sexta-feira, 9 de setembro de 2016

IMPEACHMENT - XVIII

Precedente.

A palavra precedente significa aquilo que antecede alguma coisa, que vem antes, cronologicamente anterior. Qualifica-se como precedente a conduta que serve de modelo a ações ou omissões posteriores.  No campo do direito, entende-se por precedente a decisão de um caso que depois é aplicada aos casos semelhantes. O órgão do qual emana a decisão pode ser parlamentar, administrativo ou judiciário. Quando esse órgão é um tribunal judiciário, o precedente enseja jurisprudência ao ser aplicado em questões semelhantes debatidas em diferentes ações judiciais. Forma-se consenso em torno de uma tese jurídica. A jurisprudência proporciona segurança e estabilidade às relações jurídicas, serve de bússola aos jurisdicionados e é fonte de estudos científicos. No sentido amplo, o termo jurisprudência é utilizado como sinônimo de ciência do direito. Historicamente, a palavra significa o conhecimento prático e teórico derivado da prudência e sapiência dos jurisconsultos romanos na análise e definição dos fatos jurídicos.
Ao aplicar à Presidente da República só uma parte da pena prevista para o crime de responsabilidade, o tribunal parlamentar seguiu o precedente do caso Collor. O tribunal separou o juridicamente inseparável. Como no momento da aplicação da pena a solução política se sobrepõe à solução jurídica, o tribunal, ao acolher a acusação, pode deixar de aplicar a penalidade, total ou parcialmente, por motivo humanitário ou cálculo da oportunidade e conveniência.
Do ponto de vista estritamente jurídico, a pena prevista para o impeachment é uma só: perda do cargo com inabilitação para o exercício de função pública por oito anos. A preposição com é o traço de união indissolúvel entre as duas partes da pena. A técnica é a mesma do Código Penal que, para alguns crimes, estabelece pena mista: privativa de liberdade e pecuniária. Na respectiva aplicação, o juiz não pode dividir a pena. Quando muito, pode suspender a execução da pena pecuniária diante da pobreza do condenado. No impeachment, a pena também é mista e não deve ser dividida. A lei 1.079/1950 que regula o impeachment permite dois quesitos sobre a aplicação da pena. O primeiro é complexo: se o acusado cometeu o crime (importa em decisão jurídica) e se deve ser condenado à perda do cargo (importa em decisão política). Caso a resposta seja positiva, passa-se ao segundo quesito: por quanto tempo, não excedente de 5 (cinco) anos, o condenado deverá ficar inabilitado para o exercício de função pública (art. 68 + p.ú.). Este quesito supõe a inabilitação incluída na pena e cuida tão só da sua duração. A citada lei foi elaborada sob a Constituição de 1946 que previa a pena mista, mas a inabilitação era até 5 anos, o que permitia a redução (art. 62 § 3º). Já a Constituição de 1988 é taxativa: inabilitação por 8 anos; ou seja, não permite a redução (art. 52, p.ú.).
Em matéria de aplicação da pena no processo de impeachment, o aspecto político da decisão se sobrepõe ao aspecto jurídico. Há dois precedentes no Brasil: (1) O caso Collor, em que a inabilitação para função pública foi decretada mesmo com o presidente fora do cargo por ter renunciado tempestivamente. Apesar de inconstitucional, a decisão foi mantida graças ao alvoroço da opinião pública. A hipótese era de extinção do processo sem julgamento do mérito posto que a permanência do presidente no cargo, ainda que afastado da função presidencial, é "conditio sine qua non" para os trâmites processuais. (2) O caso Rousseff, em que não houve renúncia. Embora afastada da função presidencial, a titular ocupou o cargo até o fim do processo. O tribunal parlamentar aplicou-lhe só uma parte da pena. Decisão contraditória: de um lado, a perda do cargo (condenação) e de outro a habilitação para função pública (absolvição). A pena cominada ao crime de responsabilidade é uma unidade normativa que deve ser aplicada integralmente. Como exposto acima, o dispositivo constitucional é incompatível com a divisão.
No que tange à tipificação penal no processo de impeachment, a decisão condenatória deve ser estritamente jurídica e, por isto mesmo, sujeita ao controle judicial. A decisão do caso Rousseff não poderá servir de precedente a futuras ações porque lei posterior ao julgamento não mais considera crime de responsabilidade os atos que alicerçaram a acusação e a condenação (decretos de abertura de créditos baixados sem específica autorização do Congresso Nacional e a tomada de empréstimos junto à instituição financeira controlada pela União). Aliás, mesmo sob a égide da lei anterior, aqueles atos não tipificavam crime de responsabilidade. A decisão do tribunal parlamentar contrariou os fatos e o direito.
A tipificação penal feita pelo tribunal parlamentar teve curta existência. A sentença condenatória veio à luz no dia 31/08/2016, quando foi decretada a perda do cargo da Presidente da República. No dia seguinte (1º/09/2016), o Presidente da Câmara dos Deputados, no interino exercício da presidência da república, sancionou e promulgou a lei 13.332/2016, que deu nova redação ao artigo 4º e incisos, da lei 13.255/2016. Esta última (13.255) é a lei que estima a receita e fixa a despesa da União Federal para o exercício financeiro de 2016. Aquela primeira (13.332) é a lei que autoriza a abertura de créditos suplementares e põe como guia o programa orçamentário e financeiro. Em decorrência da nova lei, os atos que serviram de esteio à condenação deixaram de ser tipificados como crime de responsabilidade.
O Vice-Presidente da República praticou atos iguais aos da Presidente. Destarte, ele também perderia o cargo em decorrência da precedente decisão do tribunal no caso Rousseff. Então, veio a lei salvadora. A decisão do caso Rousseff não poderá mais ser aplicada como precedente no que tange à tipificação penal da conduta. O Vice-Presidente está blindado.
Há, entretanto, a outra face da moeda. Os congressistas pensaram que os efeitos retrospectivos da lei protegeriam apenas o Vice-Presidente. Todavia, a lei também beneficia a Presidente. Quando de algum modo beneficia o réu ou a ré,  a lei retroage, aplica-se aos fatos pretéritos. Se a nova lei afastou a nuvem que pairava sobre os fatos pretéritos, livre da pena está quem, por causa deles, foi condenado ou está sendo processado. Esta é a norma que vigora no sistema jurídico brasileiro.
Realmente, de acordo com a Constituição, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art.5º, XL). No mesmo diapasão, o Código Penal: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela, a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado” (art.2º + p.ú.).
Consequentemente, o condenado recupera os seus direitos. Exercer o mandato obtido por eleição direta e legítima é um direito da Presidente da República. Ela deve ser reintegrada no cargo porque de acordo com a nova lei o fato determinante da perda não se qualifica mais como crime de responsabilidade. A reintegração pode ocorrer: (1) com o espontâneo afastamento do sucessor que retornará ao cargo de Vice-Presidente tão logo notificado pela Presidente, ou (2) com o compulsório afastamento do sucessor mediante ordem judicial expedida pelo Supremo Tribunal Federal.

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