terça-feira, 12 de novembro de 2019

LITURGIA & LIBERDADE

1. Além de se referir ao conjunto ordenado de cerimônias e orações no serviço religioso, o vocábulo liturgia é usado no mundo profano para designar ritos da burocracia estatal, cerimônias do estado, nos quais se incluem as audiências nas varas e nos tribunais judiciários. Quando, da tribuna do Supremo Tribunal Federal (STF), a advogada tratou os juízes de “vocês”, o ministro Marco Aurélio exigiu respeito à liturgia da qual fazem parte o tratamento cerimonioso (“excelência”) e o decoro. Esse tratamento não se dá em razão de virtudes e vaidades pessoais e sim da qualificação do magistrado para exercer função de suma importância ao bem comum, à eficácia dos direitos humanos, à ordem pública e ao desenvolvimento da nação.           

2. Em Curitiba, a titularidade da vara federal das execuções penais era de uma juíza. O alvará de soltura de Luiz Inácio Lula da Silva foi expedido por um juiz. A juíza, que tratava esse preso com excessivo rigor, cerceando direitos, cogitando de removê-lo para penitenciária paulista, provavelmente sentiu-se frustrada com a decisão da suprema corte. Saiu em férias. Talvez, no sentir dela, assinar o alvará seria humilhante. Condimentar deveres funcionais com ódio e preconceito resulta nisso.

3. Eleitores de Bolsonaro e setores do jornalismo e da política partidária, insatisfeitos com a decisão do STF sobre a liberdade dos réus até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, trabalham para devolver à prisão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
3.1. Eles pretendem obter do Congresso Nacional emenda à Constituição instituindo o segundo grau de jurisdição como limite da presunção de inocência. Isto, além de caracterizar confronto com o STF, violação do princípio constitucional da harmonia entre os poderes, implicaria alterar vigente norma constitucional que coloca o limite da presunção de inocência após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Essa norma inscreve-se entre os direitos e garantias fundamentais erigidos em cláusulas pétreas, consoante dispõe o inciso II, do §4º, do artigo 60, da Constituição da República (CR). Portanto, a referida norma não pode ser objeto de emenda e nem de lei ordinária. A pretendida modificação exige decisão de uma assembleia nacional constituinte especial (alterar cláusulas pétreas) ou de uma assembleia nacional constituinte geral (elaborar nova Constituição). Caso o Congresso promulgue emenda desse jaez, certamente o STF a declarará inconstitucional. [CR 2º + 5º, LVII].     
3.2. O enquadramento na lei 7.170/83 (segurança nacional) de [i] Jair Bolsonaro, atual presidente da república, por seus arroubos e submissão à bandeira dos EUA e [ii] de Luiz Inácio, ex-presidente, por seu inflamado discurso à multidão, encontra óbice na Constituição de 1988, que limitou a jurisdição militar aos crimes militares e garantiu que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (CR 5º, LIII + 124). O Congresso Nacional ainda não votou lei sobre essa matéria, compatível com a nova Constituição. Ainda que parcialmente, a lei anterior perdeu vigência.   
3.3. Enquanto se mantiver respeitada e inalterada a vigente norma constitucional, esses eleitores e setores procurarão acelerar os trâmites da ação penal sobre o tríplex de Guarujá a fim de chegar, rapidamente, ao trânsito em julgado da sentença condenatória e colocar Luiz Inácio novamente na prisão. Essa empreitada poderá se frustrar diante da viável hipótese de o STF anular o processo em decorrência dos vícios nele contidos.

4. A Netflix exibe documentário sobre o julgamento de Ivan John Demjanjuk, ucraíno nacionalizado americano, acusado de ser “Ivan, O Terrível”, soldado ucraíno a serviço do exército alemão no campo de extermínio de Treblinka (Polônia), durante a segunda guerra mundial, encarregado de executar prisioneiros na câmara de gás. Esse documentário robora o artigo intitulado “PROVA” publicado neste blog em 02/11/2019, quanto às provas falsas.
4.1. O tribunal ordinário israelense, diante da falsidade dos documentos juntados pelo órgão acusador (ministério público) aceitou como prova suficiente a versão das testemunhas de acusação e condenou o acusado a morrer na forca. Em grau de apelação, foram apresentados documentos autênticos retirados dos arquivos da KGB, provando a inocência do acusado. O soldado “Ivan, O Terrível” era outra pessoa. Ivan John nunca estivera em Treblinka. A suprema corte israelense absolveu o acusado. O povo ficou indignado e protestou contra essa decisão. O fato é que as duas principais testemunhas da acusação mentiram ao reconhecer e apontar o acusado como sendo o assassino. Uma delas se esquecera de que havia assinado declaração, após o término da guerra, confessando ter – junto com outro prisioneiro – matado o soldado “Ivan, O Terrível” durante rebelião no campo de Treblinka. No campo de Sobibór (Polônia) os prisioneiros judeus também mataram os seus carcereiros na rebelião de 1943. 
4.2. Nos trâmites do processo judicial, os judeus gesticulavam, gritavam, pediam a morte do acusado e se regozijaram com a sentença condenatória. Os judeus fizeram o mesmo com Jesus: não se contentaram com o castigo físico aplicado pela autoridade romana. Protestaram, gritaram, insistiram para que Jesus fosse morto e não apenas chicoteado. O documentário tem o condão de mostrar, a latere, os baixos instintos do povo, a irracionalidade, a cega paixão, dos quais resultam linchamentos de pessoas inocentes.   
4.3. Ivan John retornou a Cleveland/EUA, onde morava com sua família. Junto às autoridades estadunidenses, os judeus conseguiram que Ivan, com 91 anos de idade, fosse preso e deportado para a Alemanha. Lá, foi julgado e condenado por prestar serviço como praça no campo de Sobibór. Esse campo, assim como os demais, estava sob o comando e administração dos oficiais e praças alemães. Ivan não era soldado alemão. Embora decorridos 60 anos do fim da guerra até a sentença, a prescrição não foi admitida.
4.4. Em Israel, as vítimas do holocausto julgaram Ivan John. Na Alemanha, a autora do holocausto julgou Ivan John. Ecce homo!

Nenhum comentário: