sexta-feira, 7 de outubro de 2016

INOCÊNCIA PRESUMIDA

O Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão de 05/10/2016, por maioria dos seus juízes, fixou entendimento sobre o princípio da inocência presumida ao apreciar medida cautelar em duas ações nas quais se pleiteia a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) que assim dispõe: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade judiciária competente em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo em virtude de prisão temporária ou preventiva”. Os postulantes sustentam que esse dispositivo processual está em harmonia com o inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição da República, assim redigido: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Trânsito em julgado é a passagem do estado provisório de certeza gerado pela sentença judicial recorrível para o estado definitivo de certeza gerado pelo esgotamento da via recursal. 
No início deste ano, na sessão do dia 17/02/2016, o STF decidiu que o condenado pode ser preso antes do trânsito em julgado. Há 7 anos atrás, na sessão do dia 05/02/2009, o STF havia decidido que a prisão só podia ocorrer depois do trânsito em julgado, o que provocou a promulgação da lei 12.403/2011, que deu ao artigo 283 do CPP a redação acima transcrita. Nota-se redundância nesse artigo: ninguém poderá ser preso senão em virtude de prisão. Provavelmente, o legislador quis permitir prisão cautelar durante a investigação ou o processo desde que presentes os requisitos que a autorizam. Apesar do lapso, não creio que o legislador estivesse bêbado. Nota-se discrepância na postulação dos autores: tomaram como paradigma de uma norma legal relativa à prisão, norma constitucional relativa à culpabilidade. Creio que também eles não estavam bêbados.
Quando vigorava o artigo 393 do CPP, o juiz, ao condenar o réu, determinava a sua imediata prisão. O réu só podia apelar ao tribunal depois de preso. Esse artigo vigorou por 67 anos e 4 meses (outubro de 1941 a fevereiro de 2009), foi recepcionado pela Constituição de 1988 e dele cuidaram a jurisprudência e a doutrina. Com a decisão do STF de 05/02/2009, esse artigo perdeu a eficácia; com a lei 12.403/2011, esse artigo perdeu o vigor. A decisão do STF de 05/02/2016 retomou o rumo do vetusto artigo da lei processual com uma diferença: agora, o réu pode apelar em liberdade e será preso apenas se o tribunal de justiça (estadual ou federal) confirmar a sentença condenatória. O STF manteve esse entendimento na sessão de 05/10/2016. Houve convergência quanto ao vigor da norma sobre inocência presumida. A divergência entre os ministros foi quanto a extensão da norma. Segundo os votos vencedores, a presunção vigora só até a decisão do tribunal de justiça (estadual ou federal). Segundo os votos vencidos, a presunção vigora até o trânsito em julgado da sentença (quando o processo chega ao fim depois de exauridos os recursos cabíveis).
A norma constitucional da presunção de inocência há de ser lida dentro da oposição culpado x inocente e não da oposição liberdade x prisão. Se a norma constitucional fosse orientada pela oposição “liberdade x prisão”, estaria assim redigida: “ninguém será preso antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. As regras da prisão cautelar, da prisão definitiva e da liberdade provisória não se confundem com as regras da culpabilidade relativas aos juízos de absolvição e de condenação. Se o réu for condenado pelo juiz e a sentença for confirmada pelo tribunal, não se cuidará mais de presunção de inocência e sim de certeza da culpa.
A presunção de inocência é axioma da ciência jurídica ocidental que no plano dos fatos vale até prova em contrário. Esse axioma resultou da necessidade de frear a violência cometida por reis, senhores feudais e juízes europeus contra a liberdade e o patrimônio das pessoas. Tal axioma informa as leis fundamentais de vários países; no Brasil, alicerçou os direitos individuais declarados na Carta Imperial (1824) e nas constituições republicanas de 1891, 1934, 1946 e 1988.  
Na ciência jurídica, o axioma paira na esfera dos princípios. Na esfera dos fatos, nem todo réu é inocente; há réu culpado. Nos estados democráticos, o réu goza das garantias do contraditório, da ampla defesa e do juiz natural. Na sentença penal condenatória o juiz declara o réu culpado; em consequência, apoiada na prova, a certeza do juiz substitui a presunção. Se o juiz for arbitrário, o réu dispõe: (I) do habeas corpus e outros recursos para se defender; (II) da via administrativa para aplicar sanção disciplinar ao juiz.   
As garantias da inocência presumida e do devido processo limitaram, na esfera jurídica, o poder dos governantes lato sensu (legisladores, reis, presidentes, ministros, juízes). Essas garantias foram consagradas em diversos documentos no curso da história: (1) Magna Charta Libertatum (Inglaterra, 1215): “Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país”. (2) Petição de direito (Inglaterra, 1628): “Nenhum homem livre pode ser detido ou preso ou privado dos seus bens, das suas liberdades e franquias, ou posto fora da lei e exilado ou de qualquer modo molestado, a não ser por virtude de sentença legal dos seus pares ou da lei do país”. (3) Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris, 1789): “Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado”. (4) Constituição dos EUA (aditamento de 1789): “Ninguém será forçado a testemunhar contra si próprio em processo criminal, nem privado da vida, liberdade ou propriedade sem observância dos trâmites legais; em todos os processos criminais o argüido terá direito a julgamento público por um júri imparcial”. (5) Constituição belga de 1831: “Ninguém será perseguido senão nos casos previstos por lei e na forma que a lei disponha; salvo em caso de flagrante delito, ninguém pode ser detido senão em virtude de ordem motivada de um juiz”. (6) Lei constitucional austríaca de 1862: “A detenção de uma pessoa só poderá ocorrer em virtude de ordem judicial motivada”. (7) Constituição italiana de 1947: “A liberdade pessoal é inviolável. Não se procederá à detenção, inspeção ou registro pessoal nem a qualquer outra restrição da liberdade pessoal, salvo por ordem motivada da autoridade judicial e unicamente nos casos e pelo modo previstos em lei”. (8) Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948): “Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. (9) Lei fundamental alemã de 1949: “A dignidade da pessoa humana é sagrada. Todos os agentes da autoridade pública têm o dever absoluto de respeitá-la e protege-la. A liberdade da pessoa é inviolável. A liberdade pessoal só se poderá limitar em virtude de uma lei formal e com observância das formalidades por ela prescritas. Só o juiz poderá se pronunciar sobre a procedência e continuação da privação da liberdade”. (10) Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José da Costa Rica, 1969): “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários”. (11) Constituição soviética de 1977: “Aos cidadãos da URSS é garantida a inviolabilidade pessoal. Ninguém poderá ser detido senão por mandado judicial ou com autorização do fiscal”. (12) Constituição chinesa de 1984: “A liberdade pessoal dos cidadãos da República Popular da China é inviolável. Nenhum cidadão pode ser preso, salvo com a aprovação ou por decisão de uma procuradoria do povo ou ainda por decisão de um tribunal popular”.
Nenhum desses documentos exige o trânsito em julgado para que a sentença penal condenatória seja executada. No Brasil, a certeza que emana da sentença penal monocrática é exclusiva do juiz. A certeza que emana da decisão penal colegiada é do tribunal, irradia-se aos jurisdicionados e afasta a presunção de inocência. A partir daí, a questão de fato encerra-se na preclusão, prepondera o dever do Estado de punir os criminosos e prevalece o interesse da sociedade sobre o interesse do condenado. A pena é executada enquanto o condenado eventualmente discute a questão de direito na instância especial ou extraordinária. Na hipótese de a decisão do tribunal ser teratológica, ou simplesmente contrária à Constituição, o condenado poderá, mediante habeas corpus, obter a suspensão da execução da pena.

Nenhum comentário: