quarta-feira, 26 de outubro de 2016

DIÁLOGO

AMINTHAS – A análise da técnica de projetar a alma fora do corpo supõe o questionamento da razoabilidade: (1) das teorias e doutrinas da ciência, da filosofia e da religião; (2) do conhecimento vulgar derivado das crenças e dos costumes; (3) das normas éticas postas pela sociedade. Servindo-nos do método cartesiano, colocamos em dúvida a dualidade corpo + alma e a projeção da alma, a fim de apurarmos o que há de verdadeiro ou falso nessas expressões. 
ZENO – Ainda que justificado pela razoabilidade, o questionamento referido por você desperta ódio, provoca reações hostis e violentas, inclusive guerras, ativa o lado demoníaco dos seres humanos. Os significados divergem ante a ambiguidade das palavras, a pobreza do vocabulário e as diferentes estruturas mentais e visões de mundo dos humanos. De um modo geral, entende-se: (1) por corpo humano, a constituição física, individualidade material de cada homem e de cada mulher; (2) por alma, a parte imaterial do homem e da mulher, a energia que lhes dá vida, inteligência, vontade, sensibilidade e lhes proporciona consciência de si mesmo e do mundo exterior; (3) por projeção astral, o lançamento da alma para fora do corpo mediante alguns procedimentos, tais como: posição estática do corpo, relaxamento muscular, olhos cerrados (hindus fixam o olhar no umbigo, região do plexo solar), ambiente tranquilo, mantras ou música para facilitar a introspecção. Assim como na hipnose, na projeção astral o córtex cerebral fica obliterado. Desse modo, o místico pretende, sem o invólucro físico, chegar a algum lugar no mundo material ou entrar no mundo espiritual e ficar ciente do que lá encontrar.
A – Lançar a alma fora do corpo equivale ao suicídio, pois sem energia, o corpo morre. Na projeção astral descrita por você, o corpo permanece vivo. Então, só parte da alma é lançada. Posto que, nos procedimentos citados, o indivíduo se utiliza da inteligência e da vontade, penso que só a consciência é lançada. Logo, projeção astral e expansão da consciência equivalem-se.
Z – O teu raciocínio exige ponderação, Aminthas. A alma é dúctil, ela se elastece e se estende para qualquer direção mantendo intactas as suas propriedades.
A – Meu caro Zeno, se a alma for elástica, exigirá suporte físico. Pensamento e sensibilidade, por exemplo, têm o cérebro e os nervos como suportes físicos. A característica dúctil da alma supõe alguma substância plasmática de frequência vibratória imperceptível aos sentidos.
Z – A luz viaja no espaço/tempo, nem todos a percebem, mas aceitam a ideia de que ela é composta de ondas e partículas. A alma também é energia ondulatória semelhante à luz.
A – O ar é o meio gasoso através do qual a luz se propaga. Qual o meio no qual a alma se propaga? Não é melhor falarmos em expansão da consciência?
Z – Tratar a projeção como expansão da consciência me parece aceitável, uma vez que a consciência é função cognitiva própria do ser vivo e um atributo da alma.
A – Essa expansão pode acontecer involuntariamente? Lembro de casos de morte e ressurreição em que os pacientes narram experiência pela qual passaram fora do corpo. Assim, também, pessoas que adormeceram e sentiram-se fora dos seus corpos na casa em que estavam. Destarte, penso que a projeção astral involuntária pode resultar da atividade cerebral de quem está adormecido. A consciência, nesse caso, talvez não vá além do mundo natural e social. No que tange à projeção astral voluntária para além do mundo material, penso tratar-se de ilusão criada pela ideia fantasiosa que o agente faz do mundo espiritual. Tal projeção será semelhante à ilusão de ótica: o mundo espiritual surge como a miragem no deserto. O agente interpreta a miragem como sendo o arquétipo do mundo material, nos moldes platônicos.  
Z – Sobre o arquétipo, dizem os místicos: “Como em cima é embaixo”. A estrutura do visível (sistema solar) é réplica do invisível (átomo). Ao contrário de você, penso que voluntária ou involuntariamente, a consciência vai além do mundo material. Na viagem, o navegante tanto pode sonhar como vivenciar uma realidade.
A – Admito a possibilidade da expansão da consciência no mundo material, pois é nele que o ser humano vive prisioneiro do tempo/espaço. Mas, o que eu quero mesmo saber exige antes uma explicação: o que dá vida a esse universo? Refiro-me à gênese da matéria e não apenas ao fenômeno biológico próprio dos vegetais e animais; refiro-me à vida como energia criadora do universo que o mantém em movimento e transforma-o incessantemente.
Z – A tua pergunta já veio com a resposta. O que dá vida ao universo é essa energia criadora à qual você se referiu. Os místicos chamam-na de alma universal. Assim como a atmosfera envolve o nosso planeta, a alma universal envolve o mundo material e o faz pulsar.
A – Essa energia gera a si mesma ou provém de alguma fonte? Deixemos essa questão em suspenso para reflexão. Enquanto isto, eu gostaria de explorar a extensão da alma que você mencionou. Se o universo está no interior da alma e se o homem está no interior do universo, então o homem está no interior da alma. Imagem geométrica ajuda a visualizar o raciocínio: três círculos concêntricos, o maior representando a alma, dentro dele o círculo médio representando o universo, dentro do círculo médio o círculo pequeno representando o humano. Vê-se, então, meu estimado Zeno, que o homem não pode lançar fora de si mesmo o que fora já está. Após a morte do corpo, resta apenas a energia que o estruturava e o mantinha vivo (o círculo maior). “Porque tu és pó e em pó te hás de tornar”, disse deus a Adão. “Em a natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, disse Lavoisier. “A matéria é energia concentrada”, disse Einstein.
Z – A tua lógica é sedutora, Aminthas, porém, falta uma premissa essencial ao teu argumento. A projeção não é da alma universal e sim da personalidade que ela gera ao animar o corpo desde o nascimento. A personalidade anímica gerada é cônscia de si mesma e capaz de expandir a sua consciência tanto para o mundo material como para o mundo espiritual. 
A – Você acaba de introduzir um terceiro elemento na equação inicial. A nova premissa não muda a essência do  meu argumento. Estávamos no binômio: corpo + alma. Agora, estamos no trinômio: corpo físico + personalidade anímica + alma universal. Percebo que esse trinômio está na base de doutrina a cujos seguidores você conforta: o corpo se decompõe, a personalidade anímica evolui e a alma universal permanece idêntica a si mesma.
Z – Esse terceiro elemento ergue um novo problema que estimula a razão, pois você certamente perguntará: a personalidade é material ou espiritual? O processo evolutivo tem algum propósito? A minha resposta é a seguinte: a personalidade tem as duas naturezas enquanto encarnada e está sujeita à lei da evolução e da reencarnação. Estou ciente de que esse entendimento coloca em xeque a dualidade corpo + alma e encaminha o assunto para uma compreensão holística.   
A – Realmente, Zeno, a pergunta brotou na minha cabeça. Acho a tua resposta problemática. Admitindo a existência da personalidade anímica consciente de si mesma, eu penso que ela evolui enquanto encarnada, todavia, não creio que ela reencarna e sim que permanece como um amálgama integrado à alma universal após a morte do corpo. Não quero, entretanto, desviar o foco da nossa conversa. O fato é que a metafísica não traz certeza alguma. Existe o mundo espiritual? Se existe, tem estrutura? Como funciona? Se for habitado, certamente o será por espíritos (personalidades anímicas sem corpo físico). Tais espíritos são oriundos exclusivamente da Terra ou também de outros planetas situados em diferentes galáxias? Admitindo a reencarnação dos espíritos, eles reencarnam sempre no seu planeta de origem ou também em outros planetas? Há regras disciplinando a conduta dessa população espírita? Há prêmios e castigos? O mundo espiritual interage com o mundo material? Esse questionamento pode revelar o tamanho da nossa ignorância.
Z – O russo Yuri Gagarin subiu ao céu, não se sentou ao lado de deus, porém se maravilhou com a cor azul da Terra (1961). Lá no espaço sideral ele não viu deus, Elias, Jesus, apóstolos e nem espíritos de gente boa, honesta e religiosa. Mostrou aos humanos que o céu astronômico não é a morada dos deuses como pensavam povos antigos e ainda pensam povos modernos apegados às escrituras dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. A partir das descobertas de Gagarin e da Astrofísica, o céu das religiões passou a ser simbólico; o mundo espiritual e o paraíso foram lançados fora do espaço/tempo. A crença na existência do mundo espiritual e do paraíso não resulta da fé científica e sim da fé religiosa. A via apropriada para se conhecer tal mundo é a intuitiva e não a racional. A certeza da existência do mundo espiritual é personalíssima e decorre da intuição. A experiência extática traz certeza ao indivíduo que a vivencia. O êxtase é momento de iluminação mental.
A – Acredito na tua sinceridade, Zeno, mas abdicar da razão em favor da intuição não me parece correto. Você mesmo disse: a experiência extática é personalíssima; portanto, não há como prová-la em um tribunal. Suponhamos que dela possa derivar algum conhecimento sobre o mundo espiritual. A falta de imagens e palavras adequadas dificultará a transmissão desse conhecimento a terceiros. Ademais, a visão do agente pode estar comprometida pela imagem que ele tem do mundo material, da comunidade humana e de si mesmo.
Z – Abdicar é desnecessário, meu prezado Aminthas. As duas vias do conhecimento são válidas, basta adequar a racional e a intuitiva aos seus respectivos campos. A razão filtra e organiza o conteúdo da apreensão intuitiva. O filtro racional impede que a fantasia seja vista como realidade. Na filtragem, a razoabilidade desempenha papel central. 
A – Vejo que você também confia na razão. No entanto, raciocinando podemos errar se as premissas forem falsas. O juízo de verdade num contexto, pode se mostrar falso em outro; o que ontem era verdade, hoje pode não ser mais. Ontem, a Terra e o ser humano ocupavam o centro do universo; hoje, não mais. Ontem, era legítimo torturar e matar o acusado de cometer delito. Hoje, em alguns países civilizados, as penas de tortura e morte foram profligadas. 
Z – Sim, Aminthas, eu confio na razão, pero no mucho. Eu não ignoro os diferentes contextos no tempo e no espaço. Se me permite, valer-me-ei de expressão bíblica. A razão ajuda a separar o joio do trigo. Pode se equivocar? Sim, pois esta é a sina dos humanos: acertar e errar, estar na certeza, na dúvida e na ignorância. Renovo a pergunta de Pilatos: “O que é a verdade”? Do que realmente estamos a falar quando a mencionamos? Em que contexto a invocamos? Neste mundo de mutações naturais e sociais em que vivemos, há verdade absoluta e eterna? As vias intuitiva e racional comportam riscos tendo em vista as deficiências humanas, inclusive no que tange às fraudes e à corrupção física e moral, porém, isto não invalida as experiências autênticas de agentes honestos que vivem para o bem da humanidade. Discutiremos isto oportunamente. Agora, preciso ir. Receba o meu fraternal abraço.  
A – Aqui estou de corpo e alma para receber o teu abraço. Até breve, meu irmão.

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