quarta-feira, 28 de setembro de 2016

JUÍZO DE EXCEÇÃO



Por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte instalada no Brasil em 1987, eu elaborei 16 propostas e as enviei a alguns deputados constituintes depois de apresentá-las e defendê-las no Congresso da Magistratura em Recife e na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional em Porto Alegre. Das propostas aprovadas e incorporadas ao texto constitucional constava a que proibia o juízo de exceção. Nas constituições democráticas proibia-se apenas o tribunal de exceção. A minha proposta foi acrescentar o juízo de exceção para ficar explicita a proibição não só aos tribunais como também aos juízes singulares em varas cíveis, criminais e especializadas, de julgar fora das regras do direito em vigor no país. O objetivo era o de evitar que, no plano dos fatos, o juiz natural se convertesse funcionalmente em juiz excepcional. O preceito consta da Constituição da República de 1988 com a seguinte redação: “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
O Tribunal Federal da 4ª Região violou a proibição constitucional ao consagrar o juízo de exceção quando indeferiu e arquivou representação formulada por juristas que pleiteavam a punição disciplinar do juiz comandante da operação lava jato. Ao considerar incensurável a conduta do juiz, o tribunal assim argumentou: para enfrentar fatos novos do direito não é necessário seguir regras processuais comuns; as investigações (da operação lava jato) constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro; casos inéditos trazem problemas inéditos que exigem soluções inéditas que escapam ao regramento genérico destinado aos casos comuns. Tal linha de argumentação pode valer em medicina, mas no direito brasileiro, inéditos ou não, os casos devem ser tratados segundo os preceitos constitucionais e legais. Eventual diferença na extensão e compreensão entre um caso e outro não justifica a derrogação da ordem jurídica vigente no país.
No processo penal, tratamento excepcional significa julgamento excepcional que significa julgar fora das regras em vigor que significa juízo de exceção. Esse tipo de julgamento faz tabula rasa da garantia constitucional que o proíbe. A decisão do tribunal federal equivale à outorga de competência extraordinária à 13ª Vara Federal de Curitiba o que a torna sede de um juízo de exceção. Implica conceder livre arbítrio ao juiz curitibano que a preside. Agora, aquele juiz está dispensado de se curvar ao determinismo da vigente ordem jurídica. O livre arbítrio tem defensores e opositores no campo da ciência, da filosofia e da religião. Todavia, na função judicante, o problema não existe, porque não há lugar para o arbítrio fora das balizas do direito vigente no Brasil. A vontade e a liberdade do juiz estão limitadas pelas coordenadas do ordenamento jurídico. No processo judicial, ao examinar a prova o juiz forma livremente o seu convencimento, porém, a sua decisão interlocutória ou final deve se enquadrar na Constituição e na Lei. O juiz não tem liberdade para criar a prova e a lei. Será arbitrário, se o fizer, e estará sujeito às sanções nas esferas administrativa e judicial.   
A decisão do tribunal federal reflete o mais nefando corporativismo: o que defende ou encobre os crimes, abusos, ilegalidades, praticados por quem é membro da corporação. Longe do ineditismo ali mencionado, a operação lava jato apura delitos tipificados na legislação penal praticados por políticos, empresários e funcionários da administração pública direta e indireta. Isto não é novo e tampouco excepcional na vida política e social do Brasil. Basta lembrar o caso apelidado “mensalão”. A dificuldade em buscar provas também não é novidade para os tipos de delito tratados nesses inquéritos e ações judiciais (corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, quadrilha). Portanto, a despótica decisão do tribunal federal repousa sobre falsos alicerces. De excepcional no caso, só a arbitrariedade e o vergonhoso conluio entre o juiz, os agentes do ministério público e a autoridade policial. Os fatos notórios mostram descumprimento de deveres como o de honestidade, moderação, impessoalidade, imparcialidade. A igualdade entre as partes foi alijada da dita operação e dos respectivos processos. Os acusadores estão numa posição privilegiada e superior à posição dos defensores. A vontade caprichosa do juiz desligou-se dos princípios e regras que informam a ordem jurídica brasileira.
Quer pelo ângulo jurídico, quer pelo ângulo moral e religioso, a dignidade da pessoa humana é vista como um valor essencial que todos têm o dever de respeitar. Daí, o legislador constituinte erigir esse valor em princípio fundamental da República. O que se verifica na dita operação lava jato é a transgressão a esse dever fundamental. Indiciados e réus são coagidos a confessar e a delatar mediante atos praticados pelas autoridades. Prisões desnecessárias e espetaculosas são efetivadas para constranger as pessoas e expô-las à execração pública. Com dados esparsos monta-se um mosaico como se fosse a realidade dentro da qual estariam configurados supostos delitos objeto dos inquéritos, das denúncias e das ações judiciais. O power point recentemente exibido pelos procuradores serve de exemplo da censurável conduta.
“O Estado não tem o direito de exercer, sem base jurídica idônea e suporte fático adequado, o poder persecutório de que se acha investido, pois lhe é vedado, ética e juridicamente, agir de modo arbitrário, seja fazendo instaurar investigações policiais infundadas, seja promovendo acusações formais temerárias, notadamente naqueles casos em que os fatos subjacentes à persecutio criminis revelam-se destituídos de tipicidade penal”. (Celso de Mello). 
A liberdade é outro valor essencial ao ser humano reconhecido pelo legislador constituinte como um direito fundamental inviolável. A privação da liberdade somente se justifica nos casos expressamente previstos na Constituição e na Lei. Ninguém deve ser privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal. Ninguém deve ser preso quando a lei admitir a liberdade provisória. Quem estiver praticando crime poderá ser preso por qualquer pessoa. Fora da situação de flagrância, o indivíduo só pode ser preso por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente. Portanto, a ordem de prisão só é válida se expedida por juiz de direito ou tribunal de justiça. Por motivo de convicção política ninguém deve ser privado da liberdade. A prisão preventiva justifica-se apenas quando houver prova da existência do crime e indício suficiente da autoria. Ausentes esses dois requisitos, a ordem de prisão será ilegal. Não basta o juiz repetir as palavras da lei para decretar a prisão, nem tampouco partir de conjecturas ou suposições. A autoridade judiciária deverá indicar qual o perigo que ameaça a ordem pública ou a ordem econômica; em que consiste esse perigo; quais os fatores que recomendam a prisão por conveniência da instrução criminal; quais os fatos que tornam duvidosa a aplicação da lei penal caso o indivíduo permaneça em liberdade; e assim por diante. Mandados de prisão e de condução coercitiva têm sido expedidos pelo juiz curitibano de modo abusivo, baseado em meras presunções e suposições, sem amparo na realidade e na efetiva necessidade. O constrangimento recentemente imposto de modo leviano a dois ex-ministros ilustra bem os desatinos.   
A caudilhesca decisão do autocrático tribunal federal da Região Sul (maior concentração de nazifascistas por metro quadrado) escapa do sistema jurídico brasileiro e adota o método da Escola Livre do Direito, iniciada no século XIX, na Europa continental. Essa escola reage às teses da plenitude hermética da ordem jurídica e da submissão do juiz à lei. No seu extremo, a escola nega valor à lei escrita, exige do juiz um trabalho individual, criativo, eficaz, indiferente ao do legislador. Na sua expressão moderada, a escola prega a insuficiência da lei, a existência de lacunas no ordenamento jurídico a exigir um trabalho individual e criativo do juiz ao nível do legislador. Entretanto, advertir é preciso: “a lacuna nada mais é do que a diferença entre o direito positivo e uma ordem tida por melhor e mais justa” (Hans Kelsen). Essa escola adentrou o século XX e atingiu o seu clímax na década de 1930 na Alemanha nazista. O juiz germânico, raça pura, reconhece, sente e aplica o direito não escrito que reflete a alma do povo alemão (volksgeist) e se adapta às necessidades da vida nacional. A lei é apenas um dos aspectos do direito cuja interpretação e aplicação deve se orientar pelo senso jurídico inato que o juiz alemão encontra em si mesmo. A força orgânica do direito escrito sucumbe ante a força inorgânica da convicção do juiz alemão adepto do nazismo.
O sistema brasileiro supõe a plenitude da ordem jurídica. A construção jurídica conceitual afasta a especificidade dos interesses envolvidos no caso concreto. Entretanto, o sistema admite a possibilidade da existência de lacuna. À eventual falta de lei que discipline o caso concreto, o juiz deve recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. A supremacia é das normas constitucionais, a preponderância é das normas legais, o suplemento é das normas consuetudinárias. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. A lei posterior revoga a lei anterior. Na área penal, prevalece o princípio da legalidade sem lugar para analogia. A lei entra em vigor após a sua publicação e não retroage, salvo para beneficiar o réu. Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Ao prestar tutela jurisdicional o juiz ou o tribunal não pode criar lei. O juiz deve respeitar o princípio da separação dos poderes. Compete privativamente à União Federal legislar sobre direito penal e processual através do Congresso Nacional.     
Constituição da República: artigos 1º, III; 2º; 5º + incisos; 22; 48.
Código de Processo Penal: artigos 282, 301, 312.  
 Código de Processo Civil: artigo 140.
Lei de Introdução ao Código Civil: artigos 1º a 4º. 
Supremo Tribunal Federal: HC 98.237, 1ª Turma, 15/12/2009.  

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