quinta-feira, 15 de abril de 2010

FELICIDADE5

Quinta parte.

Nas tribos selvagens a bondade prevalece nas relações internas e a maldade, nas relações externas. São mais raras as maldades no seio da comunidade e as bondades nas relações entre as tribos. Os autóctones da América, da África, da Oceania, guerreavam entre si de modo permanente; os vencedores matavam os vencidos, às vezes os comiam, quando não os escravizavam. Assim também se comportavam os bárbaros da Europa e da Ásia. O selvagem é bom e mau; reflete a bipolaridade da natureza humana: angelical e demoníaca. O ser humano tem um lado pacífico e outro guerreiro. Os homens civilizados também se matam em guerras, revoluções, conflitos de grupos ou de indivíduos isolados.

Propaganda educativa pela televisão no Brasil mostrava a dupla face do ser humano. O varão cordial, amoroso com a esposa e os filhos, deles se despede no jardim da casa e entra no automóvel para ir ao trabalho. Ao assumir o volante, o seu rosto muda: aparece a cara de um animal irracional. O autor da mensagem não a tirou da sua imaginação e sim da realidade. Quando no volante do automóvel nas ruas e estradas, o indivíduo xinga os outros, atira o carro sobre pessoas e coisas, buzina insistentemente, acelera em alta velocidade, disputa corridas em locais impróprios, faz manobras perigosas que colocam em perigo não só quem está no interior do veículo como também quem está fora, pressiona quem estiver à sua frente, ultrapassa os outros veículos em trechos proibidos, transgride as normas de trânsito e de boa educação. Famoso romance inglês do século passado e que serviu de tema para alguns filmes (O Médico e o Monstro) abordava essa dupla face dos humanos: ao se fazer cobaia de experiência por ele próprio realizada, o médico liberou a fera, trouxe à tona a sua natureza demoníaca. “O Incrível Hulk” fez sucesso na televisão, repetindo o mesmo tema: o homem que após se submeter a uma experiência científica muda a sua estrutura física e libera forças colossais e acima do normal sempre que se irrita.

Os animais racionais e os irracionais têm em comum a ferocidade, com a seguinte diferença: só os racionais são cruéis. Sofisticadas técnicas de tortura física e mental são inventadas. Pessoas são submetidas a dolorosas experiências científicas, queimadas em fogueira, assadas em fornos, enterradas vivas, jogadas às feras, banhadas em óleo fervendo, envenenadas, açoitadas, afogadas, empaladas, enforcadas, esquartejadas, fuziladas, asfixiadas, eletrocutadas, mãos e pés decepados, unhas arrancadas, olhos vazados, línguas e orelhas cortadas, mentes atormentadas. Adultos violam e esganam mulheres e crianças. Mil horrores.

A arte expressa beligerância. Os autores de filmes e livros de ficção concebem as relações entre os habitantes da Terra e os de outros planetas em termos de guerra, de ataque e defesa. Novelas de televisão, peças de teatro, filmes, livros, revistas, expõem o mau caráter e a agressividade das pessoas, as relações de ódio e traição, enaltecem a ganância, os expedientes desonestos e a libertinagem; estimulam o tabagismo e o alcoolismo. Nessas obras, de ampla aceitação, a violência está presente.

A frieza, a brutalidade, a crueldade, compõem a natureza humana tanto quanto a meiguice, a ternura, a brandura. Visite um presidiário assassino na expectativa de encontrar uma pessoa cruel, feroz e brutal: surpreendentemente, você poderá se deparar com uma pessoa tranqüila, singela e de bons sentimentos. No Brasil, criminosos ganham a liberdade antes de cumprir a metade da pena; motivo: apresentam bom comportamento. Sob custódia do Estado, expressam a sua natureza angelical, manifestam boa conduta e bons sentimentos; alguns se tornam estudiosos das escrituras sagradas e guias espirituais de outros presidiários.

Parcela dos custodiados não se regenera. As prisões brasileiras funcionam como escolas de aperfeiçoamento dos criminosos. No seu interior há facções rivais, tráfico e consumo de drogas; do seu interior são comandadas ações criminosas externas. Com excesso de lotação, há prisões que mantêm os presos em condições aviltantes, incompatíveis com a dignidade da pessoa humana. Há presos que são vítimas da violência física e moral de outros presos ou dos agentes penitenciários. No gozo de benefícios legais, em liberdade condicional, condenados praticam delitos. Alguns egressos têm dificuldade de se reintegrar à sociedade, tanto por despreparo profissional ou deficiência de caráter, como por medo ou preconceito manifestado pelo público. Estatísticas, inquéritos policiais e processos criminais mostram réus que tornaram a delinqüir após saírem da penitenciária.

A felicidade resulta da supremacia da face angelical do ser humano. O conhecimento de si mesmo e a forte disposição para colocar a face demoníaca sob rédeas fazem parte do processo evolutivo no plano individual, o que se reflete no plano coletivo como ascensão espiritual da humanidade. O ser humano evoluirá espiritualmente admitindo, enfrentando e domesticando o seu lado demoníaco. Se a índole do homem fosse exclusivamente meiga e pacífica não haveria necessidade alguma de código penal e do aparelho repressor do Estado. A natureza demoníaca tem a função positiva dos instintos que orientam o ser humano na busca do que é necessário e o previnem de perigos ignorados pelos olhos e ouvidos; e tem a função negativa que provoca no ser humano ganância, inveja, imoderação, ódio, raiva, vingança, ou seja: ações, omissões, pensamentos e sentimentos malévolos. A eliminação da natureza demoníaca faria do homem um novo ser: o humano deixaria de ser humano, o corpo nada mais exigiria e seus órgãos atrofiar-se-iam.

A busca individual consciente e sistemática da felicidade quando se torna obsessiva traz sofrimento ao buscador. Nesse caso, o paradoxo: a busca da felicidade traz infelicidade. O prazer advindo das coisas materiais é transitório e ainda que moderado, não sustenta felicidade duradoura. O ser humano é insaciável. Os seus interesses, apetências e necessidades só terminam com a morte. A felicidade no mundo terreno não é eterna, nem contínua, pois a pessoa está sujeita a intervalos de tristeza e sofrimento.

Epicteto, nascido na Frígia, viveu no primeiro século da era cristã, era escravo romano e se tornou o filósofo que em seus discursos pregava o estoicismo. Para ele, assim como para os estóicos que o precederam (Zenão, Panécio, Sêneca) felicidade é o resultado de uma vida virtuosa, o que implica: conhecimento profundo de si mesmo, aprimoramento moral, domínio sobre os desejos, harmonização com a natureza, reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos, serena aceitação do que não se pode evitar ou mudar, vigilância sobre si mesmo, sobre os outros e sobre os acontecimentos, a fim de seguir e preservar os princípios éticos e permanecer no caminho do bem.

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