PRECONCEITO.
Durante partida de futebol na cidade de Porto Alegre,
no dia 28 de agosto de 2014, entre as equipes do Grêmio e do Santos, parte da
torcida brindou Aranha, o negro
goleiro santista, com outro apelido: “macaco”. Torcedores desse naipe só deviam
ser admitidos nos estádios se providos de boçal irremovível. Os zoólogos
certamente estranharam a insólita inclusão do aracnídeo na família simiesca. A
reação do goleiro harmoniza-se com a estranheza do cientista: afinal, quem é aranha não pode ser macaco. Reclamou junto ao árbitro. A agremiação hospedeira foi
excluída do campeonato por decisão do tribunal desportivo. Emissoras de
televisão fizeram do episódio um espetáculo. Colocaram-se como indignadas
defensoras das vítimas do racismo. As telas dos televisores estamparam o rosto
da moça que participou da afronta. A exaltada e gritalhona moça perdeu o
emprego e teve sua casa apedrejada e quase incendiada. Instaurou-se inquérito
policial na 4ª DP de Porto Alegre a fim de apurar a responsabilidade criminal dos
torcedores. Há pressão social para que os ofensores sejam punidos. A ação penal
depende da queixa do ofendido. A pena prevista é de reclusão de 1 a 3 anos e multa, quer o
enquadramento seja pelo código penal, quer o seja pela lei 7.716/89. A prática
do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível nos termos da vigente
Constituição da República.
A comparação entre o homem e o macaco vem exposta na
teoria científica da evolução biológica. No que tange à aparência, a comparação
do homem negro com o macaco não pareceu adequada ao saudoso professor,
antropólogo e escritor brasileiro Darci Ribeiro. Em entrevista dada a uma
emissora de televisão, esse professor, fundador da Universidade de Brasília,
fez esta interessante observação: “quem se parece mais com o macaco é o homem
branco e não o homem negro. O macaco e o homem branco têm lábios finos; o homem
negro tem lábios grossos”. O macaco e o homem branco são peludos; o negro não.
O homem negro fisicamente forte se parece com o gorila de couro escuro, mas não
pela fisionomia. O parentesco do homem com o símio tem servido a chacotas. Os
argentinos nos chamam de macaquitos.
Consideram os brasileiros pantomimeiros, burlescos imitadores de práticas
estrangeiras. Na minha mocidade havia esta provocação: “Aí, macacada; vamos nessa?”, embora no grupo
houvesse poucos morenos e nenhum negro. Usava-se também a expressão “cada macaco no seu galho” como advertência
contra intromissões indevidas, semelhante à advertência do escultor Miguel
Ângelo: “Não vá o sapateiro além das sandálias”.
Conceito e preconceito resultam da natureza racional,
volitiva e emocional dos humanos. O preconceito caracteriza-se pela ausência de
ponderação e de justificação racional. Expressão da vontade, o preconceito tem
sua base no sentimento. “Todo alemão é nazista”; “todo judeu é velhaco”; “todo
capitalista é amoral filho da puta”; “todo brasileiro é malandro”; “índio é
bicho preguiçoso”; “negro quando não caga na entrada caga na saída”; “lugar de
mulher é na cozinha”; são formulações preconceituosas. Discriminar é função própria da mente humana. Graças a essa aptidão
o homem progrediu no conhecimento vulgar, científico e filosófico. A
classificação dos objetos da natureza seria impossível sem a operação mental de
comparar e discriminar. Ao instituírem ordem política, social e econômica na
comunidade nacional, os legisladores discriminam pessoas, bens e relações
humanas segundo critérios de necessidade e de utilidade sintonizados com o
interesse geral. O preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, a prática do
racismo e a discriminação atentatória dos direitos fundamentais foram colocados
na esfera do ilícito pelo legislador constituinte brasileiro.
Se há censura jurídica é porque a conduta censurada
existe. No Brasil, há preconceito contra: negro, mulato, cafuzo, moreno, índio,
pobre, homossexual, mulher, caipira, faxineiro, nordestino. O racismo na Região
Sul ainda é forte. Os imigrantes europeus e descendentes discriminam os
brasileiros de pele escura. Na opinião deles, ora explícita, ora implícita, os
europeus para cá vieram a fim de produzir na lavoura e na pecuária porque “os
brasileiros são vagabundos e não gostam de trabalhar”. Entende-se aí por
“brasileiros” os nativos pobres e miseráveis (índios, negros, mestiços). Na
infância, eu era chamado de “negrinho”, “saci”, “tição” “macaquinho”, devido à
minha epiderme e agilidade. Não era xingamento e sim tratamento social
pejorativo. Sempre alvo dos olhares superiores daquela gente branca de olhos e
cabelos claros. Havia tratamento discriminatório carinhoso: “tiziu, nego,
neguinho”. Eu via aquilo com naturalidade: “as pessoas e o mundo são assim
mesmo”. A discriminação pela cor e pelo patrimônio fazia parte dos costumes
vigentes na região. Aquelas brancas pessoas gostavam de lembrar o meu lugar,
obviamente abaixo do lugar delas. Meus pais recomendavam: “respeite os mais
velhos; não responda; não seja malcriado”. O tratamento depreciativo vinha
principalmente dos mais velhos. Na época, quando ainda se ouvia o eco da
escravatura, a discriminação era explícita, integrada aos costumes da
sociedade. Daí a recente declaração de Pelé sobre condescender quando o
chamavam de macaco nos estádios. A
nossa geração nasceu e foi educada dentro daquela realidade social. De lá para
cá, houve mudança. Esse tipo de discriminação não é mais tolerado e adentrou o
campo da ilicitude.
E nem descendente de negros eu era! O meu avô paterno
descendia de português e de índia lá das bandas de Sergipe. O meu avô materno
descendia de português e de índia lá das bandas do Paraná. A minha avó paterna
era italiana, filha de imigrantes do norte da Itália (Tirol) e casou com meu
avô em São Paulo. A
minha avó materna era italiana, filha de imigrantes do sul da Itália (Calábria)
e casou com meu avô no Paraná. Na cidade de Ponta Grossa/PR, onde nasci, havia
segregação social não institucionalizada: bairros e colônias de brancos
(ucraínos, russos, holandeses) e bairro dos negros chamado de “buraco quente”.
Havia o clube exclusivo dos negros (“Treze de Maio”), o clube exclusivo dos
brancos ricos (“Sírio-Libanês”) e o clube exclusivo dos brancos remediados
(“Verde”). Meu pai tocava bateria na banda que organizou chamada Jazz Band Santana (nome do bairro
paulista onde ele nasceu) que animava as domingueiras tardes dançantes nesses
clubes. Em algumas, eu, menino, lá ia vê-lo tocar. Quando me avistava, ele
fazia malabarismo com as baquetas e sorria.
O tratamento social depreciativo cessou ainda na
adolescência, em Curitiba/PR, com o meu primeiro emprego de carteira profissional
assinada (grande Getúlio Vargas, pai dos pobres). Entretanto, os olhares
classificatórios continuaram. Quando as polaquinhas, as alemãzinhas e as
italianinhas descendentes de imigrantes se enamoravam do paranaense escurinho,
os pais ficavam em
polvorosa. Certamente, elas sofriam tanto quanto eu, mas os
pais ficavam felizes com o meu afastamento. Zelo compreensível dos pais. Eles
aspiravam bom marido para as filhas, de preferência rico, alto, gordo e de pele
alva. Eu era pobre, tez morena, estatura mediana, magro, seresteiro,
trabalhador e estudante. Pela castradora educação que recebi no lar não
deflorei nenhuma delas, embora oportunidade não faltasse. Beijos e bolina, sem
penetração. O hímen honrava a moça e a família. Rompê-lo era desonrá-las. A virgindade
era tabu, condição essencial para a moça casar. Deflorar era “fazer mal” à
moça. Se o sedutor não casasse com a seduzida, a pena era de prisão, ou de
morte por vingança do pai ou do irmão da moça. Solteira e sem cabaço, ela era
vista como pasto & puta. Os rapazes dela se aproximavam para comê-la e não
para casar. Quando o tabu foi para o espaço e a terra se abriu para a liberação
sexual, a minha galera já havia dobrado o cabo da boa esperança.
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