quarta-feira, 2 de novembro de 2016

DIÁLOGO

VERÔNICA – Qual o motivo do semblante preocupado, meu estimado frater?
EUGÊNIO – Semblante? Desde quando alma tem rosto, minha estimada soror?
V – Modo de falar. Alma não tem rosto, mas tem identidade, não tem corpo, mas tem sensibilidade, não tem cérebro, mas tem pensamento.
E – Tocou no ponto: o que fizeram com o meu cérebro. Separaram-no do corpo. O tempo consumiu o corpo que não mais ocupa lugar no espaço. O cérebro permaneceu no espaço/tempo conservado num recipiente. Virou atração turística.
V – Veja uma coisa, Eugênio (sei que alma não tem olhos, mas enxerga): neste amorfo ambiente, você pensa sem o cérebro e vive sem o corpo. Os humanos guardam e veneram o teu cérebro porque pensam que nele está o segredo da tua inteligência. No entanto, o pensamento não brota da matéria e sim do espírito, como nós dois estamos a demonstrar neste diálogo. 
E – Pois é, Verônica. Almas não têm língua e cá estamos nós a conversar. Veja como são as coisas: eu nem era tão inteligente assim, como bem demonstra o currículo escolar que lá deixei. Minha primeira esposa e companheira de estudos sim, era genial matemática. Ela fazia os cálculos mais complicados. Ela e eu elaboramos a teoria que revolucionou o meio científico da humanidade. Eu fiquei com a fama. Por uma questão de justiça, dei a ela o prêmio que ganhei.
V – Permita-me a emenda, meu estimado irmão: o prêmio que vocês dois mereceram saiu só no teu nome para satisfazer a tua vaidade. Justiça haveria se você e ela, na mesma proporção, usufruíssem da fama e do dinheiro. Deixá-la no ostracismo não me parece justo. Ao dar o dinheiro do prêmio, você tentou comprar o conformismo dela e acalmar a tua consciência.   
E – Questão de ponto de vista, minha estimada irmã. As relações humanas são complicadas. Fidelidade e lealdade são problemáticas, dependem das conveniências e oportunidades. “A carne é fraca”, reconhecia um divinizado profeta do meu planeta de origem. Lá costumam confundir deus com pessoa humana. A instituição religiosa considera legítima a relação entre sexos opostos para o fim de procriação, mas ilícita se tiver por fim apenas o prazer; considera ilegítimos o adultério e a homossexualidade, embora os crentes pratiquem-nos em progressão geométrica. Os humanos brigam entre si e se menosprezam em vida, mas quando um morre o outro louva as excelsas qualidades do morto e vai chorar na sepultura. O defunto lembra igual destino aos que o velam. Os parentes e amigos choram por eles mesmos. Já as carpideiras choram por obrigação contratual. No meu planeta imperam: perfídia, hipocrisia e injustiça. Iguais situações recebem diferentes pesos e medidas. Duvida-se do absoluto. Advoga-se a relatividade. Embroma-se com a dialética. Os políticos usam artifícios moralmente censuráveis para conquistar e se manter no governo. Os legisladores votam leis que favorecem os ricos e oprimem os pobres. Em nome de uma justiça subjetiva os juízes desvirtuam o direito objetivo ao aplicá-lo maliciosamente nos casos sob sua jurisdição. Tisnam a equidade. As celebridades são pessoas medíocres. A boa fama esconde a deficiência do caráter. O engodo é a catapulta da projeção social do indivíduo. O sucesso político resulta da desonestidade. O sucesso econômico provém da exploração do homem pelo homem. Filósofo do meu planeta afirmava: “O homem é o lobo do homem”.
V – Tudo bem, Eugênio (modo de falar, embora tudo esteja mal). Considere o nível da evolução espiritual. O universo físico é habitado por seres inteligentes, porém nem todos no mesmo grau. O planeta que você habitou não é o único. Há milhares. Alguns habitados por seres pacíficos e mais inteligentes, outros por seres belicosos e menos inteligentes. Do ponto de vista espiritual, a terráquea está entre as populações mais atrasadas do universo. A estupidez dos humanos é incomensurável. O progresso humano limitou-se à esfera material. Isto não significa que no teu planeta a espiritualidade estagnou. A evolução espiritual tende a se acelerar, mas ainda está na fase do neolítico, na primeira volta da espiral ascendente. Dentro de dois milênios os terráqueos atingirão a maturidade espiritual. Compreenderão que o paraíso não estava no passado e sim no futuro. No passado estava o grotesco esforço da espécie hominídea para sair da bestialidade para a humanidade. Nesta, a passagem do sensível para o racional ainda não se completou. Daí, estar ainda no início a passagem do racional para o espiritual. A “idade de ouro” está no porvir. O teu planeta azul, meu caro irmão, pelos bons cuidados que receber e pelo equilíbrio ecológico do meio ambiente que obtiver, será para os humanos a base física do paraíso até que o sol se apague. Os humanos saberão conviver com as forças da natureza. O que estou dizendo, Eugênio, circunscreve-se à dimensão tempo/espaço, posto que, no mundo espiritual, portanto fora do tempo/espaço, isso tudo já está feito e completado.
E – Para essa tua última afirmação, lá no meu planeta diziam, de forma intuitiva e poética: “Está escrito nas estrelas”. Contudo, no que concerne ao atraso espiritual da humanidade, discordo da tua afirmação. Noventa e cinco por cento da humanidade acredita em deus e segue alguma religião, seita ou escola mística. 
V – Aceito o reparo, mas divirjo do argumento. O número e a crença nada significam sem a boa conduta correspondente, sem os bons pensamentos e sentimentos. Sobre as relações humanas citadas por você, destaco as guerras: membros da mesma espécie animal matando uns aos outros. A sede de domínio de uns sobre outros. Os humanos pretendem conquistar o espaço sideral em termos bélicos, imaginando conflitos com seres de outros planetas. Guerra nas estrelas real e nada poética. Ao invés de compartilhar as riquezas naturais de um modo fraterno, buscam o seu desfrute egoístico, disputam os bens materiais como feras. O dinheiro é endeusado, o enriquecimento patrimonial perseguido a qualquer custo. Devastam, depredam, poluem, agridem a Natureza. Depois, quando recebem o troco, esperneiam. Grande parcela da humanidade passa fome, está na pobreza e na ignorância. Povos em melhor situação econômica e social rejeitam e discriminam imigrantes oriundos de países mais pobres ou conflagrados. Por vaidade e mesquinhez, lideranças de um mesmo povo se debicam e medem forças entre si ao invés de atuar de modo harmônico em benefício da coletividade. Grupos e povos se digladiam por crenças religiosas distintas. Embora reconhecendo a existência de um único deus, cada grupo tenta impor aos demais a sua ideia da divindade e o respectivo culto. Alguns identificam deus num profeta de carne e osso, tal como outrora identificavam deus numa pedra, árvore ou animal. Por questões religiosas, políticas e econômicas morreram milhões de pessoas em conflitos armados. Mensagens milenares de paz e amor sem eco na mente e nos corações humanos. Belos e comoventes discursos de um lado, pouca ação fraterna e solidária de outro. Ecce homo
E – Sim, mas pelo menos, há instituições que prestam assistência no que tange à educação, à saúde, ao fornecimento de medicamentos, alimentos, agasalhos e abrigos. Há compaixão. Ainda que em pequeno número, pessoas e instituições dedicam-se à paz mundial, ao culto da beleza por diferentes artes, ao culto da verdade através das ciências e da filosofia. Há pessoas que combatem as trevas mediante o magistério secular e espiritual. Reconheço que a evolução espiritual tem sido lenta entre os habitantes do meu planeta, mas a marcha em direção a uma luz maior continua. Na dimensão espiritual, o tempo nada significa.     
V – Por falar nisto, aqui nesta dimensão você encontrou a sua primeira esposa e companheira de trabalho científico?
E – Sim. Na verdade, foi ela quem me encontrou. A frequência das vibrações dela é mais alta do que a frequência das minhas. Verifiquei que nesta dimensão, a frequência mais alta comunica-se com a mais baixa, porém o inverso não ocorre. Percebi, ainda, que a fonte da energia criadora e mantenedora concentra a frequência vibratória máxima.
V – Como foi o encontro?
E – Agradável. Houve boa receptividade, sem resquício de mágoa ou rancor. Aliás, notei que nesta dimensão há relacionamento sem paixão. Senti que ingressei numa autêntica fraternidade fundada no amor incondicional. Percebi a diferença com a nominal e superficial fraternidade terrena. “Nós todos somos irmãos”, assim diziam homens e mulheres no meu planeta, enquanto matavam uns aos outros, dividiam-se em classes, umas abastadas e outras miseráveis, que se confrontavam cada qual na defesa dos seus próprios interesses. A justiça pública terrena é um campo de batalha, circo de competição onde se faz presente o tráfico de influência.
V – Ouçamos, agora, meu querido irmão, quem sabe mais do que nós. Oremos, meditemos e vamos nos harmonizar.
E – Estou pronto e agradecido, minha querida irmã, nos laços do amor fraterno. 

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