sábado, 9 de novembro de 2019

CRIME & DESCULPA

Ações ilícitas da família Bolsonaro trouxeram à balha, entre outras, questões sobre competência da autoridade e de foro, eficácia da norma, omissão e seletividade na persecutio criminis, idoneidade das provas. 
O presidente da república está na berlinda, mas blindado. Tem foro especial. O ministro da justiça na chefia da polícia federal e o procurador-geral da república na chefia do ministério público (MP) são subalternos, estão sob a autoridade e a influência do chefe de governo suspeito da prática delituosa. Diante disto, provavelmente o presidente livrar-se-á de inquérito policial e de processo criminal (procedimentos legais sucessivos com regras próprias).
Mediante inquérito, compete ao delegado da polícia civil (Poder Executivo) apurar a autoria e a materialidade dos crimes mesmo que o indiciado seja autoridade com foro especial. Mediante processo, compete ao juiz (Poder Judiciário) apurar a verdade dos fatos e a responsabilidade do acusado (absolver ou condenar). Nos crimes comuns atribuídos ao presidente da república, o inquérito segue sob direção do delegado e o processo sob direção de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Juiz algum, de entrância ou de tribunal, deve caçar criminosos, investigar, dirigir ou presidir inquérito. Este papel é da polícia civil e do MP. O juiz deve se manter equidistante, atuar com independência, imparcialidade, honestidade e respeitar a separação de poderes e de funções estabelecida na Constituição da República (CR). No campo da segurança pública, a polícia civil não necessita de licença para exercer a sua missão constitucional, salvo para aquelas diligências que exigem autorização ou mandado judicial. [CR 5º, LIV, LXI +102, I, b + 144, §4º; CPP 4º + 6º].
Na hipótese de o MP, por qualquer motivo, não oferecer denúncia, o cidadão eleitor poderá formular queixa-crime contra o autor do delito. Cuida-se de um direito fundamental derivado da soberania popular e da cidadania. Antes de 1988, o MP detinha o monopólio da ação penal pública e da ação sobre constitucionalidade. O legislador constituinte de 1987/1988 acabou com esse monopólio e concedeu legitimidade ativa: [i] nas ações sobre constitucionalidade, a várias entidades, desde o presidente da república até confederação sindical [ii] na ação penal pública, ao cidadão. A ação penal pública deve ser promovida privativamente pelo MP, na forma da lei, porém, se não o fizer, o cidadão poderá tomar a iniciativa. Neste caso, o cidadão exercerá o seu direito fundamental, quer no interesse próprio, quer no interesse de toda a sociedade, estribado no mandamento constitucional: “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”. [CR 5º, inciso LIX + 103 + 129].
Durante a minha judicatura nos estados do Paraná, da Guanabara e do Rio de Janeiro, testemunhei episódios censuráveis de agentes do MP que deixavam de oferecer denúncia contra certas pessoas por motivos estranhos ao interesse público. Alicerçado nessa experiência, apresentei duas propostas à Assembleia Nacional Constituinte (ANC) em 1987, visando a extinção do citado monopólio. Ambas foram aprovadas e incluídas na Constituição. Além destas duas, apresentei mais 14 sobre matéria diversa. Entre as aprovadas e incluídas na Constituição constaram: [i] a que extinguia os vogais na Justiça do Trabalho [ii] a que extinguia os penduricalhos na remuneração dos juízes (subsídio único = moralização + dignidade) [iii] a que obrigava o juiz a residir na comarca [iv] a que vedava juízo de exceção e não só tribunal de exceção [v] a que atribuía legitimidade ativa a qualquer cidadão para propor ação popular. Entre as que não foram incluídas constavam: [i] a que outorgava aos juízes vitalícios o direito de eleger o presidente do tribunal de justiça, chefe do poder judiciário estadual (democratização interna) [ii] a que colocava a Justiça Militar na estrutura das forças armadas (jurisdição administrativa militar) [iii] a que determinava a posição do acusador e do defensor no mesmo patamar nas varas criminais e no tribunal do júri (igualdade processual).
O senador José Richa, representante do Paraná, que também recebeu as mencionadas propostas, enviou-me exemplar autografado da nova Constituição, logo após a promulgação. Ao deputado Bernardo Cabral, representante do Amazonas, presidente da comissão de sistematização, além das propostas, também enviei carta solicitando que a expressão “juiz subordinado ao tribunal”, onde quer que constasse no projeto, fosse substituída por “juiz vinculado ao tribunal”, tendo em vista ser a ideia de subordinação incompatível com a ideia de independência do juiz. O ilustre parlamentar atendeu à solicitação e teve a gentileza de me enviar ofício comunicando. O senador Saturnino Braga e o deputado Miro Teixeira, representantes do Rio de Janeiro, silenciaram sobre as propostas (e eu era juiz desse estado!). Antes de enviar as propostas à ANC, eu as defendi no Congresso da Magistratura Nacional, realizado em Recife/PE, e na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, realizada em Porto Alegre/RS.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o antigo relator das ações oriundas da operação lava-jato no STF, ministro Teori Zavatski, usurpando competência exclusiva do Legislativo, introduziram no direito penal brasileiro nova excludente de criminalidade: arrependimento acoplado ao pedido de desculpa. Copiaram a igreja cristã: o pecador é absolvido se mostrar arrependimento e orar (penitência). Essa excludente ainda não foi examinada pelo plenário do STF. Por enquanto, ela favorece apenas a quem se mostre merecedor aos olhos da autoridade estatal (sacerdote leigo) e abrange número limitado de tipos penais (pecados): abuso de autoridade, advocacia administrativa, apologia do crime, do criminoso e/ou da ditadura, assassinato, calúnia, concussão, condescendência, corrupção, degradação do meio ambiente, difamação, falsidade, injúria, peculato, prevaricação, tráfico de influência, violação de sigilo funcional, violência arbitrária. 
Graças a essa excludente, Moro não foi processado e condenado pelas ilicitudes praticadas quando chefiava a operação lava-jato. As representações contra ele foram tratadas como se tudo não passasse de travessura de um garoto traquinas. Ele, agora ministro da justiça, aplica a terceiros a mesma excludente que o beneficiou: declara “caso encerrado” quando o delinquente se diz arrependido e pede desculpa. O caso não é submetido ao Judiciário. Por se tratar de elemento subjetivo de difícil aferição, a sinceridade não é exigível. Suficiente fingir arrependimento. Dispensável a publicidade do pedido de desculpa. Basta apresenta-lo ao sacerdote leigo. Desde que o criminoso se arrependa e se desculpe, algumas ações ficam impunes. Exemplos: queimar floresta para criar gado ou plantar cana, grampear telefone da presidência da república, uso arbitrário das próprias razões, obstruir a justiça, apossar-se de bem da coletividade para uso próprio, matar lideranças indígenas, rurais e urbanas, invadir reservas indígenas.
As excludentes de criminalidade previstas na legislação brasileira são: (i) estado de necessidade (ii) legítima defesa (iii) estrito cumprimento do dever legal (iv) exercício regular de direito. O arrependimento não exclui a responsabilidade. A lei brasileira admite dois tipos de arrependimento e ambos devem ser voluntários: [1] Anterior à consumação do crime (execução interrompida ou resultado abortado). O executor responde apenas pelos atos já praticados. [2] Posterior à consumação do crime cometido sem violência ou grave ameaça, desde que reparado o dano ou devolvida a coisa antes do recebimento da denúncia ou da queixa pelo juiz. Permite a redução da pena.
Caso algum de exclusão do crime ou de atenuação da pena dispensa o devido processo legal. O juiz é a autoridade competente para decidir sobre a presença ou ausência desses benefícios no caso concreto. “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. [CR 5º, XXXV; CP 15/16 + 23].

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