sexta-feira, 16 de setembro de 2016

INÊS DE CASTRO

Estavas, linda Inês, posta em sossego / de teus anos colhendo doce fruito / naquele engano da alma, ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito / nos saudosos campos do Mondego / de teus fermosos olhos nunca enxuito / aos montes ensinando e às ervinhas / o nome que no peito escrito tinhas. / Do teu Príncipe ali te respondiam / as lembranças que na alma lhe moravam / que sempre ante seus olhos te traziam / quando dos teus fermosos se apastavam / de noite, em doces sonhos que mentiam / de dia, em pensamentos que voavam / E quanto, enfim, cuidava e quanto via / eram tudo memórias de alegria.

De outras belas senhoras e Princesas / os desejados tálamos enjeita / que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas / quando um gesto suave te sujeita. / Vendo essas namoradas estranhezas / o velho pai sizudo, que respeita / o murmurar do povo e a fantasia / do filho, que casar-se não queria / tirar Inês ao mundo determina / por lhe tirar o filho que tem preso / crendo co´o sangue só da morte indina / matar do firme amor o fogo aceso. / Que furor consentiu que a espada fina / que pôde sustentar o grande peso / do furor mauro, fosse alevantada / contra uma fraca dama delicada?

Traziam-na os horíficos algozes / ante o Rei, já movido a piedade / mas o povo, com falsas e ferozes / razões, à morte crua o persuade./ Ela, com tristes e piedosas vozes / saídas só da mágoa e saudade / do seu Príncipe e filhos, que deixava / que mais que a própria morte a magoava, / para o céu cristalino alevantando / com lágrimas, os olhos piedosos / (os olhos, porque as mãos lhe estava atando / um dos duros ministros rigorosos) / e depois nos meninos atentando / que tão queridos tinha e tão mimosos / cuja orfandade como mãe temia / para o avô cruel assim dizia:

- Se já nas brutas feras, cuja mente / natura fez cruel de nascimento / e nas aves agrestes, que somente / nas rapinas aéreas têm o intento / com pequenas crianças viu a gente / terem tão piedoso sentimento / como co´a mãe de Nino já mostraram / e co´os irmãos que Roma edificaram: / ó tu, que tens de humano o gesto e o peito / (se de humano é matar uma donzela / fraca e sem força, só por ter sujeito / o coração a quem soube vence-la) / a estas criancinhas tem respeito / pois o não tens à morte escura dela / mova-te a piedade sua e minha / pois te não move a culpa que não tinha.

E se, vencendo a maura resistência / a morte sabes dar com fogo e ferro / sabe também dar vida, com clemência / a quem para perdê-la não faz erro. / Mas, se to assim merece esta inocência / põe-me em perpétuo e mísero desterro / na Cítia fria ou lá na Líbia ardente / onde em lágrimas viva eternamente. / Põe-me onde se usa toda a feridade / entre leões e tigres, e verei / se neles achar posso a piedade / que entre peitos humanos não achei. / Ali, co´o amor intrínseco e vontade / naquele por quem mouro, criarei / estas relíquias suas que aqui viste / que refrigério sejam da mãe triste.

Queria perdoar-lhe o Rei benino / movido das palavras que o magoam / mas o pertinaz povo e seu destino / (que desta sorte o quis) lhe não perdoam. / Arrancam das espadas de aço fino / os que por bom tal feito ali apregoam. / Contra uma dama, ó peitos carniceiros / feros vos amostrais, e cavaleiros? / Qual contra a linda moça Policena / consolação extrema da mãe velha / porque a sombra de Aquiles a condena / co´o ferro o duro Pirro se aparelha / mas ela, os olhos com que o ar serena / (bem como paciente e mansa ovelha) / na mísera mão postos, que endoidece / ao duro sacrifício se oferece:

Tais contra Inês os brutos matadores / no colo de alabastro, que sustinha / as obras com que Amor matou de amores / aquele que depois a fez Rainha / as espadas banhando, e as brancas flores / que ela dos olhos seus regadas tinha / se encarniçavam, férvidos e irosos / no futuro castigo não cuidosos. / Bem puderas, ó Sol, da vista destes / teus raios apartar aquele dia / como da seva mesa de Tiestes / quando os filhos por mão de Atreu comia! / Vós, ó côncavos vales, que pudestes / a voz extrema ouvir da boca fria / o nome do seu Pedro, que lhe ouvistes / por muito grande espaço repetistes.

Assim como a bonina que cortada / antes do tempo foi, cândida e bela / sendo das mãos lascivas maltratada / da menina que a trouxe na capela / o cheiro traz perdido e a cor murchada: / tal está, morta, a pálida donzela / secas do rosto as rosas e perdida / a branca e viva cor, co´a doce vida. / As filhas do Mondego a morte escura / longo tempo chorando memoraram / e, por memória eterna, em fonte pura / as lágrimas choradas transformaram / o nome que lhe puseram, que inda dura / dos amores de Inês, que ali passaram. / Vede que fresca Fonte rega as flores / que lágrima são a água e o nome Amores.

(Poema de Luís de Camões, em Os Lusíadas, canto terceiro).

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