quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

GOVERNO versus CIDADÃO

Em tempo de guerra externa, governo e cidadão se unem em defesa do estado. [Povo + governo + território + patrimônio = estado]. Em tempo de paz, governo e cidadão travam batalhas domésticas. 
Quando o cidadão causa danos a terceiros, à sociedade, ao estado, ou extrapola o seu direito de defesa, o governo reage. No exercício do poder de polícia e para manter a ordem e o respeito à lei, o governo fiscaliza e controla as ações individuais e coletivas do cidadão, reprime manifestações, efetua prisões, apreende coisas, aplica multa, estabelece estratégias preventivas e repressivas. 
O cidadão reage aos atos do governo que caracterizam submissão ao governo estrangeiro, restringem indevidamente a cidadania, ofendem a dignidade da pessoa humana, prejudicam o setor trabalhista ou a livre iniciativa, violam direitos e garantias fundamentais, excedem o poder de tributar e de regulamentar, extrapolam limites da Ética e do Direito. Os descontentes com o governo ora são a maioria do povo, ora a minoria. Algumas vezes, não há trégua sequer nas comemorações cívicas e nos divertimentos coletivos públicos ou privados. 
No âmbito judicial, há litígio entre o governo (= estado = pessoa jurídica de direito público) e o cidadão (= pessoa natural = pessoa jurídica de direito privado = sociedade civil) motivado por questões de natureza penal, civil ou administrativa. No âmbito político, quando a ação governamental reveste caráter delituoso e/ou tirânico, o cidadão reage, individual ou coletivamente, de modo pacífico ou de mão armada. Há exemplos históricos antigos e recentes.  
A grande conquista da civilização ocidental no campo da política e do direito foi colocar a liberdade acima da autoridade, os direitos humanos acima dos poderes do estado, as garantias individuais e os mecanismos de controle funcionando como freios à tirania e à arbitrariedade. A revolução francesa de 1789 inverteu a milenar situação de inferioridade do povo. De súdito, o povo passou a ser titular do poder soberano. Contribuiu ao movimento revolucionário que provocou essa mudança extraordinária, a teoria do abade francês Emmanuel Sieyès, segundo a qual, o poder constituinte pertence ao povo, verdadeiro construtor e mantenedor da sociedade – não ao clero, nem à nobreza. [“Qu´est-ce que le Tiers État?”. Genebra. Droz. 1970, pp.180 + segs.]. 
A mencionada teoria faz parte do acervo cultural dos países europeus e americanos. A ação do governo passou a ser limitada pelos direitos humanos e monitorada pelos governados. A limitação e o controle foram disciplinados em documento com força normativa máxima, elaborado pelos representantes do povo reunidos em assembleia constituinte. Desse documento, denominado “Constituição”, constam os princípios e normas fundamentais que estruturam juridicamente o estado. A supremacia da Constituição decorre da soberania do povo. Na opinião de Karl Loewenstein, soberania popular e constituição escrita converteram-se, prática e ideologicamente, em conceitos sinônimos (“Teoria da la Constitucion”. Barcelona. Ariel. 1979, p.160). 
A ascensão do proletariado (classe operária) teve início no século XIX (1801/1900), após difusão da teoria socialista do filósofo alemão Karl Marx e da encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII. No século seguinte, a revolução russa colocou em prática a teoria marxista (1917). Segundo Ferdinand Lassalle, professor de origem polonesa, teórico social democrata, a Constituição nada mais será do que simples folha de papel se não corresponder aos fatores reais do poder. Vivendo na Alemanha do século XIX, o professor lista esses fatores: monarquia, nobreza, banqueiros, burguesia e classe operária. [“Que é uma Constituição?”. Porto Alegre. Villa Martha. 1980, pp. 21 + segs.]. Com o avanço da técnica e da ciência, nos séculos XX e XXI, a lista dos fatores pode ser assim atualizada: banqueiros, empresários, trabalhadores, militares, religiosos, universidades, organizações civis, meios de comunicação social em massa (imprensa, rádio, televisão, rede de computadores, celulares).
A democracia sofre periódicos abalos. Na primeira metade do século XX (1901/1950), governos autocráticos assumiram papel de relevo no mundo: fascismo na Itália, nazismo na Alemanha, com reflexos no Brasil e outros países americanos, em Portugal e outros países europeus, no Japão e outros países asiáticos, no Egito e outros países africanos. Da resistência ao expansionismo desse movimento autocrático resultou a segunda guerra mundial (1939/1945). Milhões de feridos e mortos (crianças, adolescentes, adultos), cidades arrasadas, desabastecimento, fome, doença, miséria. Os governos exibiram a ferocidade do lado demoníaco da natureza humana. 
Depois da guerra, dezenas de estados assinaram documento normativo de vigência internacional, no intuito de proteger as futuras gerações desse flagelo e reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, na igualdade jurídica das nações grandes e pequenas, na justiça e no respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional. Estados Unidos da América, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, União das Repúblicas Soviéticas Socialistas, República da China e França, constam como membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. [Carta das Nações Unidas, 26/06/1945]. 
Durante a quinta parte do século XXI (2001/2020), o fascismo e o nazismo, que estavam ocultos como brasas sob cinzas, renasceram em todos os continentes. A extrema direita aproveitou-se dos problemas econômicos e sociais da atualidade, inclusive os gerados pelos imigrantes e refugiados, para buscar domínio político. Repete as táticas da década de 1930, agora com o auxílio da media televisiva e da rede de computadores, espalhando notícias e anúncios falsos a fim de inculcar medo e captar prosélitos. Agita a população. Usa violência. Semeia ódio. Gera perplexidade. Alimenta a frustração e o sofrimento da massa popular. Conquista o voto de parcela do eleitorado no sistema democrático que está a destruir. Propaga a necessidade e a vantagem de um governo forte e militarizado para enfrentar supostas resistências à realização do bem comum, do desenvolvimento econômico e do combate à criminalidade. Considera os direitos humanos, as organizações civis que os defendem e os juízes que os respeitam, empecilhos à execução daqueles fins. Essa mentalidade nazifascista penetra a sociedade e o estado como vírus de uma enfermidade.   

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