quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

ORAÇÃO


II

A bíblia não resiste a uma lúcida análise. Inteligências privilegiadas como a de Einstein, consideraram-na infantil, contos da carochinha. Realmente, em seu bojo, além das ficções, há contradições, falsidades, delírios, propósitos de catequese e domínio, tanto nos livros do Antigo Testamento (pentateuco, históricos, sapienciais, proféticos) como nos livros do Novo Testamento (evangelhos, atos dos apóstolos, epístolas, apocalipse). A bíblia serviu de fonte moral e religiosa da cultura européia e americana. Influiu na estrutura e no funcionamento político, econômico e social dos povos desses dois continentes. Isto justifica o interesse no estudo e na desmistificação do que nela se contém. No momento, procedemos à análise da oração ensinada por Jesus, relatada nos evangelhos.

Pai nosso que está no céu. Em algumas ocasiões, Jesus usa o singular meu Pai: “Crês tu que não posso invocar meu Pai e ele não me enviaria imediatamente mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26: 53). Em outras, porque se dirige à coletividade, usa o plural vosso: “(...) para que também vosso Pai, que está nos céus (...)” (Mc 11: 25). Na oração ao pé da montanha, ele usa o plural nosso, abarcando a si próprio, os discípulos e a platéia de palestinos e estrangeiros que ouvia o seu discurso (Mt 6: 5-13). Ao dirigir-se à divindade que está no céu, deixa implícita a separação entre a morada celeste e a morada terrena. Sem nome, o deus é tratado de Pai Celestial. Sexo masculino. O tratamento condiz com o caráter patriarcal da sociedade palestina da época, onde a posição da mulher era subalterna, submissa ao macho, operária na casa, lavradora no quintal, matriz da prole. Não há lugar para Mãe Celestial. Todavia, a lógica elementar do povo reclamava: se há pai, tem que haver mãe. Para preencher a lacuna, o clero católico divinizou a mãe de Jesus. 

Santificado seja o vosso nome. Que nome? Jesus se dirige ao Pai celeste ao ensinar como se reza. Portanto, refere-se ao nome desse Pai. Acontece que Jesus nunca deu nome a esse Pai. Logo, tal expressão é vazia. Apesar disto, a frase indica postura de humildade do cristão perante a divindade. Postura semelhante quando se diz: Deus seja louvado. Nomes tinham os deuses dos hebreus (judeus e israelitas) e dos outros povos, como os egípcios, babilônios e assírios. O escritor do Levítico (terceiro livro do Antigo Testamento) faz o deus dos hebreus de nome Jeová dizer sem modéstia: “Pois eu sou o Senhor, vosso deus. Vós vos santificareis e sereis santos, porque eu sou santo.” Na bíblia protestante há pequena diferença: “Eu sou o Senhor vosso deus; portanto, vós vos consagrareis e sereis santos, porque eu sou santo”. (Lev 11: 44). Do ponto de vista lógico e místico, santo não é Deus, mas quem o venera. Santo é quem, encarnado ou desencarnado, se conduz de acordo com as leis de Deus. A santidade advém da efetiva proximidade com Deus. Nem sempre atentos a isto, os humanos costumam sagrar ou santificar pessoas, idéias, palavras, lugares e coisas. Todavia, santificar um nome que não existe é alienação mental. Ademais, na doutrina cristã, sendo o Pai Celestial a fonte de toda santidade, o seu nome – se houvesse um nome –seria sagrado por sua própria natureza divina.

Venha a nós o vosso reino. Esta frase supõe separação entre reino divino e reino da natureza. Na Antiguidade, a monarquia prevalecia sobre a república na organização política dos povos. Assim, falar em reino causava forte impressão. Se há reino, há rei. De acordo com o ensinamento cristão, Deus é rei e seu trono é o céu. Todavia, ao contrário do significado literal, o reino divino não vem ao encontro dos humanos; estes é que devem ir ao encontro do reino divino. Destarte, a frase da oração há de ser entendida como súplica de acesso ao reino divino. Cabe assinalar que a separação entre os dois reinos é fictícia. Jesus deixou isto claro ao dizer: “O reino de Deus não virá de um modo ostensivo. Nem se dirá ei-lo aqui, ou ei-lo ali. Pois o reino de Deus já está no meio de vós”. (Lc 17: 20-21). Batei e abrir-vos-se-á (Mt 7: 7-8). Se verdadeiro esse relato evangélico, então a unidade do mundo material e do mundo espiritual integra a doutrina cristã. O reino de Deus abrange as faces material e espiritual do universo e a sua realeza está presente nas mentes e nos corações humanos. Basta vigiar, orar e buscar sinceramente, que os passos conduzirão à fonte da Luz, da Vida e do Amor.

Nenhum comentário: