quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

FRATERNIDADE

A fraternidade é uma das colunas da democracia ao lado da liberdade, da igualdade e da soberania popular. Pode ser vista como preceito da ética cristã e também como retórica dos revolucionários franceses. Trata-se de relação afetiva entre irmãos ou entre indivíduos que se comportam como irmãos; união amorosa entre aqueles que comungam ideais, crenças, visão de mundo e atuam associados e harmônicos. Neste passo, oportuna a lição de Augusto Comte, positivista francês, para quem os parâmetros da sociedade civilizada são: amor por princípio, ordem por base e progresso por fim. Amor, aí, significa o elo afetivo que agrega pessoas e possibilita o convívio social. Na política e no direito há lugar para o amor, embora estas ciências estudem os fenômenos do poder e da organização jurídica da sociedade e do estado.
Os seres da natureza comungam origem (energia fundamental que os cria e anima) e estrutura (atômica, molecular, celular). Ao tratar o Sol, a Lua, os pássaros, como seus “irmãos”, Francisco de Assis, no século XIII, antecipava-se à Física moderna ao intuir essa igualdade genética e estrutural. O santo percebeu-a como fraternidade universal. Os arranjos dos átomos, moléculas e células são diferentes; em consequência, os seres naturais variam do mais simples ao mais complexo e se classificam em minerais, vegetais e animais. Original e estruturalmente, pois, todos os seres da natureza são “irmãos”, porém são desiguais nas suas respectivas existências. A desigualdade e a mudança são inerentes ao mundo natural. Sob este ângulo, fraternidade é laço afetivo entre pessoas naturalmente desiguais que se tratam como irmãos.
Jesus, o Cristo, ícone das igrejas católica e protestante, pregava o amor entre os humanos, todos tratados como irmãos, filhos de deus. Insistiu que os apóstolos se tratassem como tal, sem precedência de um sobre o outro, amparando-se mutuamente, dividindo as tarefas, as receitas, os alimentos, usufruindo os bens em comum, unidos pelos laços do amor incondicional. Enquanto Jesus viveu, o colégio de apóstolos era autêntica fraternidade. Todavia, a doutrina cristã do amor fraterno é uma quimera num mundo repleto de conflitos, agressões, traições, ciúmes, ambição, inveja, ódio, em que os humanos se matam havendo ou não havendo guerras. Jesus foi o único cristão que existiu neste planeta, porém, se dermos crédito aos evangelhos, verificaremos que em várias ocasiões ele agrediu os seus “irmãos” (fariseus, mercadores) e se portou com jactância ante seus interlocutores, altivez no tribunal judeu e arrogância diante dos governadores da Galileia e de Jerusalém. Marcas indeléveis da sua natureza humana. 
Fé, esperança, caridade, aliadas aos múltiplos interesses e objetivos, às vezes encobertos por enganosas razões, fomentam atos de mútua confiança instituidores de fraternidades (ou irmandades). No antigo Egito, havia sociedades secretas lideradas por faraós, como Tutmosis e Amenhotep, cujos membros se tratavam de irmãos e investigavam as leis do universo no seu duplo aspecto: material e espiritual. Na clássica Atenas, as academias de Platão e de Aristóteles tinham essa feição de irmandade, onde os estudos eram feitos de maneira respeitosa, mesmo perante questões problemáticas que despertavam divergências. Corporações medievais funcionavam como irmandades. No seio da igreja católica há inúmeras irmandades. 
Na Europa dos séculos XVII e XVIII foram organizadas as irmandades leigas dos rosacruzes e dos maçons, cujos filiados, pouco numerosos, firmavam compromisso e juramento de se tratarem como irmãos, de se apoiarem mutuamente, de estudarem e trabalharem em prol da humanidade. Levaram o seu ideário para a arena política sob o lema liberdade, igualdade e fraternidade, fornecendo o alicerce intelectual e o combustível ideológico à revolução francesa. No século XX, elite nazista fundou irmandade secreta de colorido místico para difundir doutrina de forte conteúdo racista, com pretensão de dominar o mundo.
Na teoria democrática, fraternidade é postulado da razão prática cujo desiderato é estabelecer clima de entendimento entre os cidadãos, cooperação em nível coletivo para o desenvolvimento pleno da pessoa humana, para o bem-estar comum e para a felicidade geral. A fraternidade se expressa, na política e no direito, como solidariedade social. Esse espírito fraterno advém da compaixão de uma elite intelectual, moral e espiritual diante do estado de necessidade, de miséria e de sofrimento de milhões de homens e mulheres, adultos e crianças. No século XIX, a escravatura foi banida dos costumes e das leis de países europeus e americanos. Na América Portuguesa, a escravidão foi mantida pelo governo português por 300 anos, desde os tempos coloniais até o de reino unido (Portugal + Algarves + Brasil). Como nação independente, o Brasil manteve a escravidão por 66 anos (1822 a 1888). Após a abolição, os negros foram segregados. A mentalidade escravocrata permanece até os dias atuais na sociedade brasileira. 
Os deputados constituintes franceses incluíram na declaração de direitos, em 1793, o dever do estado de prestar assistência pública aos necessitados, de lhes assegurar ocupação, meios de subsistência e instrução. No século XIX, a encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, refletiu a compaixão pelas vítimas da era industrial. A encíclica repercutiu na civilização ocidental e contribuiu para a introdução, no século XX, de obrigações positivas do estado nos ordenamentos jurídicos de países europeus e americanos. Intelectuais, operários e sacerdotes lutaram para que essas obrigações fossem institucionalizadas. No pólo oposto colocavam-se os plutocratas amparados pelas forças do estado. Confrontos ora pacíficos, ora violentos.
Textos constitucionais, a começar pelo mexicano de 1917, lançaram como dever do estado assegurar trabalho, educação, saúde, previdência e assistência social. Instituíram garantias contra o desemprego, a despedida injusta, os salários irrisórios, a retenção criminosa dos salários, a excessiva duração da jornada de trabalho, os riscos inerentes ao trabalho. Asseguraram: (1) remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, da hora extraordinária superior à da hora ordinária; (2) repouso semanal e férias remuneradas; (3) licenças em razão da maternidade e da paternidade; (4) direito de greve; (5) participação em órgãos públicos colegiados. Proibiram: (1) diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; (2) distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os respectivos profissionais; (3) trabalho a crianças. Estabeleceram a obrigatoriedade do seguro contra acidentes do trabalho. Permitiram associação profissional e sindical. Reconheceram a validade das convenções e dos acordos coletivos.            
A educação foi declarada direito de todos e dever do estado e da família mirando o desenvolvimento físico, moral e intelectual da pessoa. O estado se compromete com o ensino fundamental obrigatório e gratuito, com especial atenção às necessidades dos portadores de deficiência e à educação infantil em creche e pré-escola. Garante o acesso aos níveis elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um. Adota princípios tais como: (1) igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; (2) gratuidade do ensino público; (3) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; (4) pluralismo pedagógico; (5) autonomia didática, científica e administrativa das universidades; (6) gestão democrática do ensino público.
O estado garante o direito à saúde através de políticas que visem a: (1) reduzir o risco de doença; (2) permitir o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde; (3) regulamentar, fiscalizar e controlar as ações e serviços de saúde.      
O estado organiza previdência social de caráter contributivo e filiação obrigatória, com a seguinte finalidade: (1) cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; (2) proteção: (i) à maternidade e à gestante (ii) ao trabalhador desempregado. Institui: (1) salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; (2) pensão por morte do segurado ao cônjuge ou companheiro e dependentes; (3) aposentadoria.
A quem necessitar, o estado presta assistência jurídica e social independente de contribuição à previdência social. A assistência jurídica compreende consultoria geral e defesa específica tanto em processo judicial como em processo administrativo. A assistência social tem por objetivo: (1) proteger a família, maternidade, infância, adolescência e velhice; (2) amparar crianças e adolescentes carentes; (3) promover a integração ao mercado de trabalho; (4) habilitar e reabilitar pessoas portadoras de deficiência e promover sua integração à vida comunitária; (5) garantir benefício mensal aos portadores de deficiência e aos idosos.      
A experiência histórica mostra retrocessos na Europa e na América, que retiram a eficácia dos direitos individuais e sociais. O Brasil vive atualmente um desses tristes momentos.

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