segunda-feira, 15 de setembro de 2014

PRECONCEITO



PRECONCEITO.

Durante partida de futebol na cidade de Porto Alegre, no dia 28 de agosto de 2014, entre as equipes do Grêmio e do Santos, parte da torcida brindou Aranha, o negro goleiro santista, com outro apelido: “macaco”. Torcedores desse naipe só deviam ser admitidos nos estádios se providos de boçal irremovível. Os zoólogos certamente estranharam a insólita inclusão do aracnídeo na família simiesca. A reação do goleiro harmoniza-se com a estranheza do cientista: afinal, quem é aranha não pode ser macaco. Reclamou junto ao árbitro. A agremiação hospedeira foi excluída do campeonato por decisão do tribunal desportivo. Emissoras de televisão fizeram do episódio um espetáculo. Colocaram-se como indignadas defensoras das vítimas do racismo. As telas dos televisores estamparam o rosto da moça que participou da afronta. A exaltada e gritalhona moça perdeu o emprego e teve sua casa apedrejada e quase incendiada. Instaurou-se inquérito policial na 4ª DP de Porto Alegre a fim de apurar a responsabilidade criminal dos torcedores. Há pressão social para que os ofensores sejam punidos. A ação penal depende da queixa do ofendido. A pena prevista é de reclusão de 1 a 3 anos e multa, quer o enquadramento seja pelo código penal, quer o seja pela lei 7.716/89. A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível nos termos da vigente Constituição da República.

A comparação entre o homem e o macaco vem exposta na teoria científica da evolução biológica. No que tange à aparência, a comparação do homem negro com o macaco não pareceu adequada ao saudoso professor, antropólogo e escritor brasileiro Darci Ribeiro. Em entrevista dada a uma emissora de televisão, esse professor, fundador da Universidade de Brasília, fez esta interessante observação: “quem se parece mais com o macaco é o homem branco e não o homem negro. O macaco e o homem branco têm lábios finos; o homem negro tem lábios grossos”. O macaco e o homem branco são peludos; o negro não. O homem negro fisicamente forte se parece com o gorila de couro escuro, mas não pela fisionomia. O parentesco do homem com o símio tem servido a chacotas. Os argentinos nos chamam de macaquitos. Consideram os brasileiros pantomimeiros, burlescos imitadores de práticas estrangeiras. Na minha mocidade havia esta provocação: “Aí, macacada; vamos nessa?”, embora no grupo houvesse poucos morenos e nenhum negro. Usava-se também a expressão “cada macaco no seu galho” como advertência contra intromissões indevidas, semelhante à advertência do escultor Miguel Ângelo: “Não vá o sapateiro além das sandálias”.          

Conceito e preconceito resultam da natureza racional, volitiva e emocional dos humanos. O preconceito caracteriza-se pela ausência de ponderação e de justificação racional. Expressão da vontade, o preconceito tem sua base no sentimento. “Todo alemão é nazista”; “todo judeu é velhaco”; “todo capitalista é amoral filho da puta”; “todo brasileiro é malandro”; “índio é bicho preguiçoso”; “negro quando não caga na entrada caga na saída”; “lugar de mulher é na cozinha”; são formulações preconceituosas. Discriminar é função própria da mente humana. Graças a essa aptidão o homem progrediu no conhecimento vulgar, científico e filosófico. A classificação dos objetos da natureza seria impossível sem a operação mental de comparar e discriminar. Ao instituírem ordem política, social e econômica na comunidade nacional, os legisladores discriminam pessoas, bens e relações humanas segundo critérios de necessidade e de utilidade sintonizados com o interesse geral. O preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, a prática do racismo e a discriminação atentatória dos direitos fundamentais foram colocados na esfera do ilícito pelo legislador constituinte brasileiro.

Se há censura jurídica é porque a conduta censurada existe. No Brasil, há preconceito contra: negro, mulato, cafuzo, moreno, índio, pobre, homossexual, mulher, caipira, faxineiro, nordestino. O racismo na Região Sul ainda é forte. Os imigrantes europeus e descendentes discriminam os brasileiros de pele escura. Na opinião deles, ora explícita, ora implícita, os europeus para cá vieram a fim de produzir na lavoura e na pecuária porque “os brasileiros são vagabundos e não gostam de trabalhar”. Entende-se aí por “brasileiros” os nativos pobres e miseráveis (índios, negros, mestiços). Na infância, eu era chamado de “negrinho”, “saci”, “tição” “macaquinho”, devido à minha epiderme e agilidade. Não era xingamento e sim tratamento social pejorativo. Sempre alvo dos olhares superiores daquela gente branca de olhos e cabelos claros. Havia tratamento discriminatório carinhoso: “tiziu, nego, neguinho”. Eu via aquilo com naturalidade: “as pessoas e o mundo são assim mesmo”. A discriminação pela cor e pelo patrimônio fazia parte dos costumes vigentes na região. Aquelas brancas pessoas gostavam de lembrar o meu lugar, obviamente abaixo do lugar delas. Meus pais recomendavam: “respeite os mais velhos; não responda; não seja malcriado”. O tratamento depreciativo vinha principalmente dos mais velhos. Na época, quando ainda se ouvia o eco da escravatura, a discriminação era explícita, integrada aos costumes da sociedade. Daí a recente declaração de Pelé sobre condescender quando o chamavam de macaco nos estádios. A nossa geração nasceu e foi educada dentro daquela realidade social. De lá para cá, houve mudança. Esse tipo de discriminação não é mais tolerado e adentrou o campo da ilicitude.

E nem descendente de negros eu era! O meu avô paterno descendia de português e de índia lá das bandas de Sergipe. O meu avô materno descendia de português e de índia lá das bandas do Paraná. A minha avó paterna era italiana, filha de imigrantes do norte da Itália (Tirol) e casou com meu avô em São Paulo. A minha avó materna era italiana, filha de imigrantes do sul da Itália (Calábria) e casou com meu avô no Paraná. Na cidade de Ponta Grossa/PR, onde nasci, havia segregação social não institucionalizada: bairros e colônias de brancos (ucraínos, russos, holandeses) e bairro dos negros chamado de “buraco quente”. Havia o clube exclusivo dos negros (“Treze de Maio”), o clube exclusivo dos brancos ricos (“Sírio-Libanês”) e o clube exclusivo dos brancos remediados (“Verde”). Meu pai tocava bateria na banda que organizou chamada Jazz Band Santana (nome do bairro paulista onde ele nasceu) que animava as domingueiras tardes dançantes nesses clubes. Em algumas, eu, menino, lá ia vê-lo tocar. Quando me avistava, ele fazia malabarismo com as baquetas e sorria.

O tratamento social depreciativo cessou ainda na adolescência, em Curitiba/PR, com o meu primeiro emprego de carteira profissional assinada (grande Getúlio Vargas, pai dos pobres). Entretanto, os olhares classificatórios continuaram. Quando as polaquinhas, as alemãzinhas e as italianinhas descendentes de imigrantes se enamoravam do paranaense escurinho, os pais ficavam em polvorosa. Certamente, elas sofriam tanto quanto eu, mas os pais ficavam felizes com o meu afastamento. Zelo compreensível dos pais. Eles aspiravam bom marido para as filhas, de preferência rico, alto, gordo e de pele alva. Eu era pobre, tez morena, estatura mediana, magro, seresteiro, trabalhador e estudante. Pela castradora educação que recebi no lar não deflorei nenhuma delas, embora oportunidade não faltasse. Beijos e bolina, sem penetração. O hímen honrava a moça e a família. Rompê-lo era desonrá-las. A virgindade era tabu, condição essencial para a moça casar. Deflorar era “fazer mal” à moça. Se o sedutor não casasse com a seduzida, a pena era de prisão, ou de morte por vingança do pai ou do irmão da moça. Solteira e sem cabaço, ela era vista como pasto & puta. Os rapazes dela se aproximavam para comê-la e não para casar. Quando o tabu foi para o espaço e a terra se abriu para a liberação sexual, a minha galera já havia dobrado o cabo da boa esperança. 

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