quinta-feira, 29 de julho de 2010

POESIA

E agora José? / A festa acabou / a luz apagou / o povo sumiu / a noite esfriou / e agora José? / e agora, Joaquim? / e agora, você? / Você que é sem nome / que zomba dos outros / você que faz versos / que ama, protesta? / e agora, José? / Está sem mulher / está sem discurso / está sem carinho / já não pode beber / já não pode fumar / cuspir já não pode / a noite esfriou / o dia não veio / o bonde não veio / o riso não veio / não veio a utopia / e tudo acabou / e tudo fugiu / e tudo mofou / e agora, José? / Sua doce palavra / seu instante de febre / sua gula e jejum / sua biblioteca / sua lavra de ouro / seu terno de vidro / sua incoerência / seu ódio – e agora? / Com a chave na mão / quer abrir a porta / não existe porta / quer morrer no mar / mas o mar secou / quer ir para Minas / Minas não há mais! / José, e agora? / Se você gritasse / se você gemesse / se você tocasse / a valsa vienense / se você dormisse / se você cansasse / se você morresse / mas você não morre / você é duro, José! / Sozinho no escuro / qual bicho do mato / sem teogonia / sem parede nua / para se encostar / sem cavalo preto / que fuja a galope / você segue, José! / José, para onde? / (“José” – Carlos Drummond de Andrade).

Homem que vens de humanas desventuras / que te prendes à vida e te enamoras / que tudo sabes e que tudo ignoras / vencido herói de todas as loucuras: / que te debruças pálido nas horas / das tuas infinitas amarguras / e na ambição das coisas mais impuras / és grande simplesmente quando choras; / que prometes cumprir e que te esqueces / que te dás à virtude e ao pecado / que te exaltas e cantas e aborreces / arquiteto do sonho e da ilusão/ ridículo fantoche articulado / - eu sou teu camarada e teu irmão. / (“Soneto” - Antônio Thomaz Botto).

Sensação de fraude / me persegue, fina / sensação de fraude. / Semelhante a um galgo / de aguçado faro / desgarrado, esquerdo. / Dizem logo: verde! / Mas na rama espessa / frutos escasseiam. / Vida que promete / vasto pano verde / que promete falso. / Mas fugiu a sorte / com seus pés caprinos? / Quero ver a sorte / quero ver os dados / pelos lados todos / quero ver meu número. / Eu aposto: é a sorte / quem prepara o molde / de seus próprios blocos / e quem arma o salto / dos quadrados soltos / no trapézio verde. / Mas jogar incauto / contra tantos riscos / e malabarismos? / Veja quem tem olhos / veja os algarismos / no seu breve giro. / Veja, veja o golpe / desses dedos ágeis / - mãos de pitonisa / sonegando fraude. / Veja a sorte, veja-a / com seus pés caprinos / com seus pés fugindo / sem deixar vestígios. / Sem deixar vestígios / sobre o pano verde. / (“Fraude” – Henriqueta Lisboa).

Se queres que outros creiam, crê primeiro. / Faze-te Boa Nova e acende-a em ti. Só terás gestos e aura de pioneiro / se tua alma for surto e frenesi. / Quem deseja arrastar ao seu outeiro / tribos sem deus precisa ser Davi / ter uma harpa, ter juntas de guerreiro / saber cantar e combater por si. / Sê mais tu, mais alguém, mais punho rude / o sem par, o sozinho, o último, o herói / o que põe no melhor toda a virtude. / Torna-te exemplo... o exemplo é que constrói! / Finge até que o teu sonho não te ilude / e que a tua amargura não te dói. (“O Modelo” – José Oiticica).

Como canção maior do amor perdido / em mim renasce a prolongada dor. / Curvo-me pleno de um mistério vão / e enquanto em ti a minha dor procura/ do corpo arfante a pálida visão / que instrumento não fosse de loucura / ouço esta voz que me faz soluçar / junto a prados cobertos de rosais. / Teu corpo nu, perdida, me sacode / em posses feitas para nunca mais. / ... / (“Ode e Elegia” – Ledo Ivo).

Sinto que sou feliz por não ter sido nada./ Sinto que posso seguir porque nada me prende / porque o amor que tanto esperei nunca chegou / porque a fortuna que eu quis passou de longe / a glória que sonhei nem sequer me sorriu./ Sinto que estou sozinho e pobre como a noite / sinto que estou pobre e que darei sem remorso tudo que me resta. / A solidão é o meu conforto e o meu consolo. / Estou mais perto de Deus! (“Descanso” – Augusto Frederico Schmidt).
Ele tinha uns ombros estreitos e a sua voz era tímida / voz de um homem perdido no mundo / voz de quem foi abandonado pelas esperanças / voz que não manda nunca / voz que não pergunta / voz que não chama / voz de obediência e de resposta / voz de queixa nascida das amarguras íntimas / dos sonhos desfeitos e das pobrezas escondidas. / Há vozes que aclaram o ser / macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio / vozes de sonho de maldição e de doçura./ Os ombros eram estreitos / ombros humildes que não conhecem as horas de fogo do amor inconfundível. / Ombros de que não sabe caminhar / ombro de que não desdenha nem luta / ombros de pobre, de quem se esconde / ombros tristes como os cabelos de uma criança morta / ombros sem sol, sem força, ombros tímidos / de quem teme a estrada e o destino / de quem não triunfará na luta inútil do mundo / ombros nascidos para o descanso das tábuas de um caixão / ombros de quem é sempre um desconhecido / de quem não tem casa, nem Natal, nem festas / ombros de reza de condenado / e de quem ama, na tristeza, a sombra das madrugadas / ombros cuja contemplação provoca as últimas lágrimas (...) (“Retrato do Desconhecido” – A. F. Schmidt).

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