terça-feira, 17 de julho de 2018

CONDUÇÃO COERCITIVA

Conduzir implica movimento de pessoa, coisa e/ou pensamento em certa direção segundo a vontade de alguém ou o determinismo natural. Supõe condutor e conduzido. O comandante conduz o exército. O policial conduz o preso. O fio conduz a eletricidade. O metal conduz o calor. A ideia de república conduz à ideia de responsabilidade da autoridade. A ideia de democracia conduz à ideia de soberania popular. Quando alguém é conduzido contra a sua vontade, a condução se diz coercitiva. Priva-se o paciente da sua liberdade. Essa privação é lícita se ordenada por autoridade competente e por motivo justificado (esclarecer um fato criminoso, por exemplo) ou se necessária ao salvamento do paciente (levar o acidentado ao hospital, por exemplo); ilícita se for contrária à lei e aos bons costumes.  Nas sessões dos dias 7, 13 e 14 de junho de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) debateu esse tema ao examinar o artigo 260, do Código de Processo Penal (CPP) assim redigido: “Se o acusado não atender a intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”.
Em 2016, a maioria dos ministros do STF azeitara as grades da cadeia atrás das quais colocaria o ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva. Os ministros não se envergonharam de violar o inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição da República que assim dispõe: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Mediante sofisma, os ministros justificaram o estreitamento do espaço da presunção de inocência. Fizeram do 2º grau de jurisdição muro intransponível, ainda que caibam recursos para graus superiores. Permitiram execução de sentença antes do trânsito em julgado. Luiz Inácio estava condenado pelo inquisidor federal curitibano e aguardava decisão do tribunal regional de Porto Alegre. Quase toda a nação brasileira sabia que o julgamento era político e a condenação seria mantida. Com recursos pendentes, Luiz Inácio, que jamais admitiu prática delituosa alguma, está preso em estabelecimento público, graças a um processo judicial fraudulento. Enquanto isto, réus confessos (inclusive delatores) condenados a muitos anos de prisão pela comprovada prática de crimes envolvendo a Petrobras (Cerveró & Cia.), gozam do benefício da prisão domiciliar.
Em 2018, o STF montava a “base jurídica” para o Superior Tribunal de Justiça e o Conselho Nacional de Justiça arquivarem as representações contra aquele bandido de toga (na feliz expressão da ministra do STJ Eliane Calmon) da República Fascista de Curitiba. O plano não deu certo por faltar um voto, o da Rosa Weber, ministra que se afastou do grupo nazifascista no qual ainda permanecem: Moraes, Fachin, Barroso, Fux e Carmen. O grupo liberal, republicano e democrático agora é maioria: Rosa, Antonio, Ricardo, Gilmar, Marco e Celso. Ficou decidido que a condução coercitiva do acusado em ação penal não foi recepcionada pela Constituição de 1988.
A atual minoria defendeu a vigência do artigo 260 do CPP. Colocou o interesse do estado acima dos direitos fundamentais da pessoa natural e do cidadão (como, aliás, é próprio do fascismo, do nazismo e do estalinismo). Esse grupo se revelou fiel à doutrina do jurista alemão Carl Schmitt, teórico do direito nazista. Hans Kelsen, jurista tcheco/austríaco/americano, no rigor lógico do seu pensamento, dizia que podíamos não gostar, mas havia um direito nazista. Kelsen argumentava com a vigência e a eficácia da ordem jurídica do regime nazista. Ele definiu o direito como “ordenação coercitiva da conduta humana”. 
Conduzir coercitivamente a esposa, a filha, ou o filho, para forçar o marido, ou o pai, a se apresentar, a delatar, a confessar ato criminoso que lhe foi imputado, é maneira infame de exercer autoridade. Assim agiam a polícia, o fiscal e o juiz na Itália fascista, na Alemanha nazista e na Rússia estalinista. Os juízes brasileiros que praticam, ou permitem que sejam praticados, abusos desse jaez, seguem a opinião de Ferdinand Lassalle: “A Constituição escrita é uma folha de papel”. Tais juízes usam-na como papel higiênico no banheiro das suas moradias.
Nas sessões acima referidas, a nova maioria do STF defendeu a plena vigência das normas constitucionais e legais que asseguram a liberdade de locomoção, o direito de calar, o direito de não se incriminar e o devido processo legal (CR 5º). Na questão em debate, a nova maioria colocou a liberdade da pessoa natural e do cidadão acima do interesse do estado na perseguição criminal (como, aliás, é próprio do estado democrático de direito). Historicamente, a relação entre liberdade e autoridade oscila conforme a situação de fato. A dinâmica social não permite equilíbrio entre os dois polos. A perseguição criminal é de grande relevância para a nação juridicamente organizada, mas também não é menor a relevância dos direitos fundamentais da pessoa natural e do cidadão. Saído de uma ditadura de 20 anos, o legislador constituinte brasileiro priorizou as liberdades públicas. Algumas normas do antigo regime se tornaram incompatíveis com o novo regime, enquanto outras normas permanecem em vigor. A norma insculpida no artigo 260 do CPP, mostrou-se incompatível com o sistema constitucional posto pelo legislador constituinte de 1987/1988. As operações tipo lava-jato provocaram o questionamento. Verificou-se que a permanência dessa norma no ordenamento jurídico contraria direitos fundamentais e enseja abusos.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, nenhum acusado está obrigado a comparecer em juízo para: (1) ser identificado e interrogado (2) produzir prova contra si mesmo (3) participar de qualquer diligência no processo. A ausência do acusado não impede a identificação e a qualificação indiretas e tampouco o prosseguimento da ação penal (CPP 259).  Outrossim, cabe registrar que: (1) o acusado preso comparece em juízo para o interrogatório sem prejuízo do seu direito de permanecer calado (2) o acusado solto, quando intimado, costuma comparecer regularmente. A recusa do acusado em atender ao chamado da autoridade é eventual e não implica sanção alguma. 
A obrigação de comparecer não é do acusado e sim da vítima, do informante, da testemunha, do perito. Todo cidadão deve colaborar com o estado no esclarecimento dos atos e fatos ilícitos. Ônus da cidadania. Exigência da civilização. Caso as pessoas intimadas não compareçam sem justa causa, o juiz pode ordenar a condução forçada. Nesta hipótese, o juiz exerce o seu poder estatal ordinário. Em razão do princípio da legalidade estrita na esfera criminal, não cabe ao juiz aplicação analógica de regras com apoio no poder geral de cautela. Esse poder é exclusivo da esfera cível. Na jurisdição criminal, o poder cautelar do juiz limita-se aos casos estabelecidos expressamente em lei. Se assim não fosse, o sistema brasileiro regressaria aos procedimentos defendidos pela escola do direito livre, inorgânico e assistemático movimento doutrinário do século XIX e primeira metade do século XX que, a partir de 1933, teve enorme importância na estruturação do direito nacional socialista (nazista) da Alemanha, a saber: decisão judicial romântica (fundada mais no sentimento do que na razão); superação da objetividade da prova e da lei pela subjetividade do juiz; atuação criativa e legisladora do juiz; guiar-se o juiz pelo direito não escrito que brota da alma do povo (volksgeist). A ordem jurídica brasileira é refratária a tais doutrinas. 

OBS. Reordenação do blog. Texto retocado e republicado. 

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