quarta-feira, 30 de novembro de 2016

IGUALDADE

A igualdade é uma das colunas da democracia ao lado da liberdade, da fraternidade e da soberania popular. De reconhecido valor existencial humano por sua fundamental importância para as relações sociais, econômicas e políticas no mundo contemporâneo, essas quatro colunas revestem-se de forte colorido emocional, além do seu significado ideal e do seu sentido prático.
A igualdade resulta da observação dos fatos e da operação da inteligência quando estabelece relação entre coisas que apresentam a mesma forma e/ou o mesmo conteúdo (conformidade, paridade), numa avaliação quantitativa e/ou qualitativa. Igualdade matemática resulta da relação entre duas ou mais grandezas expressa em números (aritmética) ou em letras (álgebra) sinalizada com dois pequenos traços paralelos nas operações de adição, subtração, multiplicação e divisão (2 + 2 = 4; a + b + c = y). A igualdade matemática serve de parâmetro ao ideal de justiça. A igualdade geométrica tem magnífico poder entre deuses e homens, segundo Platão (in Gorgias).
Igualdade também pode ser definida como: (1) ausência de diferença na qualidade e/ou quantidade das coisas comparadas; (2) ajuste perfeito de uma coisa a outra; (3) coincidência de todas as partes dos objetos entre si comparados (identidade). Considera-se igual, tudo o que: (i) está no mesmo nível, na mesma posição, na mesma altura, no mesmo comprimento, na mesma largura; (ii) é da mesma natureza ou do mesmo valor; (iii) se executa do mesmo modo; (iv) se mantém inalterado, imperturbável. Dizemos, por exemplo, que se mantém igual: (a) o composto químico onde não se nota reação alguma no tempo; (b) a temperatura contínua no mesmo grau; (c) a opinião que se repete.
No mundo da natureza (criado pelo ser divino) reinam desigualdade e mudança. Diferentes águas, terras, climas, estações, ciclos. À distância, as árvores de um bosque parecem iguais; vistas de perto, exibem suas nuances (forma, cores, floração, frutos). Na árvore não há uma folha idêntica à outra; a semelhança esconde a diferença. Há diversidade nas plantas e nos bichos: famílias, gêneros, espécies e tipos diferentes. A igualdade está na incidência das leis naturais que regem os fenômenos (causalidade, gravidade, sexualidade, reprodução, atração, repulsão, agregação, dissolução). Além da diferença básica entre os sexos, os humanos são desiguais na compleição física, na saúde mental, na vitalidade, na cor, na raça, na sensibilidade, na vocação, no talento, na inteligência, no conhecimento, na visão de mundo, no nível de espiritualidade. Até irmãos gêmeos exibem diferença, ainda que seja nos detalhes.
No mundo da cultura (criado pelo ser humano) também reinam desigualdade e mudança. Diferem os costumes, os gostos, as crenças, os idiomas, as artes, as economias, as ideologias, os regimes políticos. Há grupos poderosos e grupos fracos, legítimos e criminosos, pacifistas e terroristas. Elites cultas e massas ignorantes. Nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, cosmopolitas e imperialistas, solidárias e egocêntricas, religiosas e laicas.
A desigualdade é atenuada e compensada por uma igualdade ética e jurídica posta pela comunidade civil e religiosa. Tal igualdade é postulado da razão prática na esfera social, econômica e política, visando à eficácia da ideia e do senso de justiça. A doutrina estoica romana, encampada pela igreja cristã, referia-se a uma comunidade universal em que todos os homens convivessem livres e iguais. Utopia. A igualdade é um bem que o indivíduo traz no coração, que não pode ser fotografado porque é interno, mas pode ser sentido num aperto de mão, num abraço fraternal, e percebido nas obras, nos serviços, no pensamento sincero.
Apesar das desigualdades naturais e sociais, das competições e rivalidades, as pessoas se igualam em determinadas situações e circunstâncias no quadro do direito. A igualdade é exceção elaborada pelos humanos diante de circunstâncias históricas. No espírito de justiça, convencionou-se que todos têm igual direito à vida, ao bem-estar e à felicidade. Equidade e paridade de forças orientam a pretensão e o agir de indivíduos, grupos e nações.
Quanto mais se alarga a igualdade, mais ampla se torna a democracia. Na civilização ocidental, a igualdade resultou da conquista, ora de uma classe, ora de outra, segundo as vicissitudes históricas. Abriu-se ensejo para que os cidadãos, moral e intelectualmente qualificados, usassem da palavra nas assembleias populares e debatessem publicamente os negócios do governo (isagoria). O pleito por igualdade, na Europa e na América, foi provocado: (1) nos séculos XVII e XVIII, pelo despotismo das autoridades eclesiástica e secular; (2) nos séculos XIX e XX, pela selvageria dos capitalistas.
A igualdade política na Europa foi conquistada sucessivamente: (1) pelos reis em face do papa; (2) pelos nobres em face dos reis; (3) pelos burgueses em face dos nobres; (4) pelos proletários em face dos burgueses. O governo foi passando de uma classe à outra até chegar ao modelo democrático, quando o poder político passou formalmente para as mãos do povo. Inicialmente, “povo” era a burguesia. Terra (campo) e dinheiro (cidade) eram as bases materiais do poder político. Depois, o proletariado industrial reagiu e lutou por: (i) igualdade de direitos políticos; (ii) segurança econômica e justiça social que lhes permitisse o exercício eficaz desses direitos; (iii) distribuição igualitária da riqueza e da renda nacional. Mediante eleição, o povo escolhe os legisladores e os chefes de governo. No processo eleitoral, satisfeitos os requisitos legais, há igualdade entre os eleitores: cada qual um voto; cada voto, igual valor; homens e mulheres podem votar e ser votados.
A igualdade política não implica exercício do poder por todos no mesmo grau. Importa que o poder seja exercido em conformidade com a constituição elaborada pelo povo. Paralelamente, conquista-se a igualdade jurídica (isonomia): todos são iguais perante a lei. Elaborada pelo povo, a lei deve ser igual para todos e de caráter geral. Justiça prestada imparcialmente, normas interpretadas e aplicadas sem discrepar do tratamento dado aos casos semelhantes. Todos os cidadãos igualmente sujeitos aos encargos públicos na proporção dos seus bens e rendimentos. Benefícios distribuídos pelo estado proporcionalmente à situação de cada indivíduo, aos seus méritos e necessidades. Ausência de privilégios decorrentes do nascimento, do sexo, da raça, do patrimônio, do nível cultural. Há exceções: (1) imunidades e prerrogativas dos agentes políticos (legisladores, chefes de governo, magistrados) necessárias ao soberano desempenho das suas elevadas funções; (2) acesso a certos cargos públicos exclusivamente para nacionais natos (exclusão de nacionais naturalizados e de estrangeiros); (3) casos especiais regulados por leis específicas: tratamento igual para casos iguais, desigual para casos desiguais na medida em que se desigualam (no Brasil, são exemplos: a lei Maria da Penha e a lei de cotas para estudantes negros na universidade). Preenchida a capacitação prevista em lei, todos têm igual direito de acesso aos cargos públicos (isotimia).
No campo econômico, a igualdade é possível entre os ricos e, também, possível entre os pobres, mas ricos e pobres são desiguais. Em abstrato, permite-se a igual participação de todos na produção, circulação e consumo de bens sem distinção de classe, sexo, raça ou credo. A todos é permitido o acesso à propriedade móvel e imóvel, desde que disponham de meios e modos legítimos de aquisição e desfrute. Sob a égide do princípio igualitário o estado: (1) facilita o crédito à camada mais desafortunada da sociedade para aquisição de bens úteis e necessários; (2) socorre as empresas descapitalizadas na salvaguarda da livre concorrência e em defesa contra o monopólio; (3) combate a inflação e a depressão; (4) assegura aos trabalhadores a participação nos lucros e na administração das empresas; (5) regulamenta a herança a fim de evitar o excesso de riqueza individual não resultante do trabalho e esforço do herdeiro. As empresas podem negociar com o estado (obras, serviços, locação, compra/venda), segundo as regras da licitação pública. Essas regras ferem o princípio igualitário quando, por subterfúgios, favorecem um concorrente em detrimento dos demais concorrentes.
A igualdade que alicerça a justiça social e visa ao bem-estar da população estendeu-se à família: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Em igualdade de condições e paridade de forças, atendidas as qualificações e condições postas em lei, todos podem: (1) exercer qualquer trabalho, ofício ou profissão; (2) ter acesso à informação; (3) receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral; (4) apresentar petições às autoridades públicas; (5) ingressar em estabelecimento público, nele permanecer e dele sair; (6) matricular-se em escola pública, frequentar as aulas, prestar os exames e obter o certificado de conclusão do curso; (7) capacitar-se nas áreas científica e tecnológica; (8) ter acesso às fontes da cultura do seu país.   
Na América Inglesa, após a independência das colônias, os novos estados adotaram e se mantiveram fiéis ao modelo republicano democrático. As liberdades públicas foram enunciadas, inclusive o princípio da igualdade jurídica. A escravidão negra foi mantida por longos anos. Abolida a escravatura, os negros foram segregados. A igualdade racial não tem lugar na democracia branca. A situação melhorou após a campanha do ativista Martin Luther King, o que tornou possível até eleição de um negro para a presidência da república (Barak Obama).
Na América Latina, após a independência das colônias, os novos estados não se mantiveram fiéis ao modelo republicano democrático. Apesar de enunciadas, as liberdades públicas são desrespeitadas e os golpes de estado são frequentes; democracia e autocracia se alternam. País latino-americano, o Brasil não é diferente, apesar da sua dimensão continental. Conquistada a independência, o estado brasileiro seguiu o modelo da monarquia constitucional da Europa, inclusive com a declaração de direitos individuais. O governo imperial durou 67 anos (1822 a 1889). Golpeada a monarquia pelos militares, implantou-se o modelo republicano (1889 a 2016). A democracia brasileira entra na ciranda dos golpes de estado comum às apelidadas “republicas de bananas”. O golpe mais recente ocorreu em agosto de 2016, sob os auspícios dos EUA, desferido por gentalha ímpia, desprovida de espírito patriótico, que não conhece virtude e, se conhece, não a pratica. O princípio igualitário mostrou-se vigoroso apenas nos governos Vargas, Goulart, Silva e Rousseff. Nos demais governos, o princípio igualitário padece de anemia. Prepondera o liberalismo econômico, capitaneado pelo capital financeiro, sob cujo poder atuam legisladores, chefes de governo, magistrados  e o alto escalão civil e militar. 

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