quinta-feira, 1 de abril de 2010

FELICIDADE

Primeira parte.

Votos de felicidade são freqüentes nas relações humanas em várias ocasiões: aniversário, casamento, diplomação, início de profissão, de empreendimento, de gestão, de viagem. Consciente ou inconscientemente, individual ou coletivamente, os seres humanos buscam a felicidade. Por longo tempo na historia da humanidade predominou a consciência coletiva. Fortes eram os laços de solidariedade entre os membros do grupo. O indivíduo era um elemento do organismo social e vivia em função do todo. Até onde foi possível chegar, a ciência jamais encontrou o ser humano vivendo isolado. Estima-se em 47 milhões de anos a idade do fóssil humanóide encontrado recentemente pelos cientistas, o que derroga as estimativas anteriores. A descoberta ocorreu em território europeu, o que robora a tese da evolução dos animais em vários pontos da Terra e da variedade de raças. A tese em vigor, de que o homem surgiu no continente africano e dali se espalhou pela superfície do planeta brota de uma concepção de mundo pré-científica: ajustamento à versão da bíblia hebraica sobre a origem da família humana. A probabilidade de diferente conformação geológica do planeta quando, por exemplo, África e América formavam um só continente, pode modificar essas teses se comprovada existência de humanóides naquela era geológica.

Einstein foi vítima da mesma tentação (de ajustar a ciência à bíblia) quando rejeitou o caráter probabilístico da mecânica quântica, a cujos partidários advertiu: Deus não joga dados com o universo, ou como consta da carta a Max Born, citada pelo matemático Ian Stewart (Será que Deus Joga Dados?): “Você acredita num Deus que joga dados e eu em lei e ordem absolutas”. Após várias experiências, constatou-se o engano de Einstein, como informa Brian Greene (O Universo Elegante). Diz, Ian Stewart: a questão não é mais se Deus joga dados e sim como ele o faz. O caos e a incerteza estão presentes no microcosmo e no macrocosmo: as partículas atômicas nem sempre obedecem ao mesmo padrão de comportamento; o sistema solar é um dos enclaves de ordem existentes no universo e reina o caos nos espaços interestelares, como afirmava Willard Gibbs, citado por Norbert Wiener (Cibernética e Sociedade). Pela primeira vez, Gibbs apresenta um método científico que leva em conta a incerteza e a contingência nos eventos estudados pela Física e lança a noção de entropia. Na abalizada opinião de Wiener, essa foi a primeira grande revolução da Física no século XX, que deixa Einstein, Heisenberg e Planck em plano secundário. Goffredo Telles Jr. (Direito Quântico) refere-se a uma ordem que desconhecemos: regularidades (ordem) e irregularidades (desordem) da Natureza parecem obedecer a uma lei cósmica.

No processo evolutivo, o ancestral do ser humano passa de quadrúpede a bípede. A posição ereta lhe proporciona visão ampla do firmamento, do horizonte e de tudo que o cerca. O pequeno cérebro do primata antecessor (Pithecanthropus Erectus) torna-se maior no homo sapiens (Cro-Magnon). Dilata-se a capacidade operacional do intelecto. Acelera-se a aquisição de conhecimento prático e teórico. Aumenta a complexidade das relações entre os membros da comunidade. Multiplicam-se e repartem-se as tarefas. Busca-se a grandeza e a felicidade da tribo, da cidade, do reino. A pressão social faz do ser humano um elemento do ente coletivo mergulhado na objetiva consciência comunitária; assim aconteceu no primitivo grupo e continuou na tribo, na cidade e no império.

Após a cultura humana atingir o estágio de civilização, os povos orientais mantiveram, tradicionalmente, o sentimento de união íntima a um todo cósmico, o que fortifica a solidariedade social, o espírito comunitário, a vigência de regimes autocráticos e o reverencial respeito à autoridade. Nos povos ocidentais operou-se mudança em direção ao individualismo. A consciência da individualidade se manifestou amplamente após o advento do cristianismo. Jesus, com seu exemplo e sua doutrina, modificou o milenar panorama: conciliou o espírito comunitário com a autonomia da pessoa humana. O indivíduo deixa de ser uma simples partícula de um organismo cósmico. A doutrina cristã valoriza o ser humano como individualidade anímica; acentua a dignidade própria da pessoa como fonte de todos os valores; afirma a igualdade entre os seres humanos e entre todos os povos sob a paternidade divina; iguala os poderosos aos humildes perante a lei divina; subordina o poder dos governantes ao poder de Deus (“nenhum poder teríeis, não fora a vontade do meu Pai”).

Em conseqüência do individualismo e racionalismo que desponta na Europa da segunda fase da Idade Média e se torna vigoroso na Europa e na América da Idade Moderna, a busca da felicidade individual no Ocidente ofuscou a busca da felicidade coletiva. A Magna Charta Libertatum outorgada pelo soberano João Sem Terra em 1215, concede liberdades a todos os homens livres da Inglaterra. Documentos posteriores falam no bem do reino e nos direitos e liberdades dos homens (Petição de Direitos, de 1628; Lei de Habeas Corpus, de 1679; Declaração de Direitos, de 1689; Ato de Estabelecimento, de 1701). Esses documentos, leis fundamentais do reino britânico, não mencionavam explicitamente a felicidade; o propósito de buscá-la individual e coletivamente estava implícito. Mantido o sentimento de solidariedade, realçava-se o de justiça. Como bem observou Léon Duguit (Traité de Droit Constitutionnel – Tome Premier) a solidariedade social e o sentimento de justiça são permanentes no plano dos princípios, apesar de variáveis em suas manifestações.

No século XVII (1601-1700), a Companhia de Londres fundou uma colônia na América do Norte e a batizou com o nome de Virgínia, homenagem à virgindade da rainha Isabel. No contexto da época, o paralelo com o dogma católico da virgindade de Maria é inevitável. Isabel confirmara a supremacia da igreja da Inglaterra em relação à igreja de Roma. Protestantes, os diretores da Companhia aproveitaram a ocasião para cutucar os católicos.

No século XVIII (1701-1800), os colonos da Virgínia, inspirados na doutrina cristã, rompem o vínculo com a Inglaterra afirmando que todos os homens são por natureza livres e independentes e têm certos direitos inatos à vida, à liberdade e aos meios de adquirir propriedade, obter felicidade e segurança (16/06/1776). No mês seguinte (04/07/1776) os Estados Unidos da América do Norte se declaram independentes afirmando a igualdade de todos os homens, dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

A declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão, promulgada pela Assembléia Nacional em 26/08/1789, afirma que a conservação da Constituição e a felicidade geral são objetivos permanentes da associação política; que os homens nascem livres e iguais em direitos e as distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum; que a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem é o desiderato de toda associação política; que esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

A declaração universal dos direitos do homem, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10/12/1948, segue no mesmo diapasão: a dignidade é reconhecida como inerente a todos os membros da família humana e como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos; dotados de razão e consciência, devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade; todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

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