terça-feira, 22 de novembro de 2016

LIBERDADE

A palavra liberdade frequenta assiduamente o discurso dos juristas significando um bem essencial. Vida livre é vida sem percalços. Entretanto, desde o nascimento o indivíduo entra num mundo repleto de regras e de situações que tolhem a sua vontade e os seus movimentos no lar, na escola, na empresa, na repartição pública, na igreja, na via pública como pedestre ou condutor de veículos, no ar como piloto de aeronave, na paz e na guerra. O sujeito tem liberdade para contrariar as regras, o que poderá lhe trazer dissabores se sucumbir diante da resistência da autoridade, ou satisfação caso a supere. Sem resvalarmos na ironia de Pilatos, podemos indagar: afinal, “o que é liberdade”?
Parece razoável conceituá-la como o estado ou a condição do que, ou de quem, pode se mover no tempo/espaço e manifestar suas potencialidades sem amarras. A energia fundamental que criou a matéria, que gerou e expandiu o universo, atua com liberdade absoluta, atributo exclusivo de deus. Sob esse aspecto, liberdade é poder. Os seres do universo, submetidos que estão ao determinismo das leis naturais, gozam de liberdade relativa. O voo do pássaro, poético símbolo da liberdade, não vai além da altura, da distância, do trajeto e da região a que está determinado pelas leis da natureza (exceto a ousada aventura de Fernão Capelo Gaivota). O pássaro perde a sua relativa liberdade quando engaiolado ou preso em armadilha. Vivendo cada qual no seu habitat, a onça se alimenta de carne e a girafa de folhas; aquela é livre para caçar e esta livre para coletar, segundo as suas naturais habilidades. No rio, no lago ou no mar, determinado a viver na água doce ou na água salgada, o peixe perde a sua relativa liberdade quando é pescado. O curso do rio segue livre enquanto não há canais e barragens.  
Na esfera humana, liberdade significa basicamente a ausência de óbices e restrições aos movimentos, à vontade e às ideias do indivíduo, dos grupos e das nações. O ser humano tem a natural necessidade de agir, realizar sua vontade, manifestar seu pensamento, expressar seus sentimentos. A função normativa da consciência (ou função legisladora da razão) regula essa necessidade. A paixão humana por beleza, justiça, verdade, bondade, santidade, leva as pessoas a valorizarem o belo, o justo, o verdadeiro, o bom, o santo. Fundados nesses valores e no exercício da liberdade e da função ordenadora da razão, os humanos ditam as leis sociais e, a seguir, a elas condicionam as suas condutas; determinam a si próprios socialmente: legisladores na criação e sistematização das normas; legislados na obediência a essas mesmas normas. Liberdade disciplinada pelo direito em nome da certeza e da segurança nas relações sociais.
A pessoa está submetida ao mesmo tempo às leis da natureza e às leis da sociedade. Além desse determinismo natural e cultural, há outros óbices à liberdade pessoal, tais como: deficiência mental e física da pessoa, lavagem cerebral, pressão da opinião pública, governantes autoritários, regimes políticos totalitários.
A liberdade política consiste na possibilidade efetiva de o cidadão exercer a soberania, organizar o estado, escolher os governantes, elaborar as leis e participar da administração pública. Na sociedade democrática, juridicamente organizada, a liberdade consiste no poder do cidadão de: (i) converter em ato suas potencialidades físicas, intelectuais, morais e espirituais vencendo indevidas resistências; (ii) pensar, querer e agir sem subordinação às ideias, à vontade e às crenças de outrem; (iii) escolher o que lhe parece necessário, útil ou agradável, sem intervenção compulsória do estado ou de terceiros; (iv) controlar a autoridade pública. 
Grávida de liberdade, a nação exige a contenção da autoridade. No coração da juventude, a liberdade palpita com mais vigor e esperança; na maturidade, a atitude é mais conservadora. Em que pesem os determinismos, as deficiências e outros óbices, a liberdade humana não perde a sua criatividade e nem o sentido de independência em relação à sociedade. Como força psíquica, a liberdade desvencilha o humano da submissão. O indivíduo é capaz de transcender as ideias, os costumes e as coisas do seu tempo e do seu mundo. Descobre coisas e técnicas, expõe novas ideias ou as velhas com novas roupagens, abre novos rumos, amplia horizontes. Isto, às vezes, implica desvio do caminho trilhado pela maioria, contorno das regras vigentes, revisão dos conceitos e preconceitos em voga, o que exige coragem, desprendimento e persistência. Pessoas criativas e inovadoras sofrem a resistência dos seus contemporâneos. Disto, no campo das ideias e da ação, Sócrates, Jesus, Bruno, Galileu, Joana, Gandhi, são exemplos bem conhecidos.
Ao exercer livremente a sua vontade, o indivíduo se sujeita às boas e às más consequências. Ele pode antecipar a morte sua ou a do outro através do suicídio ou do assassinato, alimentar-se de gafanhotos embora dispondo de saborosa picanha, viver como anacoreta apesar do seu instinto gregário, isolar-se num mosteiro embora tendo família, transar com o marido da vizinha, apropriar-se do patrimônio alheio, ofender, mentir, enganar, usar de violência ou de esperteza.
A conduta dos cidadãos está sujeita aos deveres morais e jurídicos. Ultrapassados os limites legais, o indivíduo poderá perder a liberdade e os seus bens por decisão da autoridade pública no devido processo jurídico. A liberdade se expressa como direito do indivíduo de não ser preso e nem expropriado do que legitimamente lhe pertence. A autoridade não poderá privá-lo desse direito antes de instaurar o regular processo na forma da lei. Considera-se regular o processo instaurado e presidido de modo imparcial pela autoridade competente, motivado por fato que a lei considera ilícito, devidamente provado, onde seja respeitado o contraditório e o acusado disponha de ampla defesa até o julgamento final.
De modo abusivo, sem freios morais e jurídicos, a liberdade tem sido exercida impunemente em proveito de indivíduos e grupos, tanto no setor público como no âmbito privado. O liberalismo econômico descambou para o individualismo possessivo, submetendo a maioria da população à minoria rica e ao empobrecimento. A submissão implica redução total ou parcial da liberdade. As pessoas são livres para contratar, mas ao fazê-lo, reduzem a sua liberdade ante as obrigações assumidas; além disto, a parte frágil fica à mercê da parte forte. A liberdade econômica é mais proveitosa ao dono do capital do que ao detentor da força de trabalho, mais ao empregador do que ao empregado, mais ao locador do que ao locatário, mais ao comerciante do que ao consumidor.
Da liberdade política aproveitam-se os estelionatários, os corruptos, os amorais, para iludir o povo e se encastelar no governo, usufruindo do erário, das negociatas e das mordomias, embriagando-se com os eflúvios magnéticos do poder. Quanto mais o estado intervém na atividade econômica e social, mais decresce a liberdade e mais cresce a tirania, embora o intervencionismo e o planejamento estatais sejam necessários para mitigar os efeitos desumanos do liberalismo exorbitante. 
As liberdades humanas consagradas na ordem jurídica de um estado democrático limitam formalmente o poder do governante. No ensaio On Liberty, John Stuart Mill, político inglês do século XIX, diz, numa conceituação restrita, que a liberdade consiste na proteção contra a tirania da opinião e do pensamento dominantes e a dos dominadores políticos. Existe limite à interferência da opinião coletiva em relação à independência individual. Determinar esse limite é tão indispensável à liberdade do indivíduo quanto a proteção contra o despotismo político.

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