sexta-feira, 15 de novembro de 2019

CLÁUSULA PÉTREA

No sentido comum, cláusula significa dispositivo integrante de acordos, convenções, contratos ou tratados, com objetivos explícitos e implícitos. No Direito Constitucional, a expressão cláusula pétrea tem a conotação de rigidez da pedra. Opõe-se à liquidez da água e à inconstância da biruta. Significa que os preceitos nela contidos são rígidos, não podem ser alterados por via de emenda à Constituição e nem por via de lei ordinária. Sob regime democrático, cláusula pétrea só pode ser retirada do texto constitucional, ou ter o seu conteúdo modificado, através de assembleia constituinte: (i) especial, exclusiva para tal fim, ou (ii) geral, para votar nova Constituição. Tal assembleia exerce o poder soberano da nação. Todo poder emana do povo e é exercido no seu mais alto grau (i) diretamente por iniciativa popular, plebiscito, referendo, ou (ii) indiretamente por legisladores constituintes eleitos pelo povo. Todos os poderes constituídos (legislativo, executivo, judiciário), assim como todos os cidadãos, devem acatamento às decisões da assembleia constituinte. 
O conteúdo da cláusula pétrea varia segundo o momento histórico e a vontade do legislador constituinte. Esse conteúdo pode ser: formas de estado e de governo (unitário, composto, monárquico, republicano, autocrático, democrático), direitos e garantias individuais, coletivos, sociais, políticos, econômicos. Esse tipo de cláusula tem por fim assegurar a supremacia, a permanência e a eficácia de princípios e normas de alta relevância para a sociedade e para o estado. O legislador constituinte estabelece a cláusula pétrea para manietar o legislador ordinário. A cláusula é como pedra no sapato dos descontentes, dos aventureiros, dos iconoclastas. A petrificação contribui para a estabilidade institucional necessária ao desenvolvimento econômico e social do país. Os princípios e normas petrificados pelo legislador constituinte pairam acima da vontade volúvel e interesseira de indivíduos e grupos providos de mau caráter, desprovidos de espírito público, nocivos à tranquilidade da nação. Quando presidia o Brasil, Fernando Henrique fazia cara de nojo quando alguém citava cláusula pétrea para se opor aos seus desígnios. Políticos desse naipe se dizem honestos e democratas, mas, na verdade, suas veias são ditatoriais, seus objetivos são escusos.
[Jesus, o Cristo, colocou em Simão, o pescador, apelido de “Pedro” (= pedra) como símbolo da perenidade dos seus ensinamentos. “Tu és Simão, filho de João, serás chamado Cefas (que quer dizer Pedra)”. Bíblia. Novo Testamento. João 1: 42].
Na vigente Constituição, a cláusula pétrea está assim enunciada: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais” (Art. 60, §4º).
Para contornar essa cláusula, os interessados valem-se de falácias (como a da flexibilização) e dos argumentos sofísticos. Apostam na ignorância, na irracionalidade, na conduta passional do povo. Entre os argumentos, consta essa pérola: “Se a propriedade de escravos fosse cláusula pétrea, até hoje haveria escravidão no Brasil”. Para essas pessoas, a cláusula pétrea não existe; norma constitucional pode ser alterada sempre que o “povo” (isto é, o grupo de espertalhões) entender necessário.
A escravidão era instituto de direito colonial que vigorou na América Portuguesa por 300 anos e no Estado Brasileiro por 66 anos. Fora o Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarve, a primeira Constituição do Estado Brasileiro foi a imperial de 1824. Outorgada por um príncipe português, admitia o direito de propriedade sobre pessoas (escravatura). Ao revogar esse direito, Isabel, a princesa regente, descontentou os proprietários (1888). O golpe militar de 1889, que hoje completa 130 anos, insuflado pelos civis e religiosos descontentes, derrubou a monarquia, ab-rogou a constituição imperial e implantou a república. A primeira constituição republicana foi promulgada em 1891 por assembleia constituinte convocada pelo governo provisório.
Nova Constituição recepciona leis anteriores. Exemplos. As ordenações portuguesas foram recepcionadas pela Constituição de 1891; o Código Civil de 1916 foi recepcionado pela Constituição de 1934 e pelas constituições subsequentes; o Código Penal de 1940 foi recepcionado pela Constituição de 1946 e pelas constituições subsequentes. No entanto, a Lei de Imprensa (1967) e a de Segurança Nacional (1983) não foram recepcionadas pela Constituição de 1988.
Se a escravatura fosse posta em cláusula pétrea pelo legislador constituinte, ela teria de ser respeitada por todos os cidadãos até cair em desuso, ou até ser revogada pelo sujeito do poder constituinte (povo, nas democracias; ditador, nas autocracias). A forma republicana federativa foi colocada em cláusula pétrea na Constituição de 1891, recepcionada na de 1934, recuperada na Constituição de 1946, mantida na Carta de 1967. A Constituição de 1988 foi mais abrangente, quiçá por ter sido precedida de longo período ditatorial (1964-1985). Além da forma federativa de estado, o legislador constituinte incluiu, na cláusula pétrea, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais, o voto direto, secreto, universal e periódico (CR  60, §4º). Essa matéria não pode ser objeto de emenda à Constituição e de lei ordinária, salvo ruptura da ordem vigente mediante golpe de estado, ou revolução. O tipo de estado republicano não constou dessa cláusula porque o legislador constituinte deferiu ao povo a escolha direta entre república e monarquia (plebiscito). Consultado, o povo brasileiro escolheu a república e o sistema presidencialista (corpo eleitoral, 1993).   
O alegado combate à criminalidade é justificativa enganosa para o descumprimento da cláusula pétrea da Constituição. Esse combate é travado todos os dias pela polícia, pelo ministério público e pela magistratura. Os presídios estão lotados. O real motivo por trás da cortina é a conquista e manutenção do poder. Mediante golpe, a direita assumiu o governo do estado. Nas eleições presidenciais de 2018, a direita unida (moderada + extremada) venceu a esquerda desunida (moderada – extremada). Se Luiz Inácio Lula da Silva recuperar os seus direitos políticos e entrar na disputa eleitoral, esse quadro pode mudar. A esquerda reassumirá a direção do estado caso esteja unida. Partido isolado, por grande que seja, perderá para a direita unida nas eleições de 2022.
Por precaução, a direita insiste na prisão e na morte do líder político da esquerda. O deputado federal, Coronel Tadeu, do PSL, partido dos milicianos, ameaçou: “Lula tem que morrer”, e dirigiu olhar significativo em determinada direção. Senha para o assassinato de Luiz Inácio, como aconteceu com Marielle Franco? Se houver investigação, bom começo é localizar o ponto da sala para o qual o deputado dirigiu aquele significativo olhar. Descobrir o que lá havia, ou quem lá estava, talvez ajude a prevenir a tragédia. Na rede de computadores, o deputado insiste: “Não vejo a hora de Lula morrer”. A Comissão de Ética da Câmara e o Ministério Público talvez já tenham tomado providências para impedir que essa grave ameaça se concretize.

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