domingo, 2 de outubro de 2016

TROPEÇO

Na semana que findou, veio a notícia: o professor Ricardo Lewandowski, durante aula na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), disse aos alunos que o processo de impeachment da presidente Rousseff foi um tropeço da democracia. Fora do ambiente universitário, o professor Gilmar Mendes replicou dizendo que tropeço foi fatiar a decisão naquele processo; votar em separado a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública. Os dois professores são também ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). No uso das suas atribuições como presidente do tribunal parlamentar, Lewandowski podia evitar ou atenuar o tropeço se impedisse que juízes suspeitos participassem do julgamento (senadores sem idoneidade moral, indiciados em inquéritos policiais e/ou réus em ações penais). No sentido dinâmico, usa-se o vocábulo tropeço para designar ação de esbarrar em alguém ou alguma coisa, de dar topada, de errar. No sentido estático, usa-se o vocábulo tropeço para designar aquilo que se interpõe no caminho, obstáculo, dificuldade. No contexto, o professor Lewandowski usou o vocábulo no sentido estático (o impeachment como dificuldade enfrentada pela democracia) enquanto o professor Mendes o empregou no sentido dinâmico (erro ao dividir em dois momentos distintos a decisão do impeachment).
Nos países democráticos e presidencialistas, o impeachment, embora útil, é uma exceção ao processo eleitoral, um obstáculo, uma pedra no sapato. Por isto mesmo, rara é a sua instauração. Na América Latina, o impeachment tende a se tornar frequente após o retrocesso dos países ao status de repúblicas de bananas. O golpe civil substitui o golpe militar; a engenhosidade das fórmulas jurídicas substitui o engenho marcial. O Brasil voltou ao status de republiqueta de corpo grande (e rico) e de alma pequena (e corrupta).
Na farsa do impeachment, os dois quesitos (deviam ser cinco) apresentados pelo presidente do tribunal parlamentar estavam em sintonia com a fase processual da aplicação da pena, quando prevalece o lado político da decisão, que não se confunde com o caráter jurídico do processo. A decisão nele proferida (sentença) é o ato final. O primeiro momento da decisão é jurídico por excelência e comporta os seguintes quesitos: (1) o fato constante da denúncia tipifica crime de responsabilidade? (2) em caso positivo, o acusado o praticou? (3) em caso positivo, ele o praticou dolosamente? O segundo momento da decisão assume feição política e comporta os seguintes quesitos: (4) a pena prevista para o crime deve ser aplicada ao acusado? (5) em caso positivo: (5-A) o acusado deve perder o cargo? (5-B) o acusado deve ficar inabilitado para o exercício de função pública?
Os pronunciamentos dos professores acima citados é um aperitivo para o novo capítulo do impeachment: a defesa da presidente perante o STF. Até o momento, a defesa inclui três mandados de segurança. A presidente defende o seu direito ao exercício do mandato popular obtido em regular e legítima eleição (2014). O terceiro mandado de segurança abrange os dois anteriores e foi interposto em 30/09/2016. Através dele, a presidente põe em dúvida a higidez de todo o processo de impeachment, impugna a sentença do tribunal parlamentar e a resolução do Senado Federal que a publicou.
A petição desse terceiro mandado ocupou 493 páginas, espaço duplo entre as linhas, títulos em letras garrafais, temas repetidos talvez para efeito mnemônico (gravá-los na memória do julgador). A leitura dessa peça gastará cerca de nove horas numa velocidade de 50 páginas por hora. A grande extensão é justificada pela impetrante diante da relevância política e social do caso. Apesar disto e da riqueza cultural do texto, a falta de síntese torna a leitura cansativa e predispõe o julgador assoberbado de trabalho a negligenciar o seu exame. A enorme extensão do texto pode dificultar a apreensão da essência do direito postulado. 
A referida petição faz o histórico dos fatos que desembocaram no processo de impeachment, a trama urdida pelos perdedores da eleição, a cumplicidade do presidente da Câmara dos Deputados e aliados, o rompimento das relações desse presidente com o governo do qual seu partido fazia parte, a falta de decoro e a desonestidade desse deputado, a cassação do seu mandato, a parcial conduta dos juízes (deputados e senadores) que agiram e decidiram politicamente em detrimento do direito em vigor.
Fundada na Constituição, nas leis, na jurisprudência, na Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, e na doutrina nacional e estrangeira, a impetrante sustenta a legitimidade das partes, o cabimento da ação de mandado de segurança, o caráter administrativo da decisão do tribunal parlamentar, a ausência dos pressupostos jurídicos para que tal decisão fosse válida, legítima e justa, a inocorrência de crime de responsabilidade, o desvio de poder com o objetivo de destituir a presidente, a violação da garantia do devido processo. Alicerçada nesses fundamentos, a impetrante pleiteia a declaração de nulidade do processo de impeachment e o retorno ao cargo de Presidente da República.      
Ao despachar a petição, o ministro Teori poderá: (1) recusar a sua prevenção e determinar a livre distribuição; (2) aceitar a prevenção, deferir a liminar e expedir mandado de reintegração da impetrante na posse do cargo presidencial, ad referendum do plenário do STF; ou indeferir a liminar ou deixar para apreciá-la oportunamente; (3) oficiar às autoridades impetradas (presidente do tribunal parlamentar e presidente do Senado) para prestarem informações. O relator poderá admitir intervenção de amicus curiae. O Procurador-Geral da República (PGR) emitirá parecer depois das informações prestadas. Na sessão do julgamento, o relator lerá o relatório. A seguir, os advogados farão sustentação oral, o PGR se pronunciará e o relator votará. Após os debates entre os ministros, eles formularão os seus votos. A presidente do tribunal proclamará o resultado. Se o mandado de segurança for provido pela maioria dos ministros, será expedida ordem de reintegração da impetrante no cargo presidencial.
Se o STF julgar procedentes as ações propostas pelos adversários da presidente da república, o julgamento do impeachment será anulado e o Senado voltará a se reunir como tribunal parlamentar para decidir se mantém ou não, a condenação e se aplica ou não, a pena de perda do cargo e de inabilitação para o exercício de função pública. Nesta hipótese, o STF, firme nas garantias constitucionais, poderá proibir de atuarem como juízes os senadores indiciados em inquéritos policiais e/ou réus em ações penais e vedar a atuação dos suplentes. A presidente será reintegrada no cargo e nele permanecerá até decisão final do tribunal parlamentar.   
Interessante o tema da natureza do processo de impeachment abordado na longa petição. A doutrina do Hemisfério Norte (EUA e Europa) domina a mente dos juristas brasileiros que não pensam por si mesmos e não conseguem ver, com seus próprios olhos, que “o rei está nu”. Intoxicados por leitura sem filtragem da jurisprudência e da doutrina estrangeiras, perdem contacto com a realidade nativa. Na dogmática brasileira, o termo processo aplica-se aos procedimentos dos três poderes. Nem todo processo é contencioso. No Congresso Nacional há processo legislativo, processo parlamentar e processo administrativo. No Executivo há processo político, processo administrativo e processo normativo. No Judiciário há processo judicial, processo normativo e processo administrativo. Nesse campo, toda atividade é típica (própria e regular) desde que desempenhada por quem a Constituição e a Lei designarem, pouco importando se a autoridade designada é do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário.
A Constituição atribui ao Senado competência para processar e julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade. Tal função, pois, é típica do Senado, ex vi legis. Independente da opinião da doutrina e da bizantina discussão, o direito posto criou um processo parlamentar penal que tem seus trâmites por um tribunal parlamentar. O princípio da independência e harmonia dos poderes da república não obsta o controle jurisdicional do processo de impeachment pelo guardião da Constituição (STF). Esse controle é próprio do mecanismo de freios e contrapesos e sintoniza com o império da jurisdição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Através do citado mecanismo os tribunais controlam inclusive a constitucionalidade das leis, estribados na supremacia da Constituição.
No sistema brasileiro, ações e omissões das autoridades públicas devem se pautar pelo direito posto, segundo o princípio da legalidade, o que importa em obediência ao devido processo jurídico lato sensu (obediência aos procedimentos estabelecidos nas normas de direito substancial e de direito processual). Todo processo, seja parlamentar, administrativo ou judicial, para ser válido tem que ser jurídico. O impeachment é um processo jurídico que se instaura e se desenvolve em sede parlamentar. O ingresso desse tipo de processo no ordenamento jurídico brasileiro deve-se a dois propósitos políticos: prevenir atentado contra a Constituição e afastar do cargo quem o comete. Na fase final desse especial processo jurídico é possível uma solução política no que tange à aplicação da pena (o tribunal parlamentar julga procedente a denúncia, mas não aplica a pena por motivos de conveniência e oportunidade).

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