sábado, 2 de junho de 2012

AMOR E JUSTIÇA


A falta de amor aos filhos, por ser atípica, não gera efeitos jurídicos. A censura limita-se ao campo da moral, da religião e do misticismo, sempre que a existência de Deus for aceita sem reservas como fonte da vida (alma universal), da luz (inteligência) e do amor (força afetiva essencial). No sentido amplo, amor é força atrativa inerente à vida. Em nível micro cósmico, essa força estrutura átomos, moléculas e células. Em nível macro cósmico, essa força estrutura sistemas estelares e galáxias. Os cientistas, no extremo das investigações nucleares e das investigações astrofísicas, incapazes de identificar a fonte, consideram essa força gerada espontaneamente. Em biologia também se acreditava na geração espontânea de bactérias até que no século XVIII (1701-1800) Lavoisier, após experiência em laboratório, provou o contrário. A fonte da energia fundamental do universo aguarda um novo Lavoisier para ser descoberta na área científica. A física contemporânea chegou à fronteira do conhecimento racional nessa direção. A partir daí, entram a intuição, a imaginação e a fé. Adentra-se ao vasto campo da incerteza, da opinião e da ignorância, arena onde se digladiam ateus, teístas, religiões, ideologias e filosofias de vida. Cada qual reivindica para si o monopólio da verdade. Em nome da divindade e da verdade geram rivalidades e conflitos bélicos cujo registro histórico é o incômodo testemunho da estupidez humana.

O germinar da semente, o florescimento do broto, o desabrochar da flor, constituem movimentos amorosos no reino vegetal. Impelidos por essa força afetiva essencial, animais da mesma espécie se unem para acasalamento e vivem em grupo; as fêmeas alimentam os filhotes e os defendem com zelo; os machos se mantêm distantes e indiferentes (às vezes, matam os filhotes). O ambiente uterino e a amamentação provocam o amor visceral entre mãe e filho. Comparada à materna, débil é a ligação amorosa entre pai e filho. Na relação humana bilateral, a força afetiva vai além do nível biológico e desperta brandura, ternura, carinho, entre a mulher e o homem; entre filhos e pais; entre irmãos; entre parentes e amigos. O alvo da estima sem reciprocidade pode ser a terra natal, a casa, o jardim, a boneca, a bicicleta, o automóvel, o clube esportivo, a profissão, o livro, a arte, o saber, a santidade. Algumas vezes, a afeição por pessoas, bichos, coisas, virtudes, santos, deuses, chega ao ponto da devoção e veneração.

No plano religioso e místico, há o dever de amar o próximo: cônjuge, filho, parente, amigo, inimigo. No plano jurídico esse dever não se ajusta. Sobre matéria de foro íntimo o Estado não tem autoridade. O direito disciplina a conduta ativa ou omissiva, mas não o sentimento ou o pensamento. Estes apenas entram na análise da ação ou da omissão para se compreender os motivos e avaliar o grau de culpa. Para os cristãos, amar é mandamento, segundo lição atribuída ao profeta Jesus: “Amarás o senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo teu espírito, e amarás o teu próximo como a ti mesmo”. “Tendes ouvido o que foi dito: amarás o teu próximo e odiarás teu inimigo; eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem.” Como os discípulos davam mostra de rivalidade, o profeta recomendou amor fraterno na esperança de que entre eles não houvesse disputa. Acrescentou, pois, o mandamento: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amo. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos.” ((Mateus 5: 43/44 + 22: 37/39; João 15: 12/13).
  
Sentimentos opostos de amor e ódio no discurso e na prática de Jesus revelam nele a incoerência própria do ser humano. Diz o mestre e profeta: Não julgueis que vim trazer a paz a Terra. Vim trazer – não a paz – mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa. Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a mim, não é digno de mim. Quem ama seu filho mais que a mim, não é digno de mim. Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs, sim, até sua própria vida, não pode ser meu discípulo. O irmão entregará à morte o irmão, e o pai o filho; e os filhos insurgir-se-ão contra os pais e dar-lhes-ão a morte. (Mateus 10: 34/37; Lucas 13: 51/53 + 14: 26; Marcos 13: 12).

Jesus ora prega amor e paz, ora prega ódio e guerra. Mostra a sua face angelical no sermão da montanha ao falar dos bem aventurados. Mostra a sua face demoníaca no templo quando chicoteia os mercadores e tomba as mesas. Mostra a face angelical ao se compadecer da mulher adúltera. Mostra a face demoníaca ao desafiar e ofender os fariseus, escribas e sacerdotes, amaldiçoar cidades, secar a figueira, rogar pragas. Jesus manda que haja amor fraterno entre os apóstolos, mas humilha publicamente a mãe e os irmãos quando o procuraram. O acesso estava difícil. Alguém avisou: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora e desejam ver-te”. De modo petulante, Jesus indaga: quem é minha mãe e quem são meus irmãos? Em atitude que sugere demagogia, aponta com as mãos para os discípulos ali reunidos e ele mesmo responde: eis aqui minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, e minha irmã e minha mãe. A mãe e os irmãos de sangue ficaram ao relento como se não fossem dignos do profeta e do seu deus. A ironia é companheira da história: depois da crucifixão do profeta, seus irmãos de sangue, Tiago e Judas Tadeu, propagaram a nova doutrina. Tiago foi morto quando era líder (bispo) da nova igreja em Jerusalém.  (Mateus 12: 46/50 + 24: 1/2; Lucas 8: 19/21 + 21: 5/6; Marcos 3: 31/35 + 13: 1/2).

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