sexta-feira, 23 de julho de 2010

EU

Verifico que publiquei, em fevereiro de 2010, a segunda parte deste artigo, sem haver publicado a primeira. Corrijo o lapso agora. Republicarei, logo após, a segunda parte, para manter a seqüência da matéria. Abraços a todos. ASLima.

Primeira parte.

Eu sou eu, ele é ele: eis a síntese da individualidade e da separação; ambos, seres humanos, cada qual, um EU. Dois EUS que se relacionam atribuindo alteridade reciprocamente: outro em face do outro. Quando os EUS se reconhecem, a fraternidade humana pode se manifestar; do eu singular chega-se ao eu plural, à percepção íntima do gênero comum. Do mandamento religioso ama ao teu próximo como a ti mesmo chega-se à celebração da união mística: ama ao teu próximo como tu mesmo. Incondicional no movimento, infinito no espaço e eterno no tempo, o amor ilumina a mente e pavimenta a senda para o autoconhecimento, chave para compreender o próximo e o mundo. Conhece-te a ti mesmo, ensinamento de Sócrates e dístico do templo de Delfos.
Apreendendo o que há de singular e especial no EU, o indivíduo pode mudar o seu destino, se isto lhe convier; reestruturar a sua vida, reexaminar conceitos e estabelecer prioridades; desfrutar de bem-estar neste mundo, momentos de felicidade e alcançar maior luz espiritual.
Apreendendo o que há de comum e geral no EU, o indivíduo estará habilitado a entender o comportamento coletivo no interior da sua comunidade. Desse entendimento advém poder. Segundo a capacidade estratégica e a disponibilidade de meios, aquele que conhece bem a si mesmo poderá conduzir o grupo em direção a fins materiais e espirituais, segundo a sua vontade. Os fins podem ser alvissareiros ou desastrosos, lícitos ou ilícitos, segundo os motivos que os inspiram, os sentimentos que os embalam, o critério de escolha, a forma de execução e a vontade aplicada.
O corpo é a parte visível do EU. Examinando o seu próprio corpo o indivíduo descobre a dimensão material do EU e sua posição no mundo da natureza. Reage ao meio ambiente. Ao estudar a natureza destaca reinos, classes, famílias, gêneros, espécies e tipos e se enquadra no reino animal e na espécie racional. Observa o funcionamento do seu corpo nas diferentes estações do ano, sob calor e frio, durante o dia e a noite, em atividade e em repouso. Da experiência adquire conhecimento que servirá de guia a uma vida saudável, mediante adequada seleção de objetivos e recursos.
Além desse conhecimento todo de experiência feito, na conhecida expressão de Camões, o indivíduo pode se valer das lições transmitidas oralmente ou através dos diferentes meios de comunicação social e métodos pedagógicos, pelos pais, pelas pessoas idosas, pelos mestres, sacerdotes, artistas e cientistas. Até por osmose, o indivíduo adquire conhecimento no ambiente em que vive.
O laboratório científico e a escola estão entre as instituições que fornecem conhecimento sobre o corpo humano, obtido mediante pesquisas e estudos anatômicos e fisiológicos, provendo a medicina de remédios e terapias que conservam a saúde e prolongam a vida humana. Implicações de ordem política, econômica e social fazem desse conhecimento e dos seus produtos um privilégio; parte da humanidade fica excluída dos benefícios advindos do progresso da civilização.
No ventre materno forma-se o corpo, sem vida própria. O embrião e o feto recebem energia vital da genetriz. Ao ser expulso do útero, na brusca separação do ambiente cálido em que estava mergulhado, o corpo adquire vida própria com a primeira respiração, o sopro da vida, na suave expressão mística. Torna-se um EU, um ser vivente que, paulatinamente, vai percebendo o espaço entre ele, a mãe e o mundo. Inicialmente, ao tocar no que lhe está próximo, a tendência à posse se manifesta. No seu evolver, por mimetismo ou orientação externamente dirigida, adquire a noção do meu e do teu, do permitido e do proibido, do bem e do mal. O EU passa a ser o corpo e seus agregados. Talvez aqui resida a inspiração da famosa expressão de Ortega Y Gasset: “Eu sou eu e as minhas circunstâncias.”
O ambiente natural e o meio social modelam o EU. Habilidades de caçador, pescador, plantador, criador de animais e construtor de casas, pontes e estradas; produtor de cultura técnica, artística, científica, filosófica, mística e religiosa; gestual, hábitos e qualidades cívicas; símbolos e manifestações exteriores de poder, riqueza, glória e saber; tais podem ser os agregados do EU no curso da sua existência. O indivíduo qualifica-se de tal ou qual nacionalidade, estado civil, profissão; filho de fulano e beltrana; exibe títulos de autoridade, de eleitor e de capacitação profissional; apresenta posição social como celebridade ou pessoa comum, rica ou pobre, urbana ou rural, senhor ou escravo, patrão ou empregado.
Além da dimensão física e da dimensão social, com seus atributos agregados, o EU apresenta dimensão volitiva, emocional e mental. Vontade, sentimento e pensamento integram o EU e se refletem na conduta. Mediante análise introspectiva o indivíduo poderá descobrir o mecanismo da vontade, do sentimento, do pensamento e conhecer, cada vez melhor, a si mesmo, o que facilitará a conquista do autodomínio.
Fatores internos, como instintos e tendências, e externos, como o meio ambiente, estimulam a vontade. Apetites naturais exigem satisfação. No que tange à vontade da criança, há de conhecer limite; atender ao sim e ao não dos pais e educadores. Cercear todas as vontades reprime em demasia gerando um eu tímido e inseguro; fazer todas as vontades libera em demasia gerando um eu voluntarioso e indisciplinado; o meio termo, como sempre, é mais indicado. A coesão social exige disciplina e acatamento às leis. A vontade pode ser forte ou fraca. Na graduação da vontade influem funções orgânicas, educação no lar e nas instituições civis, militares e religiosas, pressões e condicionamentos gerados no seio da comunidade. O autoconhecimento pode fortalecer e disciplinar a vontade.
Ar, água, alimento, abrigo e amor são ingredientes básicos e necessários à manutenção e conservação da vida humana. Ao buscá-los e utilizá-los, o indivíduo serve-se da sua energia física, do seu aparelho sensorial e da sua capacidade racional. Essa busca e utilização há de se harmonizar com a efetivada pelos demais membros da comunidade humana. Todos vivem no mesmo planeta, submetidos às mesmas necessidades básicas. Os produtos da natureza adequados a atender a tais necessidades devem estar ao alcance de toda a humanidade. A apropriação desses bens por grupos ou nações em detrimento dos outros é incompatível com o direito natural e com o sentimento de fraternidade universal.

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