sábado, 3 de setembro de 2016

DEPOIMENTO

Na cidade-estado da Guanabara, alguns juízes, antes de se dirigirem às varas cíveis e criminais, costumavam se reunir no bar dos magistrados. Certo dia, nosso colega João Uchoa Cavalcanti, titular da 5ª Vara Cível, aproximou-se da mesa em que estávamos e convidou-nos para lecionar na Faculdade de Direito Estácio de Sá da qual ele era o fundador. A faculdade situava-se na Rua do Bispo, no Rio Comprido, bairro carioca, numa casa antiga que acomodava a diretoria e a secretaria, com extensão nova para os fundos onde ficavam a sala dos professores e as salas de aula. Limitava-se com o morro onde uma favela se instalara e se expandia.
Apagavam-se as luzes do ano de 1973. Convite aceito, eu lecionei Teoria Geral do Processo no primeiro ano do contrato. Nos anos seguintes, lecionei Teoria Geral do Estado, Direito Constitucional e Lógica. Certa ocasião, antes da compulsória fusão dos Estados da Guanabara e Rio de Janeiro, durante conversa no bar dos magistrados, meu colega Geraldo Magela, que também lecionava na citada faculdade e sabia da minha dedicação ao direito constitucional, disse-me: “Lima, você ensina ficção jurídica”. Ante o meu olhar de espanto, ele, como bom mineiro, atento ao momento político, mencionou a insignificância desse direito nas ditaduras, o valor mínimo da Constituição, a fluidez das normas postas e manipuladas pelos ditadores.
Sem polemizar, respondi que sentia ser meu dever ensinar como se estivéssemos em plena democracia. Alguns alunos mostravam receio de ser considerados subversivos e sofrer a repressão policial da época. Em uma das aulas em que me empolguei mais do que o usual, um dos alunos ergueu os braços acima da cabeça, com os dedos indicador e médio das duas mãos cruzados, dando sinal de que eu podia ir para o xadrez. Naquela turma, havia um aluno que era oficial superior das Forças Armadas. No entanto, nunca fui incomodado pelos militares.
Na conversa com Magela, eu disse que ensinava daquele modo porque os alunos tornar-se-iam profissionais do direito e as lições poderiam ser úteis no futuro. A declaração de direitos era utópica no momento, porém um dia a democracia retornaria. 14 anos depois desse diálogo a profecia tornou-se realidade. Assembleia Nacional Constituinte elaborou e promulgou nova Constituição consagrando a democracia e a separação dos poderes, declarando direitos e garantias fundamentais, enunciando princípios e objetivos fundamentais da república. 
Desde a sua promulgação em 1988 até fevereiro de 2016, essa Constituição recebeu 91 emendas. Nenhuma Constituição recebeu tantas emendas. A alegada necessidade de ajustar o texto constitucional às mudanças ocorridas na sociedade é justificativa desmentida pela realidade. Isto mostra que manipular a ordem constitucional não é apanágio das ditaduras e sim instabilidade cultural, falta de lealdade à Constituição, imaturidade dos profissionais da política, distância sentimental do povo em relação à Lei Magna do seu país. No Brasil, não há tradição de apreço à Constituição como há nos Estados Unidos da América do Norte. O modelo analítico e prolixo da Constituição brasileira enseja o vôo do espírito novidadeiro e leviano do legislador para alterar o ordenamento jurídico sob variados pretextos. Basta uma avenida mudar o sentido do tráfego para o legislador emendar a Constituição.A inconstância o caracteriza.
Os grupos que se sucedem no governo amoldam a Constituição aos seus programas e interesses quando o inverso é que devia acontecer, ou seja, os interesses e programas desses grupos é que deviam se amoldar à Constituição. Daí, a pletora de emendas. Juízes e tribunais na sua atividade hermenêutica participam dessa inconstância. Mediante interpretação, alteram o sentido das normas constitucionais.
Os governantes, lato sensu, desvinculam o direito da ética. Neste particular, mostra-se apropriada e atual a lição de Nicolai Timacheff: “Costuma-se ver no direito nada mais do que um complexo de ordens emanadas dos poderes, sem levar em conta o seu elemento ético. Quando isto acontece, chega-se a construir – não a noção de direito – mas, a caricatura do direito” (Le droit, l´ethique, le pouvoir. Archives de Philosophie du Droit. Paris, 1936, p.161).   
Esta lição serve ao momentoso processo de impeachment da Presidente da República. No tribunal parlamentar, os juízes-senadores condenaram uma inocente com base no elemento formal do direito, sem que a materialidade do crime estivesse configurada e sem respaldo na ética. Também serve de exemplo da mencionada desvinculação do direito à ética: (1) o modo debochado como Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da república, se referia às cláusulas pétreas da Constituição; (2) a conduta dos legisladores que elaboram leis que atendem aos privados interesses seus e do seu grupo, mesmo quando em conflito com o interesse nacional e o bem-comum; (3) a ginástica cerebrina de juízes e tribunais para contornar o real sentido das normas constitucionais e escapar da teleologia do legislador constituinte, sob o enganoso argumento de fazer justiça no caso concreto. 
Da pesquisa histórica e dos fatos atuais constata-se que os tribunais mudam a jurisprudência e interpretam a Constituição segundo a direção do vento, de acordo com o rumo que pretendem imprimir aos casos sob os seus cuidados, ditado por suas ideologia e idiossincrasia. Exemplo recente: interpretação da norma constitucional “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. (A sentença judicial transita em julgado quando esgotado o estoque de recursos). Essa norma não diz que ninguém será preso antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Essa norma trata da culpa, não da prisão e nem da liberdade. Supõe: (1) processo criminal em que o réu foi condenado; (2) caráter provisório da decisão sobre a culpa. Enquanto a sentença condenatória não transitar em julgado: (I) o nome do réu não pode ser lançado no rol dos culpados; (II) a reincidência não se caracteriza. 
Normas constitucionais e legais autorizam prisão antes mesmo da ação penal instaurada e de se apurar a culpa; admitem prisão paralela à presunção de inocência: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente; ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória; em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz". A culpa será declarada na sentença ao fim do processo criminal, mas somente será reconhecida em definitivo após o trânsito em julgado.
Sistematicamente, com base nessas normas constitucionais e legais, um juiz federal do Paraná decreta prisões preventivas a rodo sob o pretexto de combater a corrupção. O que era exceção tornou-se regra e antecipada execução da pena. Juristas entendem abusivo esse comportamento e que os réus não podem ser presos antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Interpretando a Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão de 05 de fevereiro de 2009, decidiu que o réu só pode ser preso depois de a sentença condenatória transitar em julgado. Na sessão de 17 de fevereiro de 2016, o STF decidiu que o condenado pode ser preso antes do trânsito em julgado, desde que por ordem de um tribunal de justiça.
Destarte, juiz monocrático pode condenar, mas não prender. No entanto, dispositivo do Código de Processo Penal permitia a prisão do condenado por sentença do juiz (Art. 393). Se o juiz pode o mais, decretar a prisão mesmo antes de instaurado o processo criminal, pode o menos, decretá-la depois de encerrados a instrução criminal e o julgamento, quando o réu desfrutou das garantias do juiz natural, do contraditório e da ampla defesa. Erro de julgamento pode haver, tanto do juízo monocrático como do juízo colegiado. Motivado ou não por cores políticas partidárias, o que o juiz não pode é distorcer os fatos, a prova e o direito; abusar do seu poder e se exceder no exercício da sua autoridade. 

Nenhum comentário: