quarta-feira, 18 de abril de 2012

ABORTO2


No início dos anos 50, do século XX (1901-2000), foi transmitida pelo rádio, no Brasil, com enorme audiência, novela mexicana intitulada “O Direito de Nascer”, drama de uma jovem solteira que engravidara. Perdida a esperança do casamento, temendo envergonhar a família abastada e católica, a jovem sofreu a angústia de decidir entre manter ou interromper a gravidez. Os costumes da época nivelavam-na às prostitutas. Resolveu parir. O filho foi entregue aos cuidados de outra mulher. A jovem entra para um convento e se torna freira. Com amor e dedicação, a negra Dolores criou e educou o menino branco, batizado Alberto Limonta, que se formou em medicina.

O legislador brasileiro fixou o termo inicial da personalidade civil no nascimento com vida. Apesar disto, colocou a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (nome, imagem, integridade física e psíquica, intimidade, privacidade, sucessão hereditária, atos da vida civil). Ao estabelecer esta ressalva, o legislador mira o processo completo da gestação; faz da expectativa do nascimento com vida, o pressuposto da ressalva. O objetivo da regra é garantir igual fruição de direitos no seio da família e da sociedade ao ser que, ao respirar fora do útero, se faz criança. Só é possível o nascituro figurar como vítima de crime contra a pessoa por ficção criada pelo legislador ou pelo intérprete da lei. Mediante esse artifício, o nascituro é considerado pessoa para efeitos penais, excepcionando a lei civil. Sem a ficção, a paciente do crime de aborto provocado com o consentimento da gestante teria de ser a sociedade, eis que a matéria interessa à família (economia doméstica) e ao Estado (densidade demográfica). Colocar a sociedade como vítima do crime de aborto só é possível na secção ficcional do direito. O imponderável não é estranho à jurisprudência. Chain Perelman, jurista belga, em sua Logique Juridique (Toulouse, Dalloz, 1979) cita dois casos interessantes.

Na Inglaterra, vigorava lei que cominava pena de morte ao crime de furto de valor igual ou superior a 40 shillings. Durante anos, os juízes ingleses avaliaram todo e qualquer furto em 39 shillings para evitar a sentença capital. Em 1808, o judiciário inglês, ao apreciar certo caso, avaliou 10 libras esterlinas (= 200 shillings) em 39 shillings. Foi a gota d’água. Sintonizado com o judiciário, o parlamento inglês abrandou a pena cominada ao crime. “A ficção chegou ao extremo e a lei foi modificada logo depois” (p.63).       

Em decorrência da invasão alemã, o rei da Bélgica governava mediante decretos com força de lei. A legitimidade desses decretos foi questionada perante o judiciário. De acordo com a Constituição belga, ao rei era vedado legislar isoladamente. O tribunal (Corte de Cassação) não negou a evidência, porém declarou legítimos os decretos. Invocou a força das coisas, a força maior, a necessidade de manter a soberania do Estado sem solução de continuidade. “Obra do homem, ela (a lei constitucional ou ordinária) está submetida, como todas as coisas humanas, à força das coisas, à força maior, à necessidade” (p. 77/78).

A proibição do aborto advém da valoração do fato existencial pelo legislador. O catolicismo criou raízes na América portuguesa, herança religiosa da metrópole européia que enviou padres com a dupla missão de manter a fé dos colonos e de catequizar os nativos. Religião oficial na colônia, no Estado luso brasileiro surgido em 1815, com a carta régia expedida por João, príncipe português, e no Estado brasileiro surgido em 1822, com a independência apoiada por Pedro, príncipe português. Mesmo após a queda do império em 1889, os dogmas católicos continuaram subjacentes à legislação, apesar de o novo Estado ser laico, tolerar o ateísmo e acolher o pluralismo religioso (cristianismo católico e protestante, espiritismo, judaísmo, islamismo, budismo, xintoísmo). Da miscigenação racial, da multiplicação dos imigrantes, da variedade dos credos religiosos e políticos, da assimilação do produto da civilização contemporânea, resultou um mosaico cultural; implicou mudança na hierarquia dos valores que, ainda, não se refletiu plenamente na legislação.

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