sábado, 2 de novembro de 2019

PROVA

A notícia do envolvimento da família Bolsonaro na violenta morte da socióloga e vereadora carioca Marielle Franco estremeceu o país. Jair, seu filho e um policial acusado de participar do assassinato moram no mesmo condomínio residencial na Barra da Tijuca (Zona Oeste da Capital). O porteiro desse condomínio revelou que homem acusado de participar do assassinato foi admitido como visitante. No interior do imóvel, ele poderia visitar a casa de Jair, a casa do policial, ou qualquer outra. Por telefone celular, Jair teria autorizado a entrada e a circulação. A visita, registrada no livro próprio e em vídeo interno, aconteceu no mesmo dia em que a vereadora foi assassinada (14/03/2018). O laudo pericial exibido por promotora de justiça (ministério público do Rio de Janeiro) destoa da palavra do porteiro. A rapidez do exame pericial e da sua publicação desperta suspeita. O grito de Jair, ressoando no céu da Arábia, imprimiu velocidade à resposta oficial. No circo das falácias em que atuam Jair, filhos e correligionários, o grito de inocência vem acompanhado de descrédito. 
A prova, alma da investigação científica, também o é da investigação judiciária (sindicância, inquérito, processo). A prova assumiu importância central com a predominância do espírito científico em relação à metafísica e ao espírito religioso. A partir do século XVII, na Europa, os filósofos naturais passaram a utilizar a matemática não só para descrever a natureza como também para explica-la. Na busca da certeza do conhecimento, eles se valeram do método experimental. A partir do século XIX, eles passaram a ser chamados de cientistas e a filosofia natural passou a ser chamada de ciência [John Henry. A Revolução Científica – As Origens da Ciência Moderna. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1998, p. 20/52]. O filósofo inglês John Stuart Mill, imbuído desse espírito e ante a necessidade de rigor na busca da verdade, trata a Lógica como Teoria da Prova. Toda proposição implicada nessa busca deve ser provada. [Sistema de Lógica – Indutiva e Dedutiva. Madri. Daniel Jorro Editor, 1917, p. 55]. 
No estudo da natureza, fenômenos físicos são o objeto da prova. No processo judicial, o objeto da prova são pessoas, coisas e relações. Os atos necessários para levar o conhecimento dos fatos ao juiz da causa são regulados em lei. Os meios de prova legalmente previstos são fontes do conhecimento judicial. A lei brasileira admite a confissão, o testemunho, o documento, o exame pericial. Como fontes subsidiárias, admite o indício, a acareação, o reconhecimento, a busca/apreensão. A existência do crime, a autoria e a culpa do autor devem ser provadas. O domínio do fato pelo sujeito gera responsabilidade ainda que não seja ele o executor. Caracteriza-se, tal domínio, quando o sujeito consente na execução do crime e tem algum tipo de controle sobre o executor. Isto deve ser provado na instrução processual. No Caso Mensalão, a ausência de prova foi preenchida por desvirtuada aplicação da teoria do domínio do fato do alemão Claus Roxin. A lei brasileira supera essa teoria ao definir o concurso de pessoas: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este cominadas, na medida da sua culpabilidade” (CP 29). 
Nenhuma prova traz certeza absoluta em país onde a corrupção moral está enraizada nos costumes. Todas as provas devem ser confrontadas entre si e submetidas a uma criteriosa análise. Não há “rainha das provas”. Outrora, a confissão tinha esse título. Perdeu-o. Ficou desmoralizada pelo modo violento com que era obtida nas delegacias, nos quartéis e em outros locais civis e militares. Além disto, verificou-se que, mesmo obtida sem coerção, a confissão pode, por diversos motivos, ocultar a verdade. Apesar de vedada pelo direito e pela moral, a tortura continua a ser utilizada no Brasil e em outros países.
A perícia técnica, com ares de cientificidade, pretendeu ocupar o trono. A vida experimentada socialmente, nas ruas e nos tribunais, mostrou que os exames periciais nem sempre espelham a verdade. Por isto e nos termos da lei brasileira, o juiz não está vinculado ao laudo pericial e pode decidir com fulcro nas outras provas, desde que idôneas. No período autocrático (1964/1985) a manipulação da prova intensificou-se. O caso emblemático do jornalista Herzog ilustra bem essa anomalia: falsidade do exame pericial. Parlamentares, chefes de governo, banqueiros, empresários, barões da média, bispos evangélicos, exercem pressão e influem na investigação judiciária. Os institutos de criminalística não estão imunes.
Agentes do ministério público e juízes atuam de modo abusivo e arbitrário, com esperteza enganosa e falta de decoro, conforme se evidenciou na operação lava-jato, principalmente depois das reportagens do site “The Intercept Brasil”.  A conduta dos indivíduos nem sempre se harmonizam com os deveres postos pela instituição a que pertencem. A cor política partidária, a parcialidade, a venalidade, no que tange à atuação dessas autoridades estatais, são antigas e conhecidas. Ante essa realidade, cabe distinguir (i) o ministério público, a magistratura e seus códigos de ética, abstratamente considerados, como instituições respeitáveis e relevantes para a nação e para o estado democrático de direito (ii) da real atividade dos promotores, procuradores, juízes, desembargadores e ministros, concretamente considerados, no exercício das suas respectivas funções. Se lhes convém, contornam as normas éticas e jurídicas. Fazem da justiça, vã palavra; do processo, picadeiro; da democracia, caricatura. 
No Caso Bolsonaro, o objeto da prova (thema probandum) está assim colocado: (i) visita do provável assassino à casa de Jair (ii) envolvimento de Jair e filhos no crime. Há prova conflitante: o depoimento do porteiro (afirmando) versus o exame pericial (negando). O pronunciamento da promotora de justiça (tiete de Jair) ao enaltecer o exame pericial, mostrou sintonia com a defesa do presidente da república. No entanto, o laudo pericial pode ser falso ou lacunoso. O porteiro pode ser o portador da verdade. Nesse contexto, investigação isenta é difícil. Em casos como este, cresce a importância do jornalismo investigativo e da imprensa em geral. A apuração da verdade ou da falsidade do que foi dito pelo porteiro e do que foi escrito pelo perito, demandará algum tempo. Fatos relevantes para a solução do problema podem não ficar provados, ou podem ser provados: (i) de modo insuficiente (ii) de modo suficiente. Qualquer dessas hipóteses poderá ocorrer.   
Sobre o envolvimento de Jair e seus filhos no crime, existem indícios (atos e fatos circunstanciais que devem ser provados). A suspeição deles decorre da conjunção de fatores, tais como: proximidade com milicianos, apego às armas, caráter mal formado, homofobia, machismo enfermiço, discurso ofensivo, atitudes agressivas em direção à letalidade dos adversários ou de quem for considerado inimigo. A competência para instaurar o inquérito é da polícia civil do Rio de Janeiro (local do crime). Se houver ação penal, o processo será instaurado no Supremo Tribunal Federal (foro especial) e Jair será suspenso do cargo até o julgamento ser concluído.     

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