o raciocínio qualifica-se como científico. Quando o raciocínio tem por alvo a justiça, o bem comum, o rigor lógico fica em segundo plano. Entram em cena a razoabilidade, a proporcionalidade, o senso ético e estético, os motivos de oportunidade e conveniência. Disto, resultam os aspectos político e jurídico da arte de raciocinar. Os reais motivos das decisões políticas e jurídicas, às vezes, ficam ocultos. 

Raciocínio político. 
Desse tipo de raciocínio resultam decisões políticas anteriores e posteriores ao estado. As decisões anteriores são tomadas pelo titular do poder constituinte (massa, elite, rei, ditador) fundadas em certos valores, princípios, costumes, tradições e crenças que conformam o estado e configuram a existência política do povo, do governo, do território e do patrimônio comum. As decisões posteriores são tomadas pelos titulares dos poderes constituídos (parlamentares, chefes de governo, magistrados) em consonância com a lei fundamental do estado (Constituição, Carta). Na vigência da ordem jurídica, o raciocínio político não difere do raciocínio jurídico, salvo no que tange ao conteúdo das proposições. As vias lógicas do político e do jurista são as mesmas: indução, dedução, analogia, razoabilidade, proporcionalidade. A diferença consiste na hierarquização dos critérios. Na decisão política prevalecem o necessário, o útil, o interessante e o possível. Na decisão jurídica prevalecem o justo, o verdadeiro, o razoável e o proporcional. O caráter pragmático da ação política faz a diferença, mormente diante das crises econômicas e dos movimentos sociais no mundo contemporâneo. As carências do povo e do governo exigem atendimento. O raciocínio político decide sobre as prioridades e os meios de satisfazê-las. 
Nos países democráticos, as decisões e a conduta dos governantes, lato sensu (legisladores, administradores, juízes) estão sujeitas ao princípio da responsabilidade. Os parlamentares pesquisam a opinião pública e evitam contrariar a vontade do povo. A elaboração das leis obedece a regras formais e tem como objetivo realizar o bem comum, a segurança e o desenvolvimento econômico e social. Os parlamentares (i) seguem as diretrizes dos seus partidos (ii) criam tributos e outras fontes de receita e disciplinam a respectiva aplicação (iii) tomam decisões orientados por interesses das pessoas e dos grupos que os apoiaram na campanha eleitoral (iv) atendem às suplicas dos seus eleitores, correligionários, parentes, amigos. Há parlamentares que defendem os interesses dos banqueiros, empresários, militares, religiosos; há outros que defendem os interesses dos trabalhadores, da Universidade, da massa popular. Nas deliberações (i) divergem quanto ao interesse nacional (ii) investigam a matéria que interessa ao cidadão, à sociedade e ao estado (iii) buscam informações e esclarecimentos sobre as necessidades da massa e das elites (iv) formulam normas adequadas a cada classe. 
Os governantes stricto sensu (presidentes, governadores, prefeitos) prestam obediência às leis e colocam-nas em prática. Ainda que haja margem legal à discricionariedade, o abuso tipifica crime. Os governantes estabelecem as metas de curto, médio e longo prazo para a prestação de serviços e para a realização de obras e de negócios. Informados das disponibilidades orçamentárias, traçam planos de governo e estratégias a fim de executá-los. A ação governamental desenvolve-se dentro das balizas postas pela Constituição. Ampara-se nos princípios e objetivos fundamentais do estado, tais como: justiça, dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, solidariedade, pluralismo político, segurança, independência, soberania. A produção legislativa e a atividade executiva tomam esses princípios e objetivos como premissas maiores do raciocínio político. 
A experiência de homens e mulheres revelou que o governo sintonizado com a felicidade do povo torna remota a possibilidade de revolução e facilita a estabilidade institucional (premissa maior). O governo X adota política favorável à felicidade do povo (premissa menor). Logo, o governo X facilita a estabilidade institucional e torna remota a possibilidade de revolução (conclusão). Este raciocínio político está correto na forma, porém, duvidoso no conteúdo. O golpe de estado pode não ser possibilidade remota. A cultura política dos diferentes povos não é homogênea.  
A Constituição contém os princípios e os objetivos fundamentais do estado democrático de direito. Todos devem obediência a esses princípios e objetivos. O governante cuja política contraria esses princípios e objetivos viola o tipo de estado instituído pelo legislador constituinte e deve ser destituído do cargo (premissas maiores). O governante atualmente em exercício contraria princípios e objetivos fundamentais do estado democrático de direito (premissa menor).  Logo, o governante atual deve ser destituído do cargo (conclusão). Este raciocínio político está correto quanto à forma, porém, quanto ao conteúdo, a premissa menor depende de prova.  

Raciocínio jurídico. 
O estudo desse tipo de raciocínio tem se baseado na forma silogística das sentenças judiciais: (i) premissa maior = norma jurídica em vigor (ii) premissa menor = juízo de afirmação ou negação da prática ilícita (iii) conclusão = juízo de procedência ou improcedência da pretensão inicialmente deduzida pelo postulante. Os juízes operam simultaneamente nos planos ontológico (esfera do que é = dos fatos) e deontológico (esfera do que deve ser = das normas). Nas causas que presidem, examinam os argumentos das partes, a autenticidade e a validade das provas. Seguem as vias lógicas da indução, dedução e analogia e formam a sua convicção. Depois, procedem ao enquadramento do caso nos princípios e normas constitucionais e legais. Destarte, após o momento da verdade, vem o da justiça. Na passagem do plano mental (convicção) para o plano operacional (enquadramento jurídico, realização da justiça) entram em cena o razoável, o proporcional, o sensato, a reflexão do juiz sobre as consequências da sua decisão. 
Certa vez, por volta de 1980, no bar dos magistrados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, um colega mais antigo sentou-se ao redor da mesa na qual eu me encontrava. Cenho franzido, fisionomia preocupada. Motivo: caso criminal que ele iria sentenciar. O ministério público produzira prova que a defesa não conseguira afastar. O colega tinha de condenar o réu. Isto o angustiava. Apesar de estar convicto da culpabilidade do réu, o colega entendia que a condenação não traria benefício algum à sociedade e sim prejuízo ao futuro promissor de um jovem. Depois do desabafo dele, eu sugeri a solução. Disse-lhe: “Esse crime só é punível se doloso; então, para aliviar a tua consciência, diga na sentença o que você me disse aqui; diga que apesar da prova produzida pela acusação, você não está convencido de que o réu tenha agido dolosamente”. Os olhos do colega brilharam. Sua fisionomia mudou, o semblante desanuviou, como se lhe fosse tirado das costas um peso enorme. Levantou-se, deu-me forte aperto de mão e saiu. Parecia emocionado. 
Se aquele caso estivesse sob a minha jurisdição, eu teria condenado o jovem réu (hoje, sexagenário). Dura lex sed lex. Futuro promissor não exclui o crime. Futurismo e judicatura não combinam. Cada juiz possui temperamento e visão de mundo próprios. Cada caso tem características próprias. A decisão absolutória proferida por meu colega pode ter sido mais justa do que teria sido a minha se fosse eu o juiz do caso. A minha decisão condenatória estaria correta do ponto de vista lógico, porém, seria injusta do ponto de vista axiológico. Quem sabe?    

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