EUROPA (1600
a 1800). Continuação.
No que tange aos seres
morais, Locke faz a seguinte observação: consideramos
os modelos originais como existindo na mente e a eles nos referimos para
distingui-los dos seres particulares sob esses nomes. A mais desenvolvida noção de deus consiste apenas em
atribuir as mesmas idéias simples que adquirimos pela reflexão acerca do que
descobrimos em nós mesmos e que concebemos ter mais perfeição nelas do que
seria em suas abstrações. Tendo desse modo adquirido a idéia da existência, do
conhecimento, do poder e do prazer – cada uma das quais achamos melhor ter do
que não ter – reunindo todas com a infinidade, temos a idéia complexa de um ser
eterno, onisciente, onipotente, sábio e feliz. Deve haver mais espécies das
criaturas inteligentes acima de nós do que há das sensíveis e materiais abaixo
de nós, pois em todo o mundo corpóreo e visível não vemos brechas ou intervalos.
Tudo que se encontra abaixo de nós provém de pequenos passos formando uma série
contínua de coisas que em cada afastamento diferem muito pouco entre si. Os
reinos animal e vegetal estão aproximados de tal modo que, se apanhamos o grau
mais inferior de um e o mais superior do outro, haverá insuficiente percepção
de qualquer grande diferença entre eles. Procedendo assim até chegarmos às
partes mais inorgânicas da matéria descobriremos que as várias espécies estão
ligadas e diferem apenas por graus quase insensíveis. [O graveto só é percebido como animal quando se move, pois quando
imóvel, não se distingue do graveto vegetal. Há conexão até entre galáxias
conforme constataram astrônomos do século XXI].
A fala tem por finalidade
comunicar noções do modo mais fácil e breve. As palavras são usadas para
registrar e comunicar nossos pensamentos. O sujeito pode registrar suas idéias
com o nome que lhe aprouver no propósito de auxiliar a própria memória. As
imperfeições das palavras consistem na incerteza dos seus significados. O uso
ordinário regula o significado das palavras de modo satisfatório à conversa
cotidiana, mas ninguém tem autoridade para estabelecer o significado exato de
palavras, nem determinar a que idéia alguém deve anexá-las, pois o uso
ordinário não é suficiente para adaptá-las aos tratados filosóficos. Nas bocas
dos homens, as palavras morais são pouco mais do que sons vazios quando eles
desconhecem o verdadeiro e exato sentido dos nomes. Geralmente, as pessoas
conhecem e usam as palavras morais sem saber quais idéias complexas significam.
Os homens discordam do significado de palavras como fé, religião, justiça,
honra, porque não têm a mesma
idéia complexa que formaria os significados de tais palavras.
O abuso mais palpável na
linguagem consiste no uso de palavras sem idéias claras e distintas ou, o que é
pior, sinais sem nenhuma coisa significativa como acontece em várias seitas
filosóficas e religiosas cujos agentes assumem algo singular e apartado da
compreensão ordinária, apóiam opiniões estranhas, encobrem a fraqueza das suas
hipóteses cunhando palavras novas que bem examinadas revelam-se apenas como
termos sem significado algum. Esse abuso é ampliado quando palavras de escasso
significado são anexadas a outras em voga ou a novas. Assim, por exemplo, para
conferir maior autoridade ao seu hermético discurso, o agente emprega palavras
como justiça, glória, sabedoria, graça, freqüentes na boca dos homens,
mas que a maioria deles não sabe o que significa na realidade. Outro abuso é a
aplicação instável das mesmas palavras, ora a uma coleção de idéias, ora a
outra, num mesmo discurso. Consiste em clara fraude e evidente abuso quando,
por imposição voluntária, o agente emprega, no mesmo discurso, a mesma palavra
com significados diferentes e até opostos. Abusa-se da linguagem também pela
exagerada obscuridade, seja por aplicar velhas palavras para novos e incomuns
significados, ou introduzir termos novos e ambíguos sem defini-los, seja por
uni-los de modo tal que podem confundir seu sentido ordinário. A filosofia
peripatética e outras seitas filosóficas praticam esse tipo de abuso.
Devido ao longo uso familiar
de algumas palavras, quando os homens anexam-nas a certas idéias são levados a
imaginar uma conexão tão próxima e necessária entre os nomes e os significados
que puseram nelas que supõem imediatamente que não se pode deixar de entender o
que querem dizer e, portanto, deve-se concordar com as palavras emitidas como
se não houvesse mais dúvidas de que, no uso ordinário desses sons recebidos,
quem fala e quem ouve tivesse necessariamente as mesmas e exatas idéias. Esse
abuso tem devastado o mundo intelectual. A maioria dos desacordos nas disputas
entre homens eruditos decorre do fato de falarem linguagens diferentes. Se
fossem omitidas as palavras, ver-se-ia que em inúmeros casos o pensamento dos
contendores é o mesmo. Em suma: as palavras de quem tem nomes sem idéias
carecem de sentido; fala apenas sons vazios. Quem tem idéias complexas
desprovidas dos respectivos nomes encontra-se sem liberdade e sem rapidez em
suas expressões sendo obrigado a usar perífrases. Quem usa palavras de modo
descuidado e irregular não será levado em consideração ou entendido. Quem
aplica nomes para idéias de modo diverso do uso ordinário carece de propriedade
em sua linguagem e fala algaravia. Quem tem idéias de substâncias discordantes
com a existência real das coisas carece dos materiais do conhecimento
verdadeiro em seu entendimento; tem quimeras, apenas.
Justiça é uma palavra na boca das
pessoas normalmente com significado muito vago e indeterminado. Assim será sempre, a menos que o homem tenha em sua mente uma
compreensão distinta das partes componentes que constituem essa idéia complexa.
Se for decomposta, essa idéia complexa deve ser apta para continuar a
reduzir-se até que alcance, finalmente, a idéia simples que a formou. A menos
que isto seja feito, um homem emprega muito mal a palavra, seja ela justiça
ou qualquer outra. Sendo a justiça e
a verdade os laços comuns da
sociedade, mesmo os proscritos e os ladrões seguem regras de equidade, pois do
contrário não se manteriam unidos. A pessoa tem o direito de indagar sobre o
fundamento da regra moral. A virtude geralmente é aprovada – não porque seja
inata – mas por ser proveitosa. Há princípios éticos opostos que vigoram no
seio de diferentes nações. A discordância é comum entre os homens, o que indica
a inexistência de idéias inatas.
A maneira mais apropriada
para tornar conhecido o significado das palavras é a definição. Há certas
palavras que não comportam definição e outras cujo sentido exato não pode
tornar-se conhecido pela definição apenas, caso em que o esclarecimento se dá
por meio de sinônimos. A moral é capaz de demonstração tanto quanto a
matemática, desde que a essência real e exata das coisas que as palavras
morais significam possa ser perfeitamente conhecida e, assim, a congruência ou
incongruência das próprias coisas serem descobertas com certeza. Nisto consiste
o perfeito conhecimento. O espiritual que inclui o moral existe em nossa mente.
Tais conceitos não encontram correspondência na natureza. São de origem humana
ou divina. A natureza pode inspirar pensamentos morais e religiosos. Os
discursos morais devem ser tão claros quanto os da filosofia natural.
Conhecimento
consiste apenas nisto: percepção do
acordo ou desacordo de duas idéias. Onde se manifesta essa percepção há
conhecimento. Ausente tal percepção, podemos crer, adivinhar, imaginar, porém
nos encontramos distantes do conhecer. Identidade ou diversidade é o primeiro tipo de acordo ou
desacordo. O tipo de acordo e desacordo que a mente percebe em quaisquer de
suas idéias pode ser denominado relativo. A mente percebe uma relação evidente
entre as suas idéias e descobre o acordo ou desacordo que elas têm entre si,
comparando-as de diversas maneiras.
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