quinta-feira, 20 de outubro de 2016

REBELIÃO CONTRA DEUS

Em artigo publicado no Jornal do Brasil eletrônico de 16/10/2016, intitulado “Deus, onde estavas naquele momento? Por que não acalmaste o tufão Mathews?”, o teólogo Leonardo Boff aborda o tema das invectivas contra deus, motivadas por danos materiais e pessoais causados aos humanos pelos fenômenos da natureza. O teólogo cita como exemplo da aparente injustiça divina os tufões Katrina e Matews que recentemente assolaram os EUA e o povo pobre, negro e sofrido do Haiti. Por amor ao debate construtivo, tratarei do mesmo tema, citarei os mesmos personagens (Jeremias, Jó e Jesus) e o mesmo salmo 44 da Bíblia, porém sob a ótica mística despregada dos dogmas das religiões judaica, cristã e islâmica.

Preliminares. Noto, inicialmente, que as perguntas acima perdem sentido ante a onipresença de deus e a inflexibilidade das suas leis: deus está em toda parte o tempo todo, não revoga e nem contraria as suas próprias leis (enquanto os humanos mudam as leis pelos mais diversos interesses). Noto, ainda, que os tufões desgraçaram tanto o povo branco e rico (EUA) como o povo negro e pobre (Haiti), o que demonstra a neutralidade das forças da natureza.   

Jeremias. Profeta judeu que iniciou o seu ministério quando Josias era rei em Jerusalém, época em que o Deuteronômio (texto legislativo bíblico) foi achado nas ruínas do templo (620 a.C.). Jeremias denunciou a falsidade dos profetas judeus e israelitas. Ao interpelar deus, ele coloca em dúvida a justiça divina: vós sois sumamente justo, Senhor, para que eu entre em disputa convosco. Entretanto, em espírito de justiça, desejaria falar-vos; por que alcançam bom êxito os maus em tudo quanto empreendem? E por que razão os pérfidos vivem felizes? Vós os plantastes e eles criam raízes, crescem e frutificam. Ao se referir à ingratidão de Israel, diz que o povo assim reclamava: Onde está o Senhor que nos fez sair do Egito, guiando-nos através do deserto, terra de desolação e abismos, terra de aridez e trevas, onde homem algum habita?  

Jó. Personagem central de um drama narrado no livro sapiencial que leva o seu nome contido no Antigo Testamento (Bíblia). Jó tem o perfil do judeu daquela época (500 a.C.), que se julga vítima dos infortúnios do mundo e os atribui à vontade de Javé, um deus cruel e impiedoso. Jó perdeu todos os filhos e todos os bens, ficou doente, se achava injustiçado e atribuiu suas desgraças à vontade desse deus: As setas do todo-poderoso estão cravadas em mim e meu espírito bebe o veneno delas; os terrores de deus me assediam; que mal te fiz, ó guarda dos homens? Por que me tomas por alvo e me tornei pesado a ti? Por que não toleras meu pecado e não apagas a minha culpa?

Jesus. Profeta galileu cuja vida está narrada nos evangelhos que formam o Novo Testamento (Bíblia), anunciava a desgraça: Dias virão em que destas coisas que vedes não ficará pedra sobre pedra; tudo será destruído. Também ele formulou suas queixas no Getsêmani (monte das oliveiras) e no Calvário (Golgota). Lá, antes da crucifixão, pedira a deus que dele afastasse aquele cálice (o padecimento nas mãos das autoridades judias): O espírito está pronto, mas a carne é fraca. Meu pai, se não é possível que este cálice passe sem que eu o beba, faça-se a tua vontade. Cá, ao ser crucificado, questionou o Pai Celestial: Meu deus, meu deus, por que me abandonaste? Pai, nas tuas mãos, eu entrego o meu espírito. Está tudo consumado

Salmos. Louvores, lamentações, cânticos e poemas de diversos autores compõem os salmos (ou saltério), livro de oração dos judeus que consta do Antigo Testamento e que foi adotado pela Igreja Católica. O salmo número 43 (texto latino) ou 44 (texto hebraico) é uma sequência de versos sobre: (i) os fatos gloriosos do passado, quando o deus Javé protegeu e proporcionou riqueza ao povo hebreu, e (ii) o infortúnio da nação judia no presente (desterro na Babilônia): Era em deus que em todo o tempo nos gloriávamos; o seu nome nós sempre celebrávamos. Agora, porém, nos rejeitais e confundis e já não ides à frente dos nossos exércitos, vós nos fizestes recuar diante do inimigo e os que nos odiavam pilharam nossos bens. Entregastes-nos como ovelhas para o corte e nos dispersastes entre os pagãos. Vendestes vosso povo por preço vil. Fizestes de nós a sátira das nações pagãs. Por vossa causa somos entregues à morte todos os dias e tratados como ovelhas de matadouro. Acordai Senhor! Por que dormis? Despertai! Não nos rejeiteis continuamente! Por que ocultais a vossa face? E esqueceis nossas misérias e opressões? Levantai-vos em nosso socorro e livrai-nos pela vossa misericórdia.   

Comentário. As catástrofes naturais (tufões, ciclones, terremotos, maremotos) destroem vidas e bens das pessoas indistintamente. As vitimas se consideram injustiçadas e levantam suas vozes contra deus. Por imaginarem deus onipotente, onipresente e onisciente, as vítimas consideram-no também responsável pelas desgraças causadas por esses fenômenos da natureza. A desilusão está na base dessa rebelião contra deus. A decepção das vítimas se deve à ideia que fazem de deus, como um ser antropomórfico ou como “alguém” ocupando lugar no espaço e vivendo eternamente, poderoso, amoroso, justo, sábio e misericordioso, sempre voltado para o bem individual de cada ser humano, pronto para intervir nos assuntos do mundo terreno para o bem coletivo da humanidade. Essa crença na intervenção direta de deus na vida individual e coletiva dos seres humanos é produto da fantasia. O desígnio especial de deus em relação ao planeta Terra e seus habitantes é fruto da imaginação e das expectativas humanas. Quanto mais tomamos consciência dos milhões de galáxias existentes no universo e de que o nosso minúsculo planeta situa-se em um pequeno sistema solar no cantinho de uma delas (Via Láctea), mais nos convencemos dessa dura realidade. As leis divinas e naturais funcionam de modo automático, inflexível e por tempo indeterminado, desde a criação do mundo, sem necessidade da direta intervenção de deus na dinâmica universal. Deus não toma partido nas disputas e nos negócios humanos. Homens e mulheres são os únicos e diretos responsáveis por suas ações e omissões, livres para praticar o bem e o mal e arcar com as consequências boas e más. A justiça divina realiza-se através do mecanismo da lei do karma. A intervenção do deus Javé (de Moisés), do Pai Celestial (de Jesus), do deus Alá (de Maomé), ou de qualquer outro deus ou deusa é tão somente desejo de quem se sente impotente ou perplexo diante da magnitude do universo, dos fenômenos da natureza e das contradições, desigualdades e injustiças sociais; desejo de quem, vítima do medo, da ignorância ou da autoridade mundana, pede ajuda transcendental ou recorre à autoridade divina. 

Deus e o Homem. É possível que deus nada seja do que imaginam e dizem os profetas e os líderes religiosos. As escrituras sagradas mais parecem contos da carochinha, como disse Einstein. É possível que deus não tenha forma alguma, não seja “alguém”, nem tenha os predicados que os humanos lhe atribuem. É possível que deus seja energia pura, imanente e ao mesmo tempo transcendente à matéria, energia que dá vida ao universo e luz aos seres pensantes. O humano nasce, cresce, reproduz e morre como os demais seres vivos, submetido às mesmas leis da natureza. Por ser racional e criar o seu próprio mundo encravado no mundo da natureza, o humano pensa que deus lhe reserva um destino especial, ideia pretensiosa ditada pela vaidade e pela insegurança e que repousa no doce mundo da ilusão. Sobre a dimensão espiritual do mundo há tão somente opiniões, às vezes equivocadas ou maliciosas, e experiências extáticas individuais. O acesso a deus talvez seja possível pela harmonização cósmica de quem se prepara com a mente arejada, coração limpo e humilde. Nesse caso, é possível que haja resposta divina (iluminação espiritual) durante o êxtase, a orientar o buscador sincero.

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