domingo, 20 de outubro de 2019

INSTÂNCIA & JURISDIÇÃO


O Supremo Tribunal Federal (STF) na sessão do dia 23/10/2019 votará matéria sobre execução penal. Decidirá se a execução de sentença penal condenatória depende, ou não, do trânsito em julgado. O resultado poderá repercutir no Caso Lula. Considerando o interesse geral da questão, recomendável e oportuna se afigura a abordagem de alguns aspectos terminológicos para facilitar a compreensão de todos aqueles que estiverem pouco familiarizados com as lides forenses.
Estância e entrância são vocábulos de conotação espacial (estar, entrar). Estância significa lugar onde pessoas param ou moram, imóvel rural onde se cria gado, vocábulo de uso comum no Rio Grande do Sul. Entrância significa classe da divisão judiciária do estado federado. Cada estado tem as suas próprias organização e divisão judiciárias segundo critérios de densidade populacional e de movimento forense. Geralmente, as comarcas do estado são agrupadas em 3 entrâncias: (i) primeira ou inicial, onde funcionam juízes no início da carreira (ii) segunda ou intermediária, onde funcionam juízes em progressão na carreira e experientes na função judicante (iii) terceira ou final, onde funcionam juízes de larga experiência. Depois da entrância final, o juiz é promovido para o tribunal de justiça, ganha o título de desembargador e encerra a carreira compulsoriamente ao completar 70 anos de idade.
Instância é vocábulo de conotação temporal (instante). Significa a ação de pedir de maneira insistente e persuasiva. Neste sentido, há instâncias em cada entrância e em cada tribunal. O autor de uma ação judicial insta o juiz a deferir a pretensão nela deduzida. O réu da ação insta o juiz a indeferir o pedido do autor. Há segunda instância quando as partes, servindo-se da regra do duplo grau de jurisdição, recorrem a um órgão de superior hierarquia pleiteando o provimento dos seus inconformismos. Isto acontece quando o vencido apela ao tribunal pedindo a reforma da decisão proferida na anterior instância. No tribunal há órgãos fracionários (câmaras, turmas). Os recursos interpostos das decisões desses órgãos ao órgão especial (plenário) constituem nova instância no âmbito do mesmo tribunal. Outra instância se inaugura, no curso do mesmo processo, com os recursos interpostos da decisão (acórdão) do tribunal de justiça ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os recursos interpostos das decisões dos órgãos fracionários do STJ ao seu órgão especial (plenário) constituem segunda instância interna. Derradeira instância nos trâmites do mesmo processo ocorre no STF. Aqui também pode haver uma segunda instância interna para exame de recursos oriundos das suas turmas.
Para evitar mais de uma instância no mesmo grau de jurisdição, os juízes de algumas câmaras ou turmas combinam decidir os recursos por unanimidade. Todos acompanham o voto do relator. Não havendo divergência não haverá recurso para o mesmo tribunal. Certa vez, o presidente de uma câmara do então tribunal de alçada, meu colega de toga do Estado da Guanabara, contou-me que adotava essa prática. Passei a observar esse conluio nos órgãos fracionários dos tribunais. Notei que se repetiu no Caso Lula. Os juízes da turma criminal do tribunal federal de Porto Alegre e os da turma criminal do STJ asseguraram a unanimidade. Todos compareceram às respectivas sessões de julgamento com os seus votos prontos, escritos e ajustados, semblantes severos, fechados, rancorosos. A falta de divergência impossibilitou uma segunda instância, ou seja: a turma impediu que a questão fosse submetida ao crivo do tribunal pleno.  
A expressão “segunda instância” tem sido usada como equivalente a “grau de jurisdição”, porém, há diferença: aquela tem conotação temporal e esta outra, conotação institucional. A instância supõe capacidade e interesse da parte para estar em juízo e instar o juiz. A jurisdição supõe a legal competência do juiz para exercer função judicante nos casos submetidos à sua apreciação.
Jurisdição significa o poder da autoridade estatal de declarar, interpretar e aplicar o direito (princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais). A gradação das coisas (temperatura, parentesco, ensino) é própria da atividade discriminatória e classificatória da inteligência humana. Assim como a transmissão do conhecimento foi classificada em primeiro, segundo e terceiro graus, a jurisdição também classifica-se em parlamentar, administrativa e judicial.  A parlamentar é exercida pelo Senado nos casos de impeachment. A administrativa é exercida pelas autoridades em matéria disciplinar, fiscal e esportiva. A judicial é exercida pelos juízes no âmbito do Poder Judiciário nos casos de lesão ou ameaça a direito. 
O ordenamento jurídico brasileiro admite quatro graus de jurisdição judicial: (i) o primeiro grau corresponde às instâncias perante os juízes de entrância (ii) o segundo grau corresponde às instâncias perante os tribunais estaduais de justiça e os regionais federais (iii) o terceiro grau corresponde às instâncias perante os tribunais superiores (iv) o quarto grau corresponde às instâncias perante o STF.
Cuida-se de distribuição hierárquica entre os diferentes órgãos da estrutura judiciária do país. A decisão do grau superior prevalece sobre a decisão do grau inferior. O processo da ação judicial comum pode percorrer todos os graus de jurisdição antes de a sentença transitar em julgado. Exemplo. O primeiro grau de jurisdição no caso que provocou as ações que serão julgadas no STF na próxima semana ocorreu numa vara criminal federal de Curitiba; o segundo grau, no tribunal federal de Porto Alegre; o terceiro grau, no STJ (Brasília); o quarto grau no STF (Brasília).
Há ações judiciais específicas em que o primeiro grau de jurisdição é um tribunal e não uma vara criminal. Exemplo. Nos crimes comuns: (1) Os governadores respondem perante o STJ em primeiro grau. Nesta hipótese, o segundo grau será o STF. (2) Os juízes federais respondem perante os tribunais regionais federais em primeiro grau. Nesta hipótese, o segundo grau será o STJ. (3) O presidente da república responde perante o STF em primeiro e único grau. 
O trânsito em julgado da sentença ocorre quando exauridos todos os recursos cabíveis previstos na legislação. Todavia, o trânsito em julgado pode acontecer antes desse exaurimento, em qualquer grau de jurisdição, se a parte deixar de recorrer. A execução da sentença começa após o trânsito em julgado. Contudo, pode haver execução provisória (prisão preventiva) antes do trânsito em julgado se a liberdade do condenado ameaçar a paz e a ordem públicas. 
Até o advento da Constituição da República de 1988, o Código de Processo Penal autorizava a prisão do réu já no primeiro grau de jurisdição. Na própria sentença, o juiz determinava a expedição do mandado de prisão e o lançamento do nome do réu no rol dos culpados. A execução da pena era imediata. O réu só podia apelar ao tribunal de justiça depois de preso. Assim procedíamos, eu e os demais juízes das varas criminais, em sintonia com a lei penal vigente naquela época (1970-1988). Com a promulgação da nova Constituição esse procedimento foi alterado (1989-2019). A referência deixou de ser o primeiro grau de jurisdição e passou a ser o trânsito em julgado da sentença. Se a mudança foi boa ou má cabe ao povo decidir. A relevância política e jurídica está na decisão do legislador constituinte (eleito pelo povo) que colocou a mudança em cláusula pétrea. Isto significa que a nova disciplina da matéria não pode ser alterada, salvo por nova assembleia nacional constituinte. 
Destarte, o legislador ordinário, os juízes e os tribunais não podem modifica-la. Se o fizerem, estarão cometendo crime de responsabilidade. Isto quando vigora o estado democrático de direito. No estado de exceção e em republiqueta de bananas vale tudo. Nenhum argumento com fundamento na moral e no direito prevalece ante a caprichosa vontade de quem exerce o poder do estado de forma autocrática e abusiva. 

Nenhum comentário: