segunda-feira, 5 de setembro de 2016

DIÁLOGO

Lourenço – Bá, Tchê! Por que tu fizeste isto?
Rodrigo – Isto o quê?
Lourenço – Tu processaste a Amância, vizinha que ficava à esquerda da tua estância. O tribunal a condenou e ela teve de sair. Creio que agiste mal.
Rodrigo – Agi dentro da lei. Amância permitiu que o meu gado, que não era marcado, entrasse na estância e o vendeu sem o meu consentimento.
Lourenço – Agir dentro da lei, meu caro compadre, sem combinar com a regra moral e religiosa, não é o melhor caminho. O gado não era marcado, como afirmar que era teu?
Rodrigo – Isto não vem ao caso.
Lourenço – Mil pombas! Tu podias, pelo menos, ter conversado com ela na tentativa de uma solução amigável.
Rodrigo – Com Amância? Tu estas cego, homem do céu! Então, ela é mulher com quem se possa conversar? Mulher rija, sem jogo de cintura, Amância não queria papo, administrava a estância ao seu talante sem dar satisfação a ninguém. Nas vezes que busquei soluções para problemas nossos, fui repudiado. Na questão do leite, por exemplo. Por mais que eu insistisse que devíamos colocar mais água e encorpar com produto químico, antes de distribuir para consumo da população, ela se recusava e dizia que devíamos fazer o contrário, isto é, misturar menos água e não colocar produto algum. Na questão daquela pobretada lá dos fundos da estância, por exemplo. Eu disse pra ela: vamos colocar essa gente fora das nossas fazendas; essa gente planta em nossas terras, tira o leite das nossas vacas, vai à cidade com nossos cavalos e carroças, até as nossas escolas aqueles molambos frequentam. O pior de tudo: essa gente acha que está no seu direito! Não podemos tolerar isto! Pergunto a ti: qual foi a atitude da Amância? A nosso favor? Não. Ela foi a favor daquela gentalha.  
Lourenço – Mas compadre, parece-me que está havendo aí dois pesos e duas medidas. O vizinho à direita da tua estância também abria a porteira para o gado entrar e o vendia sem o teu consentimento e tu não o levaste ao tribunal, tu não abriste processo judicial contra ele.   
Rodrigo – Acontece que o Leopoldo é meu amigo e conversamos. A gente se entende. Com a Amância fora do caminho, vamos executar os nossos projetos aqui no rincão das nossas famílias.
Lourenço – Tu queres mais chimarrão? O que achaste do fumo e da palha?
Rodrigo – Pra mim chega, já tomei o bastante. O fumo é do bom, bem picotado, enrolado na palha macia, deu pra fazer o cigarro que estou a pitar. Gosto do cheiro da fumaça deste cigarro. A cuspideira é que me incomoda. 
Lourenço – Vou sossegar a chaleira e a cuia aqui na mesa.   
Rodrigo – O que é que há? Por que me olhas desse jeito? Olha lá, compadre! 
Lourenço – Não me estranhe, compadre. Eu apenas estou refletindo se devo te prevenir.
Rodrigo – Prevenir do quê, homem? Desembucha logo.
Lourenço – Tu conheces o doutor Miguel dos Anjos?
Rodrigo – Sim, aquele mulato advogado do Tiburcio lá da Granja Carijó. Ele é o patrono do Tiburcio num caso contra poderosa indústria de produtos alimentícios. O que tem ele?
Lourenço – Amância o procurou. Parece que ela vai revidar.
Rodrigo – Nada tenho a temer. O tribunal me deu razão. A decisão está tomada. Se me processar, Amância vai se ferrar, porque o direito está do meu lado.
Lourenço – O doutor Miguel não pensa assim.
Rodrigo – Não sei por que você chama esse mulato de doutor.
Lourenço – Ora, porque ele é bacharel em direito, exerce a advocacia e é professor na faculdade de direito lá da cidade.
Rodrigo – Tudo bem. O que é que pensa o “doutor”?
Lourenço – Ele informou sobre uma nova e recente lei que não mais considera ilícitos atos como aqueles praticados por Amância.
Rodrigo – Não vejo como isto pode me afetar. A lei produz efeitos pra frente e não pra trás. O que passou, passou e fica como está.   
Lourenço – Eu também acho. Contudo, naquele linguajar dos advogados, o doutor Miguel falou de retroatividade benigna da lei e explicou: a nova lei produz efeito para trás quando beneficia o réu; essa regra consta da Constituição e do Código Penal; ninguém é punido por ato que a nova lei não mais considera crime; em consequência, cessam os efeitos da sentença condenatória.
Rodrigo – Mas isto é um absurdo, Tchê! Desse jeito ninguém tem segurança alguma! O decidido por um tribunal não tem mais valor? O que é isto? Onde é que estamos? Que país é este?
Lourenço – Não sei compadre. Estou relatando o que ouvi. Prevendo que tu te zangarias é que eu tive dúvida se devia te contar. O doutor Miguel disse que a decisão de um tribunal pode ser modificada por outro; que a substituição de uma sentença por outra é comum no mundo jurídico; que ao favorecer o réu, a lei nova aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.
Rodrigo – Mas que porra é essa?
Lourenço – Convém tu consultares um advogado. Eu não sei explicar. Pelo que disse o doutor Miguel, com a sentença do segundo tribunal a decisão do primeiro ficará sem efeito e a Amância recuperará os seus direitos.
RodrigoPuta que o pariu! Só me faltava essa!
Lourenço – Pois é. Não falta mais. O doutor Miguel disse que mui provavelmente ela será reintegrada na posse dos seus bens. 
Rodrigo – Isto quer dizer que ela voltará para a estância?
Lourenço – Sim, voltará.

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