A proibição legal do aborto assenta-se
em proposições de índole religiosa tais como: a vida é um dom divino; o ser humano foi criado por Deus; o ser humano
em gestação é sagrado e intocável; a sua proteção é um imperativo da
consciência cristã. Segundo esse pensamento, a proteção do nascituro deve
ser prevista em lei e garantida pelo Estado. A regra estatal brota do pensamento,
do sentimento e da vontade do legislador, sob condicionamentos culturais
integrados por idéias de justiça, verdade, bondade, beleza e santidade. O
interesse, a utilidade e a necessidade são forças propulsoras do processo de
gestação das regras de direito.
No julgamento da argüição de descumprimento de preceito
fundamental em 13/04/2012 (ADPF 54) o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou
legítima a interrupção da gravidez quando ao nascituro faltar encéfalo. Crânio
sem essa parte significativa do sistema nervoso faz o animal parecer vegetal. Há
humanos com o crânio cheio de massa encefálica, mas vazio de idéias. Nascem com
encéfalo, mas não sabem usá-lo. Os doentes mentais são isentos de pena quando
praticam delitos sem consciência da ilicitude. Há pessoas que usam o cérebro com
finalidade perversa. Algumas são punidas; outras, não. Há criminosos de boa
saúde mental que dificilmente são punidos: políticos corruptos e banqueiros
estelionatários.
A ação judicial denominada argüição de descumprimento de preceito
fundamental (ADPF) tem por finalidade evitar ou reparar lesão resultante de
ato do poder público. Sem indicação do ato lesivo, a medida judicial não deve
ser admitida “ex vi legis” (9.982/99, 3º, II). A citada ação foi discutida em
abstrato visando a excluir do tipo penal aquela modalidade de aborto. O artigo
128 do código penal livra de punição o aborto praticado por médico em duas
hipóteses: (i) quando há risco de morte para a gestante (ii) quando a gravidez
resulta de estupro. O STF superou os entraves processuais, admitiu a mencionada
ação e acolheu a pretensão ali deduzida. Em conseqüência, o código penal passa
a ter norma oculta: terceira hipótese de impunidade de aborto praticado por
médico. Segundo o vetusto princípio da separação dos poderes, cabia ao poder
legislativo incluir essa norma no código penal. A ADPF 54 cumpriu papel de mandado
de injunção: supriu a omissão do legislador.
No julgamento em tela, a rigidez
lógica cedeu passo à flacidez do razoável. A suavidade do bom senso temperou a força
da razão. Entre o feto e a gestante, o legislador optou pela mulher nas duas
hipóteses legais de impunidade. O tribunal procedeu de igual maneira: entre o
feto e a gestante, optou pela mulher e criou uma terceira hipótese de
impunidade.
O tribunal decidiu com prudência. No caso de anencefalia
do nascituro, reconheceu a liberdade da mulher, tanto para levar a gestação até
o fim, como para interrompê-la. Atribuiu poder de decisão à gestante. Nem todos
suportam o sofrimento de igual maneira. Algumas gestantes, por motivos
religiosos ou para sentir a ventura de ser mãe, mantêm a gravidez até o final; desejam
embalar aquele filho nos braços, ainda que por poucas horas. Outras gestantes
não suportam a idéia e o sofrimento de parir aquele filho que nascerá morto ou terá
vida curta e inconsciente, filho que jamais será um Alberto Limonta, formado em
medicina.
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