quarta-feira, 10 de setembro de 2014

FILOSOFIA XIII - 27



EUROPA (1600 a 1800). Continuação.

Na lição de Locke, a evidência do conhecimento tem dois graus: o intuitivo e o demonstrativo. No primeiro grau, a mente percebe o acordo ou o desacordo de duas idéias imediatamente por elas mesmas, sem a intervenção de qualquer outra, sem necessidade de provar ou de examinar. A mente percebe a verdade como o olho faz com a luz apenas por lhe estar dirigida. No segundo grau, a mente percebe o acordo ou o desacordo de quaisquer idéias mediatamente; serve-se de outras idéias intermediárias como prova. A esta operação mental chamamos raciocínio; às idéias intervenientes chamamos provas. Onde o acordo ou o desacordo é evidenciado e percebido por esse método há demonstração. No grau demonstrativo há sempre uma dúvida inicial que precede a operação enquanto no grau intuitivo isto não acontece. O grau demonstrativo não tem as mesmas clareza e segurança que acompanham o grau intuitivo. A evidência advinda do procedimento demonstrativo não é apanágio exclusivo dos matemáticos.

Costuma-se restringir a demonstração à matemática porque a quantidade é mais adequada a esse propósito. Entretanto, a qualidade também pode ser objeto de demonstração, embora seja mais difícil de apurar com exatidão a igualdade e a diferença. O que não corresponder aos dois graus do conhecimento (intuição e demonstração) será apenas opinião ou . Cabe um terceiro grau: o conhecimento sensitivo, outra percepção da particular existência de seres finitos exteriores a nós que vai além da probabilidade, mas aquém dos outros dois graus de certeza. Em cada tipo de conhecimento (intuitivo, demonstrativo e sensitivo) há diferente graduação da evidência e da certeza. Conheço intuitivamente a diferença entre duas figuras geométricas, mas só por demonstração podemos chegar ao acordo e desacordo entre elas quanto à igualdade dos seus ângulos. O meio difuso e tênue do universo, o tecido cósmico no qual o universo está bordado, pode ser considerado alma, misto de matéria e inteligência. A definição de alma está fora do alcance do entendimento humano. [O plasma cósmico vislumbrado pela Física contemporânea está bem próximo desse pensamento de Locke].  

A moral pode situar-se entre as ciências capazes de demonstração. Os fundamentos para tanto são as idéias da existência de deus (infinito, bondade, saber, poder) e de ser humano (criatura divina inteligente). As proposições “onde não há propriedade não há injustiça” e “nenhum governo permite liberdade absoluta” são tão evidentes quanto qualquer demonstração de Euclides. Se não houver propriedade não haverá violação desse direito. A idéia de governo implica a de mando e obediência, a de presença de leis que devem ser cumpridas, o que limita a liberdade dos governados. A evidência resultante do processo de conhecimento é comum às relações matemáticas e às éticas. A falta de representação sensível e a complexidade fizeram com que as idéias morais fossem consideradas incapazes de demonstração.

No que tange à existência real e atual das coisas, temos: (1) conhecimento intuitivo da nossa própria existência; (2) conhecimento demonstrativo da existência de deus; (3) conhecimento sensitivo de outra coisa qualquer que não vá além do objeto presente aos nossos sentidos. Por ignorarmos o que ocorre na maior parte do universo não significa a inexistência de seres extraterrestres em outras mansões. Diga-se o mesmo do nível microscópico, dos corpúsculos insensíveis que são a parte ativa da matéria e os grandes instrumentos da natureza. Certeza e demonstração são coisas que não devemos almejar sobre a estrutura e o funcionamento íntimo das coisas, das qualidades primárias da matéria, das quais nos faltam idéias adequadas e precisas. [A Física contemporânea com o seu princípio da incerteza endossa as assertivas de Locke]. Quem poderá saber, através da sua própria pesquisa e habilidade, se há graus de seres espirituais entre os homens e deus? {Haverá uma hierarquia celestial?}. Estamos em absoluta ignorância quanto à existência, natureza, poderes, características e propriedades dos seres espirituais. [A parapsicologia e as experiências espíritas buscam a prova convincente da existência de seres espirituais, mas para parcela da humanidade o assunto por enquanto permanece no campo da fé]. A verdade é uma correta união ou separação de sinais (idéias ou palavras) e o modo pelos quais as coisas significadas por eles concordam ou discordam entre si. A união ou separação de sinais forma proposição verbal quando corresponde às palavras e proposição mental quando corresponde às idéias. A verdade se diz formal quando os termos são reunidos segundo apenas o acordo ou o desacordo das idéias que significam, sem considerar se elas correspondem a objetos extensos ou da natureza. A verdade se diz material quando nessa operação as idéias têm correspondência em objetos extensos ou da natureza.

Máximas são proposições evidentes por si mesmas (axiomáticas) que fundamentam o pensamento científico. Quando o acordo ou desacordo das nossas idéias é percebido sem intervenção ou auxílio de qualquer outra idéia ou coisa, o nosso conhecimento é evidente por si mesmo. O primeiro ato da mente consiste em conhecer cada uma das suas idéias por si mesmas e distingui-las das outras (identidade x diversidade). Exemplos de máximas: “o que é, é” {princípio da identidade}; “uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob as mesmas condições” {princípio da contradição}; “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo”; “um mais um é igual a dois” (1+1=2); “subtraindo quantidades iguais o resto será igual” (axiomas matemáticos). As máximas ajudam na transmissão do conhecimento e são úteis na argumentação para lograr uma conclusão adequada e conseqüente. Os debates são considerados a pedra de toque da habilidade dos homens. [Isto foi escrito no século XVII. Ainda é assim no século XXI. Nos tribunais judiciários, a força do argumento está na sua conformidade à prova produzida nos autos do processo. Nem sempre vence o argumento formalmente melhor elaborado, quer por ter o adversário produzido prova mais robusta, quer por estar o magistrado sensível ao tráfico de influência, ao preconceito e às crenças religiosas e ideológicas]. Sob influência da escolástica, as máximas foram tomadas como princípios do conhecimento além dos quais os debatedores não podiam ir sem incorrer em desaprovação. A máxima era o limite.

Estamos providos dos meios para conhecer deus: sentidos, percepção, razão. A impressão que deus faz na mente humana é revelação original. A distribuição dessa impressão a outrem mediante palavras é revelação tradicional. Esta última pode fazer-nos conhecer proposições cognoscíveis também pela razão. A revelação não pode prevalecer contra a evidência da razão. A fé não pode ocupar o lugar da razão e vice-versa. As respectivas províncias devem ter seus marcos de fronteira. O interdito da religião aos homens para manter a razão afastada das coisas do espírito gerou opiniões e ensinamentos extravagantes, ridículos e insensatos. Essa loucura não pode ser religião nem receber o aval de deus. Se o mundo teve um começo, alguém o produziu [o mundo teve um começo?]. Esse criador está dotado de um poder superior ao de qualquer criatura. Esta recebe seus poderes da fonte, do ser mais poderoso. Tendo a criatura percepção e conhecimento, tê-lo-á em maior grau o criador. Há um ser eterno, poderoso e sábio. Afigura-se impossível o nada ser origem da existência {“o nada não pode dar origem a alguma coisa”}. Todas as coisas no universo estão em conexão. Suas qualidades observáveis, seus poderes e ação resultam de algo externo a elas. As coisas, por mais absolutas e completas que pareçam em si mesmas, são apenas dependentes de outras partes da natureza {interdependência de todas as coisas no universo}. Somos adequados para o conhecimento moral e para desvendar o summum bonum. As hipóteses quando bem formuladas são grandes auxiliares da memória e orientam para as novas descobertas. As faculdades do entendimento destinam-se à especulação e à conduta do homem em sua vida.

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