segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

GOVERNO versus CIDADÃO - 2

Nas sociedades democráticas, o poder político pertence ao povo. No exercício desse poder em grau máximo, o povo organiza o estado mediante princípios e regras fundamentais gravados num documento com força normativa denominado Constituição. A partir do século XIX (1801/1900), vigora em países da Europa e da América, com algumas nuances, o seguinte padrão: cidadãos de ambos os sexos, escolhidos pelo povo, reunidos em assembleia constituinte (i) ditam os direitos e deveres individuais e coletivos (ii) estabelecem o tipo de estado e de governo (iii) criam órgãos para desempenho de funções políticas e administrativas (iv) outorgam a esses órgãos poderes independentes (v) adotam o modelo orgânico tripartido: legislativo, executivo e judiciário. Nesses moldes, ficam disciplinadas as relações entre governantes e governados. De um lado, os governados com seu poder constituinte soberano e a sua liberdade limitada pelo direito; de outro lado, os governantes com seus poderes constituídos encerrados num sistema de competências. 
O Brasil seguiu esse padrão quando foram votadas as constituições de 1891, 1934, 1945 e 1988. Fugiu parcialmente desse padrão quando foram outorgadas as cartas de 1824, 1937, 1967 e 1969. Historicamente, o estado brasileiro oscila entre a forma democrática e a forma autocrática de governo. O autoritarismo próprio da autocracia tem marcado presença nos períodos democráticos. Nas sessões do Supremo Tribunal Federal (STF) é possível detectar a oscilação. Neste particular, interessante observar a coreografia das mãos e dos braços com a qual alguns ministros ilustram as suas ideias e palavras como se estivessem pesando pretensões e argumentos dos litigantes. A coreografia evoca imagem da balança da justiça. A pesagem revela o pendor do ministro à autocracia ou à democracia, conforme deposite mais peso no prato do governo ou no prato do cidadão.
No conflito com os interesses do governo, os direitos fundamentais do cidadão devem prevalecer porque constituem limites impostos pelo legislador constituinte à ação governamental. A distribuição da matéria no texto constitucional já indica a prevalência: (i) primeiro, os princípios, direitos e garantias fundamentais (ii) depois, a organização dos poderes do estado (iii) finalmente, a ordem econômica e social. Esta distribuição não é gratuita, nem aleatória. Trata-se de um sistema jurídico criado pelo legislador constituinte de 1987/1988 como reação ao período em que os interesses do governo sobrepunham-se aos direitos do cidadão e a autoridade sufocava a liberdade (1964/1985). A atual distribuição da matéria retrata a prioridade da democracia e dos direitos humanos. Portanto, enquanto vigorar a Constituição de 1988, os direitos e garantias fundamentais não podem ser sacrificados ou flexibilizados por doutrinas, programas e projetos dos governantes.
Com fulcro nos imprescindíveis princípios da independência, da irresponsabilidade funcional e do livre convencimento, alguns juízes federais, sob a máscara da legalidade, abusam do poder jurisdicional. O que era sabido no círculo forense, chegou agora ao conhecimento geral com operações do tipo “mensalão” e “lava-jato” e reportagens como as do sítio The Intercept Brasil.
Os citados princípios não dispensam o juiz de alicerçar suas decisões em provas idôneas. Livre convencimento significa que o juiz deve pesar sem preconceito, sem condicionamento hierárquico e sem tergiversar, cada prova trazida pelas partes aos autos do processo. Se, para algum fato, só determinado tipo de prova for admitido (por exemplo: a escritura pública em relação à propriedade imóvel) o juiz não deve descartá-lo. Na sentença, o juiz deve justificar o peso atribuído às provas. [CPP 157 + 381].
Quando bem intencionado, firme no propósito de aplicar corretamente o direito positivo e fazer justiça, o juiz pode, na esfera do processo penal, durante a instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências que entender necessárias para dirimir dúvida sobre ponto relevante (CPP 156). Isto não significa produzir prova, tarefa que cabe privativamente às partes (princípio dispositivo). Significa, isto sim, exercício da legal competência inquisitiva do juiz destinada a ensejar julgamento justo, restrita à pesquisa da verdade e que ajuda na avaliação da prova contida nos autos. A iniciativa encaixa-se no modelo acusatório adotado pela processualística brasileira. Esse modelo tem as seguintes características: [i] pretensão punitiva e persecutio criminis privativas do estado (das quais as partes não podem dispor) [ii] acusação formulada mediante denúncia do agente do ministério público ou queixa do ofendido [iii] defesa oral e escrita formulada pelo acusado [iv] provas produzidas exclusivamente pelas partes [v] presidência do processo e julgamento do caso por juiz imparcial e independente.
Presidir o processo com a decisão já tomada desde o inicio tipifica parcialidade. O juiz tem o dever de examinar as provas com isenção de ânimo e honestidade. Ao considerar os argumentos das partes e à medida que as provas são apresentadas, o juiz vai formando a sua convicção. Utiliza as vias da indução, da dedução, do razoável, do proporcional e da sensatez. Firmada a sua convicção, o juiz enquadra a sua decisão no ordenamento jurídico em consonância com a sua experiência, seus conhecimentos e sua consciência. Sobre as questões de direito mais frequentes, o juiz tem opinião formada. Sobre os casos repetitivos, o juiz aplica os precedentes jurisprudenciais. Sobre a matéria de fato, o juiz busca distinguir a realidade da fantasia, observa se há diferença com aquilo que ordinariamente acontece na sociedade, se há peculiaridade relevante. A sutileza do raciocínio jurídico está mais nas diferenças do que nas semelhanças.
O aspecto inquisitivo do poder do magistrado difere do inquisitorial da Igreja. Falta à inquisição religiosa a garantia do devido processo jurídico. O fundamento da inquisição é a fé enquanto que o alicerce da jurisdição estatal é a razão. No entanto, há juízes inquisidores como aqueles da operação lava-jato. Um deles, hoje ministro da justiça, contrariado com a decisão do STF sobre a prisão em segunda instância, fala da sensação de abandono da justiça com a soltura de criminosos e de que não existe justiça. Diz que discorda, mas repeita o tribunal. O pirralho morde e assopra. Enquanto não houver sentença condenatória transitada em julgado, ninguém pode ser taxado oficialmente de criminoso. Quem o fizer, comete crime contra a honra.
Ao invés de criticar o tribunal e ofender quem ainda não foi condenado definitivamente, esse pivete devia agradecer a Deus. Sim, porque se existisse a justiça de cuja falta reclama, ele e outros tucanos corruptos já estariam na cadeia há muito tempo. A experiência forense revela que tanto há juízes parciais, arbitrários, nazifascistas, como há juízes imparciais, corretos e democratas; tanto há esperteza enganosa, como há sinceridade. Só não há santidade.

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