quarta-feira, 16 de novembro de 2016

DEMOCRACIA

Há palavras cujos significados se ampliam no curso da história. Democracia é uma delas. Inicialmente, tinha um exclusivo significado político: governo do povo pelo povo (Grécia 800 a.C. a 001 d.C.). O povo era integrado por pequena parcela da população masculina; nos primórdios, só os homens proprietários, posteriormente, todos os homens livres. Em Atenas, havia três classes: (A) cidadãos (helenos descendentes dos primitivos senhores que conquistaram a Hélade e se tornaram proprietários de terras); (B) metecos (gregos não atenienses, judeus e fenícios que não podiam ser proprietários de terras, nem exercer direitos políticos; sob os demais aspectos, igualavam-se aos cidadãos, podiam escolher ofício e dedicar-se a atividades sociais e intelectuais); (C) escravos (1/3 da população, bem tratados, alforriados com certa frequência em reconhecimento à fidelidade e aos bons serviços prestados; recebiam salário por trabalho contratado, possuíam bens e ocupavam cargos públicos). Mulher não participava da política. Igualdade apenas entre homens livres. O direito privado não prevalecia contra o estado.
Sob o governo de Péricles (461 a 429 a.C. - tempo de Sócrates), a democracia ateniense atingiu o seu ápice. Ele criou e presidiu por mais de trinta anos o Conselho dos 10 Generais, cujos membros (militares e civis) eram escolhidos pela Assembleia para mandato anual. A Assembleia adquiriu poderes para elaborar leis. Foram criados tribunais populares para julgamento de causas cíveis e criminais cujas decisões eram inapeláveis. A escolha dos juízes se fazia por sorteio entre os nomes constantes de uma lista elaborada pelos diferentes distritos.
A constituição ateniense derivada dos costumes e de leis esparsas assegurava a participação dos cidadãos nos negócios públicos. Esse tipo de constituição não se confunde com o modelo moderno advindo das revoluções americana e francesa: normas escritas reunidas em um código posto pelo detentor do poder constituinte conformando juridicamente o estado. No discurso fúnebre sobre os mortos da guerra do Peloponeso, Péricles manifesta o seu amor pela democracia ateniense: esta urbe quer que todos sejam iguais perante a lei; Atenas dá aos homens a liberdade e a todos abre caminho para as honras; ela mantém a ordem pública, assegura aos magistrados a autoridade, protege os fracos e a todos dá espetáculos e festas que são educação da alma. Eis aqui porque os nossos guerreiros preferiram morrer heroicamente a deixar que lhes tirassem essa pátria; eis, ainda, porque quantos sobrevivem estão sempre prontos a sofrerem por Atenas e a se lhe consagrarem.
O espírito ateniense de liberdade refletiu-se na cultura do mundo ocidental moderno e levou à queda do absolutismo e à ascensão da democracia na Europa e na América. Nos dias atuais, democracia já não é conceito exclusivamente político, mas também econômico e social. Trata-se de forma de vida onde os integrantes de uma comunidade ou instituição participam dos assuntos de geral interesse e as decisões são tomadas por maioria quando não há unanimidade. A democracia se tornou comum aos países capitalistas e socialistas. A diferença está no grau de liberdade e de igualdade vigente em cada país. A democracia se diz liberal onde é mais acentuada a liberdade e se diz social onde a igualdade é mais considerada. Na democracia moderna conjugam-se os valores sociais do trabalho com a livre iniciativa no campo econômico, segundo o espírito de solidariedade e justiça social, visando ao bem de todos, tendo por base a dignidade da pessoa humana e por meta a construção de uma sociedade fraterna e desenvolvida. 
No sistema democrático, as pessoas são livres para: (1) locomover-se no território do seu país; (2) exercer qualquer trabalho, ofício ou profissão; (3) ter, adquirir e alienar bens; (4) associar-se visando à consecução de objetivos comuns; (5) reunir-se pacificamente em locais públicos ou privados; (6) manifestar o pensamento e se expressar artística e intelectualmente; (7) dedicar-se à ciência, à filosofia e à religião; (8) praticar esportes e cultivar o corpo. A liberdade política do povo consiste no poder de: (i) organizar-se juridicamente; (ii) escolher os governantes; (iii) desobedecer e mudar o governo se necessário; (iv) realizar o bem comum; (v) buscar a felicidade geral.
Da atual perspectiva democrática, povo inclui homens e mulheres a partir de certa idade, com capacidade de escolher os governantes e de participar dos negócios de estado. Do ponto de vista sociológico, povo significa o conjunto das pessoas que vivem num mesmo território (povo brasileiro), ou sob uma crença religiosa (povo católico), ou sob certa cultura (povo indígena).
A palavra democracia frequenta assiduamente o discurso dos políticos. Exemplos recentes no Brasil e nos EUA mostram como os atores políticos violam diretamente ou contornam de modo despudorado os princípios morais e democráticos. Por meios escusos, opositores impediram: (1) a presidente do Brasil de se manter no cargo por ter expedido três decretos perfeitamente lícitos; (2) a candidata à presidência dos EUA de se eleger por ter expedido correspondência eletrônica perfeitamente regular quando exercia a função de Secretária de Estado.
A ética não tem vez no campo partidário, seja à direita, seja à esquerda do espectro político. Os atores exibem toda a sua bestialidade, tanto no hemisfério sul como no hemisfério norte. O jogo de interesses econômicos é de uma sujeira ímpar. As campanhas eleitorais são sórdidas e nelas gastam-se fortunas, imperam a fraude, a mentira, a hipocrisia, a malandragem. Nas eleições presidenciais dos EUA de 2016 dificultaram o voto de latinos e negros, eleitores potenciais de Hillary Clinton e estimularam o abstencionismo dos eleitores antipáticos a Donald Trump.
Naquele país, a escolha do presidente passa por dois momentos distintos. Primeiro, através do voto popular em todo o território nacional (pleito primário). Depois, através do voto de um colégio eleitoral (pleito secundário). O povo de cada estado federado designa um número de eleitores presidenciais igual ao número total de senadores e de deputados a que tem direito no Congresso Nacional. No mês de novembro tais eleitores são escolhidos por voto popular em cédulas gerais em cada estado federado. O conjunto dos eleitores presidenciais forma o colégio eleitoral. No mês de dezembro, nos respectivos colégios estaduais, esses eleitores presidenciais votam em duas pessoas (os dois candidatos à presidência da república mais votados pelo povo). Relação com os nomes dos candidatos e respectivas votações é enviada ao Senado. No dia 1º de janeiro, às 13,00 horas, as relações enviadas pelos estados federados são abertas e os votos contados em sessão conjunta do Senado e da Câmara dos Deputados. Será proclamado presidente o candidato que obtiver a maioria desses votos (Constituição dos EUA, artigo II, secção I, itens 2/4 + EC XII + lei de 05/06/1934).      
Os eleitores presidenciais (colégio eleitoral) costumam seguir a orientação dos seus partidos quanto ao resultado do pleito primário nos seus respectivos estados. Todavia, ante a forte e inusitada reação popular é possível que se abra exceção na eleição de 2016. Na soma dos votos do pleito primário a candidata democrata superou o candidato republicano. Entretanto, por ter vencido em maior número de estados federados, o republicano pode superar a democrata no colégio eleitoral e ser eleito presidente. Isto já aconteceu na história política estadunidense. Lincoln em 1860 e Wilson em 1921, não obtiveram a maioria dos votos populares no país, mas foram eleitos porque obtiveram maioria no colégio eleitoral.  
O Estado da Califórnia ameaça desvincular-se da federação norte-americana caso Trump seja eleito presidente. A ameaça pode ser real ou apenas meio de pressionar o colégio eleitoral. Se for real, outros estados poderão aderir ao separatismo, o que viabilizará nova e inimaginável guerra civil naquele país. Além disto, os parlamentares democratas prometem boicotar o novo governo e recusar entendimento com os parlamentares republicanos. Essa radicalização certamente não será saudável para a democracia americana e nem para os laços federativos. Interessante essa marcha separatista. Primeiro, a dissolução da união soviética. Depois, a secessão na união européia. Agora, a ameaça de secessão na união americana.     

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