EUROPA (1600
a 1800). Continuação.
Na lição de Locke, a evidência do conhecimento tem dois graus: o intuitivo
e o demonstrativo. No primeiro grau, a mente percebe o acordo ou o desacordo
de duas idéias imediatamente por elas mesmas, sem a intervenção de
qualquer outra, sem necessidade de provar ou de examinar. A mente percebe a
verdade como o olho faz com a luz apenas por lhe estar dirigida. No segundo
grau, a mente percebe o acordo ou o desacordo de quaisquer idéias mediatamente;
serve-se de outras idéias intermediárias como prova. A esta operação mental chamamos
raciocínio; às idéias intervenientes chamamos provas.
Onde o acordo ou o desacordo é evidenciado e percebido por esse método há demonstração. No grau demonstrativo há
sempre uma dúvida inicial que precede a operação enquanto no grau intuitivo isto
não acontece. O grau demonstrativo não tem as mesmas clareza e segurança que
acompanham o grau intuitivo. A evidência advinda do procedimento demonstrativo
não é apanágio exclusivo dos matemáticos.
Costuma-se restringir a
demonstração à matemática porque a quantidade é mais adequada a esse
propósito. Entretanto, a qualidade também pode ser objeto de
demonstração, embora seja mais difícil de apurar com exatidão a igualdade e a
diferença. O que não corresponder aos dois graus do conhecimento (intuição e demonstração) será apenas opinião ou fé. Cabe um terceiro
grau: o conhecimento sensitivo, outra percepção da
particular existência de seres finitos exteriores a nós que vai além da probabilidade,
mas aquém dos outros dois graus de certeza. Em cada tipo de conhecimento
(intuitivo, demonstrativo e sensitivo) há diferente graduação da evidência e da
certeza. Conheço intuitivamente a diferença entre duas figuras geométricas, mas
só por demonstração podemos chegar ao acordo e desacordo entre elas quanto à
igualdade dos seus ângulos. O meio difuso e tênue do universo, o tecido cósmico
no qual o universo está bordado, pode ser considerado alma, misto de matéria e inteligência. A definição de alma está fora do alcance do
entendimento humano. [O plasma cósmico
vislumbrado pela Física contemporânea está bem próximo desse pensamento de
Locke].
A moral pode situar-se
entre as ciências capazes de demonstração. Os fundamentos para tanto são as
idéias da existência de deus (infinito, bondade, saber, poder) e de ser humano
(criatura divina inteligente). As proposições “onde não há propriedade não há
injustiça” e “nenhum governo permite liberdade absoluta” são tão evidentes
quanto qualquer demonstração de Euclides. Se não houver propriedade não haverá
violação desse direito. A idéia de governo implica a de mando e obediência, a
de presença de leis que devem ser cumpridas, o que limita a liberdade dos
governados. A evidência resultante do processo de conhecimento é comum às
relações matemáticas e às éticas. A
falta de representação sensível e a complexidade fizeram com que as idéias
morais fossem consideradas incapazes de demonstração.
No que tange à existência real e atual das coisas, temos: (1) conhecimento
intuitivo da nossa própria existência; (2) conhecimento demonstrativo da existência de deus; (3) conhecimento sensitivo de outra coisa
qualquer que não vá além do objeto presente aos nossos sentidos. Por ignorarmos
o que ocorre na maior parte do universo não significa a inexistência de seres
extraterrestres em outras mansões. Diga-se o mesmo do nível microscópico, dos
corpúsculos insensíveis que são a parte ativa da matéria e os grandes
instrumentos da natureza. Certeza e demonstração são coisas que não devemos
almejar sobre a estrutura e o funcionamento íntimo das coisas, das qualidades
primárias da matéria, das quais nos faltam idéias adequadas e precisas. [A
Física contemporânea com o seu princípio da incerteza endossa as assertivas de
Locke]. Quem poderá saber, através da sua própria pesquisa e habilidade, se há
graus de seres espirituais entre os homens e deus? {Haverá uma hierarquia
celestial?}. Estamos em absoluta ignorância quanto à existência, natureza,
poderes, características e propriedades dos seres espirituais. [A
parapsicologia e as experiências espíritas buscam a prova convincente da
existência de seres espirituais, mas para parcela da humanidade o assunto por
enquanto permanece no campo da fé]. A verdade é uma correta união ou separação
de sinais (idéias ou palavras) e o modo pelos quais as coisas significadas por
eles concordam ou discordam entre si. A união ou separação de sinais forma proposição
verbal quando corresponde às
palavras e proposição mental quando corresponde
às idéias. A verdade se diz formal quando
os termos são reunidos segundo apenas o acordo ou o desacordo das idéias que
significam, sem considerar se elas correspondem a objetos extensos ou da
natureza. A verdade se diz material quando
nessa operação as idéias têm correspondência em objetos extensos ou da natureza.
Máximas são proposições evidentes por si mesmas (axiomáticas)
que fundamentam o pensamento científico. Quando o acordo ou desacordo das
nossas idéias é percebido sem intervenção ou auxílio de qualquer outra idéia ou
coisa, o nosso conhecimento é evidente por si mesmo. O primeiro ato da mente
consiste em conhecer cada uma das suas idéias por si mesmas e distingui-las das
outras (identidade x diversidade). Exemplos de máximas: “o que é, é” {princípio
da identidade}; “uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob as
mesmas condições” {princípio da contradição}; “dois corpos não podem ocupar o
mesmo lugar ao mesmo tempo”; “um mais um é igual a dois” (1+1=2); “subtraindo
quantidades iguais o resto será igual” (axiomas matemáticos). As máximas ajudam
na transmissão do conhecimento e são úteis na argumentação para lograr uma
conclusão adequada e conseqüente. Os
debates são considerados a pedra de toque da habilidade dos homens. [Isto foi escrito no século XVII. Ainda
é assim no século XXI. Nos tribunais judiciários, a força do argumento está na
sua conformidade à prova produzida nos autos do processo. Nem sempre vence o
argumento formalmente melhor elaborado, quer por ter o adversário produzido
prova mais robusta, quer por estar o magistrado sensível ao tráfico de
influência, ao preconceito e às crenças religiosas e ideológicas]. Sob
influência da escolástica, as máximas foram tomadas como princípios do
conhecimento além dos quais os debatedores não podiam ir sem incorrer em desaprovação. A
máxima era o limite.
Estamos providos dos meios
para conhecer deus: sentidos, percepção, razão. A impressão que deus faz na
mente humana é revelação original. A
distribuição dessa impressão a outrem mediante palavras é revelação tradicional. Esta última pode fazer-nos conhecer
proposições cognoscíveis também pela razão. A revelação não pode prevalecer
contra a evidência da razão. A fé não pode ocupar o lugar da razão e
vice-versa. As respectivas províncias devem ter seus marcos de fronteira. O
interdito da religião aos homens para manter a razão afastada das coisas do
espírito gerou opiniões e ensinamentos extravagantes, ridículos e insensatos.
Essa loucura não pode ser religião nem receber o aval de deus. Se o mundo teve
um começo, alguém o produziu [o mundo teve um começo?]. Esse criador está
dotado de um poder superior ao de qualquer criatura. Esta recebe seus poderes
da fonte, do ser mais poderoso. Tendo a criatura percepção e conhecimento,
tê-lo-á em maior grau o criador. Há um ser eterno, poderoso e sábio. Afigura-se
impossível o nada ser origem da
existência {“o nada não pode dar
origem a alguma coisa”}. Todas as coisas no universo estão em conexão. Suas
qualidades observáveis, seus poderes e ação resultam de algo externo a elas. As
coisas, por mais absolutas e completas que pareçam em si mesmas, são apenas
dependentes de outras partes da natureza {interdependência de todas as coisas
no universo}. Somos adequados para o conhecimento moral e para desvendar o summum
bonum. As hipóteses quando bem formuladas são grandes auxiliares da memória
e orientam para as novas descobertas. As faculdades do entendimento destinam-se
à especulação e à conduta do homem em sua vida.
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